Conto

Valério

1874

VI

Valério convenceu-se um dia de que não era indiferente à rapariga. Foi o caso que, estando ela uma noite a tocar uma melodia assaz triste, o moço disse ao pai que achava a música lindíssima, e o pai, à mesa do chá, comunicou a opinião à rapariga, que sorriu e concordou com Valério. No dia seguinte, achando-se Valério em casa do coronel, a moça foi logo ao piano e tocou a mesma cousa, e assim o fez mais duas ou três vezes.

A única cousa que fazia espanto ao rapaz era a melancolia da moça. Hélvia falava e ria pouco, e, tendo a mãe notado isso em voz alta, compreendeu Valério que a melancolia era recente e alguma cousa havia de ter.

Seria amor por ele? Valério começou a sentir essa doce ilusão, e cem outros incidentes, como o do piano, vieram dar alento ao coração ambicioso do rapaz, sem audiência do juízo que lhe poria veto às esperanças.

Valério entretanto julgava que, se a rapariga lhe aceitasse o amor, fácil seria obter o consentimento do pai. O coronel revelava a todos os instantes que prestava à opinião e ao juízo do moço uma homenagem de respeito. Sem intenção de o dominar, Valério influía no espírito do coronel, a ponto de causar ciúme à mulher, que via levantar-se em frente de si uma autoridade estranha e ilegítima.

Valério era o oráculo de Delfos do coronel, que o consultava a respeito de todas as cousas, até as mais minuciosas. Admirava-se o rapaz de não ter sido um espírito daqueles aproveitado pelos partidos que acham sempre auxiliares deste gênero, e os empregam com proveito de ambas as partes.

Naturalmente a gravidade muda do ex-deputado foi a sarça ardente que o escondeu aos olhos profanos; e a maleabilidade do homem atravessou incógnita o Parlamento.

Resolvera o coronel escrever segundo opúsculo, e Valério foi convidado a redigir as notas esparsas do autor que, a julgar pelo trabalho alegado, era o indivíduo mais laborioso das duas Américas.

- Desta vez - disse o coronel -, não é admitido que me recuse pagar-lhe; já não se trata só de artigos, trata-se de um folheto que lhe há de levar tempo.

- Se é com essa condição - respondeu Valério -, não lhe faço o trabalho.

- Mas...

- Tenho dito.

O coronel apertou-lhe a mão com aquela energia de um homem que, inesperadamente, faz uma economia de cem ou duzentos mil-réis.

- O senhor é um homem admirável - disse ele ao rapaz.

- Não me disse que me quer por amigo?

- Sem dúvida.

- Pois deixe-me colher o fruto da amizade, que é servir os amigos.

Começou o rapaz a redigir o novo opúsculo. Valério tinha algumas qualidades de estilo, posto não tivesse estilo feito, nem podia tê-lo, que só o trabalho e a meditação podem provar as prendas literárias. No entanto, era sóbrio, enérgico, claro e animado quando escrevia, e para um folheto político estas qualidades são preciosas. O trabalho ia adiantado, e o coronel já tinha ouvido dois capítulos que julgara excelentes.

Uma tarde, saindo da casa do coronel, aonde fora de passagem, Valério encontrou junto à porta da sala a menina Hélvia, que lhe disse:

- Venha antes de cá estar o papai.

Admirado com estas palavras, Valério não respondeu logo. Contemplava a moça e procurava certificar-se se estava acordado ou sonhando.

Ela repetiu com voz doce e melancólica:

- Vem, sim?

- Venho.

Estendeu-lhe a mão; ela lhe estendeu a sua; apertaram-se com força. Valério desceu a escada como se descesse das nuvens. Quando tornou em si, estava na esquina da rua.

Não era paixão que sentisse pela moça. Alguma simpatia, sim; esboço de amor. No entanto, ouvindo aquelas palavras, viu apresentar-se-lhe uma visão de felicidade; imaginou que a moça ardia por ele; e que há de melhor neste mundo do que ser amado? A vida é tão curta, os homens, tão maus, os acontecimentos, tão incertos, que uma criatura que nos ama é a imagem da misericórdia de Deus. De quantos ódios, invejas, malquerenças, calúnias não consola o amor de uma mulher? Tudo isso anteviu o espírito de Valério, que foi à tipografia mais leve que um pássaro e cheio de confiança no futuro.

