Contos na Imprensa - Fase 4
Esta que se denominou aqui "quarta fase" dos contos avulsos de Machado de Assis reúne 14 peças, 13 das quais publicadas no Jornal das Famílias e uma em A Época. Como nas três fases anteriores, o autor assina algumas, mas publica também sob vários pseudônimos (J.J., Lara, Job, Victor de Paula, Manassés), por vezes mais de um conto no mesmo número da publicação, ou parte de um conto, a continuar no número seguinte.
Já há algum tempo, por iniciativa de editoras como a Jackson e a Aguilar, e de indivíduos como Raimundo Magalhães Jr. (que nos anos 1950 publicou cinco volumes reunindo contos machadianos), o leitor dos séculos XX e XXI teve acesso a muitas dessas histórias. Nas edições anteriores à de 2008, a Aguilar reuniu, sob o título de "Outros contos", 46 títulos. Os contos "completos" de Machado de Assis, no entanto, eram (e são) acessíveis eletronicamente em www2.uol.com.br/machadodeassis, graças a uma iniciativa pioneira de Cláudio Abramo.
Em 2008, como parte das comemorações do primeiro centenário da morte do escritor, a Nova Aguilar reuniu a obra completa de Machado de Assis em quatro volumes e ofereceu ao leitor, em suporte material, todos os contos machadianos. Aqueles que não foram selecionados pelo autor para figurarem nos sete volumes de contos que publicou durante sua vida compõem o segundo e o terceiro volume dessa edição, num total de mais de mil páginas, sob o título de Contos avulsos. São 114 contos ao todo, na grande maioria, bastante extensos.
A imensidão e as dificuldades do corpus exigiram da nossa equipe uma espécie de reinvenção metodológica: repartimos os contos por períodos, mais ou menos curtos, de modo a que, a cada etapa, lidássemos com, no máximo 15 contos. O que se publica aqui é o que chamamos "Contos avulsos - fase 4", reunindo peças publicadas no Jornal das Famílias em 1874 e 1875, sendo que o último, "História de uma fita azul", avança por janeiro e fevereiro de 1876. Nos próximos meses, esperamos ir dando conta, em várias etapas semelhantes a esta, do conjunto completo.
Não há unidade temática entre os contos aqui reunidos, como, aliás, não costuma haver mesmo nos livros publicados pelo autor em vida, cujos títulos, sempre no plural, são por si só uma indicação de diversidade. Trata-se de peças em que às vezes já se desenha o humor machadiano (veja-se o primeiro conto, "Os óculos de Pedro Antão"), e em que já é possível detectar-se o sarcasmo corrosivo peculiar ao autor maduro, embora ainda haja certo tom edificante, que o escritor abandonará completamente na década seguinte. Digna de nota é a posição discretamente antiescravagista do autor em alguns dos contos desses anos, que é possível flagrar não em manifestações abolicionistas explícitas, mas no manejo da linguagem, que o faz criar frases como: "Estas palavras foram ditas por D. Angélica, que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria, contava-lhe não sei que história de legumes e escravos." (conto "Um dia de Entrudo", grifo nosso), em que o nivelamento entre os dois últimos substantivos é mais contundente que um libelo.
Permanece a forte presença de diálogo, o que pode ser explicado quer pelo fato de que na juventude Machado parece ter acalentado sonhos de se consolidar como dramaturgo, tendo mesmo produzido algumas peças de teatro, quer pelo fato "menos nobre" de que, segundo alguns especialistas no assunto, os autores eram pagos pelos periódicos por linha escrita... São leituras, por assim dizer, de valor quase exclusivamente histórico, como registro da produção de Machado de Assis no início de sua carreira. Mas, como se disse - e para usar uma expressão cara ao autor -, aqui e ali já se percebe "a orelha" do que viria a ser o autor das Memórias póstumas de Brás Cubas. Veja-se, por exemplo, a figura do "orador de sobremesa" do conto "Valério", que prenuncia o Vilaça do romance de 1881, como também ao juiz de fora Veloso, do conto "Adão e Eva", publicado em 1885 na Gazeta de Notícias e, em 1896, no livro Várias histórias.
Outra característica do melhor Machado que existe desde as primeiras produções e aqui já se vai consolidando é a autoconsciência narrativa. Destaque-se outra passagem do conto "Valério", que vale por uma condensação da poética machadiana: "Valério tinha algumas qualidades de estilo, posto não tivesse estilo feito, nem podia tê-lo, que só o trabalho e a meditação podem provar as prendas literárias." (Grifo nosso.)
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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com edições digitalizadas dos periódicos em que os contos foram publicados, disponíveis no acervo da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional. Com duas exceções apenas ("Valério" e "O sainete"), o que foi devidamente anotado, todos os textos foram integralmente cotejados com os das publicações originais.
Tal cotejo se revelou fundamental, na medida em que as edições existentes, tanto as impressas como as disponíveis em meio eletrônico, quase todas oriundas ou das coletâneas reunidas pela editora Jackson na coleção da obra completa de Machado de Assis, ou dos cinco volumes de contos machadianos publicados por Raimundo Magalhães Jr., apresentam problemas seriíssimos: falta de passagens inteiras, substituição de palavras, "correções" ao texto machadiano (quer com substituição de palavras talvez consideradas menos "nobres", quer com flexões verbais modificadas em observância a normas gramaticais). Disto procurou-se dar conta em links, que, nesta edição - o leitor notará - não se restringem às citações e alusões histórico-literárias e à toponímia, dando conta de casos mais propriamente linguísticos.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está nas primeiras edições: "jerarquia" e não "hierarquia", "gérmen" e não "germe", "biscouto" e não "biscoito", "doudo" e não "doido", "afoutamente" e não "afoitamente", "assentado" e não "sentado". Preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "tilbury" e não "tílbury"; "dandy" e não "dândi"; "boulevard" e não "bulevar", "clubs" e não "clubes". Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Quanto aos numerais, manteve-se a forma usada nas publicações originais, ora por extenso, ora em algarismos. Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Igreja", "Guarda Nacional", "Casa da Suplicação", "Academia de Ciências de Paris", bem como para festas populares e religiosas: "Entrudo", "Carnaval", "Quaresma", "Páscoa", "Natal".
Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "aborrecer", no sentido hoje pouco usual de "não gostar, abominar"; "secretária", no sentido de "escrivaninha"; "namorado", no sentido de "apaixonado"; "estremecia", no sentido de "amava com desvelo"; "partida", no sentido de "festa caseira"; "gesto", no sentido de "rosto"; "gôndola", no sentido de "antigo veículo urbano, puxado a burros"; "embaçar", no sentido de "enganar, iludir".
Usos hoje considerados incorretos foram, obviamente, mantidos, como o emprego do modo indicativo, em vez do subjuntivo: "Ainda que esta mudança nos princípios políticos de D. Angélica foi resultado de uma paixão [...]"; "[...] nem talvez consentira [...]". É curioso, que há oscilação entre os dois modos, em construções similares, às vezes num mesmo conto: "[...] qualquer leitor, ainda que não seja mais perspicaz que um chapéu [...]"; "[...] talvez que, não estando namorado como tu, possa conhecer-lhe o caráter [...]". Outra construção reiteradamente usada (e aqui mantida) pelo autor é a regência indireta indevida, como em "Indiretamente fazia-lhe