No dia seguinte procurou Valério a hora em que o coronel não estivesse em casa, e, para melhor certificar-se, postou-se à esquina desde as oito horas da manhã. Ali esperou duas longas horas. Tamanha paciência, só um amante a teria, a não ser um credor. Às dez horas viu sair o coronel de cabeça alta e brandindo com gesto, que pretendia ser gracioso, uma bengala mais grave que o dono. Valério investiu para a casa.

No corredor estacou.

Qualquer que fosse mais corajoso estacaria também; não se acode a tais entrevistas sem um grande abalo, e não há coragem de Aquiles que não abata as armas ao aproximar-se de uma menina que parece querer amar.

Hesitou se devia subir; a consciência disse-lhe que era talvez inconveniente. Era uma formalidade da consciência; ela bem sabia que não é forte quando está doente do coração. O coração disse ao rapaz que subisse.

O rapaz subiu.

Hélvia, que da janela o vira entrar, já o esperava no patamar.

- Papai saiu agora mesmo - disse ela, entrando com Valério na sala.

- Vi-o sair - respondeu o moço corando muito.

Daquelas duas criaturas a que estava tranquila era Hélvia; a que estava comovida e envergonhada era Valério. Trocavam-se os papéis.

Depois que se sentaram, disse Hélvia:

- Já amou?

A alma de Valério deu um pulo ao ouvir estas palavras. O moço não soube que responder. Fitou os olhos da moça, abaixou-os depois como a donzela que ouve uma confissão de amor. Ela repetiu a pergunta. Valério murmurou:

- Amo.

- Ainda bem! - disse ela -. Compreender-me-á então; só quem amou, compreenderá o passo que dei.

- É inútil defender-se - disse Valério -; eu agradeço-lhe até esse passo.

- Tanto melhor! Obrigada!

Hélvia soltou estas palavras com voz trêmula; duas lágrimas começaram a tremer-lhe nos olhos, eram as avançadas de uma legião de lágrimas que estavam a saltar-lhe e não se detiveram.

Valério levantou-se e correu a Hélvia, quando esta, pondo a cara nas mãos, chorava e soluçava como se uma grande dor lhe apertasse o coração. Animava-se a estátua; aquela que parecia de gelo era de fogo.

Houve um prolongado silêncio. A moça enxugou os olhos, e Valério sentou-se triste. Triste, porque as lágrimas de Hélvia queriam dizer que não se tratava de um amor nascente, mas talvez de um amor contrariado. Compreendeu de um lance que era chamado como salvador; outro talvez se sentisse humilhado; Valério, não. Deixou que a moça pudesse falar e disse-lhe:

- Que posso fazer para que seja feliz?

- Tudo.

- Juro-lhe que o farei.

Hélvia contou então ao rapaz que amava o primo, e era amada por ele; mas que, tendo o pai brigado com ele, lhe proibira voltar à casa e ela perdera a esperança de que o pai consentisse jamais no casamento. Queria que Valério interviesse para que o primo voltasse à casa e se reconciliasse com o coronel. O resto viria por si.

- Há muito que lhe queria falar; mas era impossível. Aproveitei a indisposição da mamãe, que desde ontem está na cama, para lhe dizer isto.

- Por que me não escreveu?

- Não podia, e, ainda que pudesse, não tinha certeza de convencê-lo com algumas palavras frias escritas num papel.

Valério prometeu interceder em favor do namorado proscrito. Para isso tomou informações a respeito do rapaz para ir à casa dele. Depois mudou de plano. Advertiu que entender-se com ele era dar à intervenção um caráter de serviço pouco delicado, e achou melhor servir unicamente à moça, o que lhe parecia mais próprio.

VII

O coronel resistiu ao primeiro ataque.

- Pede-me por um pelintra - disse ele a Valério -, não conhece aquela bisca; é um peralta que me não respeita, e até chegou a ter a petulância de amar-me cá a pequena.

- Está feito, ele é rapaz.

- Pois será, será; mas eu não dou minha filha a um valdevinos daquela laia.

- Mas eu desejava...

- Servi-lo-ei noutra cousa, nisto não.

Valério calou-se; achou melhor adiar o ataque para mais tarde. O coronel ainda falou a respeito do sobrinho, e vendo que Valério nada mais dizia, calou-se também.

Ao cabo de cinco dias resolveu falar-lhe outra vez; mas dessa vez foi o coronel quem primeiro tocou no assunto.

- Ainda pensa no tratante do meu sobrinho?

- Ainda. E o senhor?

- Eu estou na mesma.

- Perdão, Sr. coronel; eu não creio que seu sobrinho mereça tanto ódio; fez algumas extravagâncias de rapaz, mas... é um caráter... quero dizer, é um sobrinho, um parente.

- Veja lá; nem o senhor se atreve a elogiá-lo; apenas o desculpa. Conhece-o bem?

Valério hesitou; o coronel, que fizera a pergunta com intenção de perscrutar donde vinha o empenho, compreendeu logo que Valério estava influenciado pela filha.

- Conheço-o alguma cousa - disse finalmente Valério -; e não acho que seja um rapaz perdido.

- Há de cá chegar. Não falemos mais nisto.

Valério compreendeu a necessidade de falar ao rapaz, a fim de não comprometer a moça, caso alcançasse a reconciliação. Jaime recebeu-o com alguma indiferença; estimou entretanto que a rapariga tivesse pedido por ele, e disse que a amava loucamente. Este loucamente foi dito com a mesma tranquilidade com que ele diria: "Está muito calor!"

- Pobre moça! - disse Valério consigo.

O coronel foi o primeiro a renovar o assunto. Outro mais sagaz que Valério, ou mais experimentado, teria compreendido que o coronel estava disposto a reconciliar-se com o sobrinho, e apenas recusava para ser vencido.

Foi o que aconteceu no fim de um mês. O coronel consentiu na reconciliação; e Valério atribuiu isso ao prazer que lhe causou o novo folheto político que lhe levara pronto. Foi Valério quem conduziu Jaime à casa do coronel e assistiu à reconciliação do tio com o sobrinho, que foi glacial e indiferente.

Hélvia apertou-lhe a mão com reconhecimento:

- Devo-lhe a vida! - disse ela.

- Eu devo-lhe a felicidade de a ter feito feliz - respondeu Valério.

O moço dizia a verdade. Tinha certa inclinação pela moça; mas os seus sentimentos generosos venceram tudo; e o seu amor nascente desapareceu diante da glória e do prazer de tornar a moça feliz.

Hélvia não perdeu tempo. Disse ao primo que a pedisse ao pai; e este, depois de alguma recusa, mais aparente que real, concedeu-lha.

Nesse ínterim, adoeceu Valério. O casamento efetuou-se quando ele se achava de cama, e no meio da impressão produzida pelo folheto, que ninguém deixou de atribuir ao coronel.

A doença de Valério foi longa e dolorosa; durou uns dois meses; uns vizinhos cuidaram dele e um médico o curou de graça. Quando o rapaz se levantou da cama, foi ao cartório, onde lhe disse o escrivão que, tendo admitido outro escrevente por necessidade de serviço, não podia nesse momento admiti-lo, mas que esperasse algum tempo. A tipografia ainda lhe deu algumas provas para ler.

Admirou-se Valério de que o coronel não o procurasse, mas pensou que talvez não soubesse da sua moléstia e o supusesse até indiferente, pois sem razão deixara a casa. Foi procurar o coronel. Achou-o aborrecido e zangado; disse-lhe que estivera doente, ao que o coronel não atendeu muito, sem dúvida por estar preocupado.

A existência do moço tinha agora um caráter sério. Como prover a todas as suas despesas, com o mesquinho ordenado que obtinha da imprensa? Por felicidade disseram-lhe que o coronel aderira ao programa ministerial, mediante o emprego do sobrinho e alguns favores mais. Valério lembrou-se de procurá-lo e dizer-lhe em que posição se achava.

Justamente no dia em que se preparava para isso, um dos vizinhos se lhe apresentou em casa dizendo que fizera alguma despesa com a moléstia de Valério e desejava ser embolsado. Coincidiu isto com a entrada do caixeiro da botica que lhe foi levar uma conta. Ambas as dívidas orçavam por duzentos mil-réis. Onde os iria buscar o rapaz? Prometeu que pagaria as dívidas da moléstia e saiu para imaginar um meio.

Nenhum lhe ocorreu.

O rapaz estava só no mundo.

Só? Lembrou-lhe de repente o coronel; e afoutamente se encaminhou para lá. Expôs-lhe a situação e a escassez de seu emprego, e ao mesmo tempo pediu duzentos mil-réis adiantados.

- Duzentos mil-réis, não os tenho comigo - respondeu o coronel -. O casamento de minha filha obrigou-me a muitas despesas; mas daqui a uma semana apareça cá. Quanto ao emprego, falarei ao ministro, mas creio que não é fácil. O governo quer sinceramente economias (o folheto dissera justamente o contrário), e só dificilmente se pode abrir ensejo a um serviço destes. Contudo, confie em mim. Vou ver se lhe posso fazer alguma cousa.

Valério saiu um pouco desanimado, mas por outro lado consolado. Tinha certeza de receber os duzentos mil-réis para ocorrer à divida imediatamente.

No fim de uma semana voltou lá.

O coronel não estava em casa.

Voltou de noite; o coronel mandara dizer que dormia fora.

Zangou-se o rapaz contra o destino; mas resignou-se e no dia seguinte foi à casa do coronel. Não o encontrou. O mesmo aconteceu nos cinco dias seguintes; Valério suspeitou que o coronel não lhe quisesse falar.

Ao cabo de seis dias, encontrou-o no Rossio.

- Que é feito? - disse-lhe o coronel.

- Tenho ido à sua casa, mas não tenho tido a felicidade de encontrá-lo - respondeu Valério.

- Não me tenho esquecido do senhor - disse o coronel -; falei a um dos ministros e prometeu-me que veria isso. Tenha paciência, espere; pode esperar alguns meses, mas eu confio que se pode fazer alguma cousa. Adeus!

Valério ficou a olhar para ele sem articular palavra. Dos duzentos mil-réis não disse o coronel cousa nenhuma. Valério entendeu que não devia falar neles. Quanto ao emprego, viu o moço que era tão problemático como os duzentos mil-réis. Abriu-se-lhe um sorriso triste nos lábios, ainda pálidos da doença, e seguiu cabisbaixo para casa.

Desesperando de achar meio de pagar as dívidas como queria, propôs aos dous credores, que lhes daria uma diminuta mensalidade, tirada do pouco que fazia como revisor de provas. Os credores franziram a testa, mas aceitaram; era o meio de não perder o dinheiro.

Entregou-se Valério todo ao trabalho, e começou a cumprir à risca a promessa que fizera. Dois golpes acabaram, entretanto, por lhe abater completamente o ânimo. Um foi o incêndio na tipografia. Estava Valério em casa quando soube do desastre; eram dez horas da manhã. Seguiu para o lugar; achou a casa em ruínas. Os tipos ficaram todos fundidos; o dono do estabelecimento estava quase doudo.

Abatido, desvairado, Valério deixou o lugar do sinistro e entrou a andar ao acaso. Na rua do Cano viu de longe a menina Hélvia com o marido. Aproximou-se como se visse uma tábua de salvação. Aquela felicidade dos dous consortes era obra dele; na aflição em que estava, podia, sem afronta para si, receber o salário da obra. Não reparou que estava, comparativamente, um tanto maltrapilho.

Apressou o passo e ia articular uma palavra, quando os dous, olhando para ele, voltaram imperturbavelmente a esquina.

Valério, que cometera outras tolices na sua vida, coroou a obra indo atirar-se ao mar.

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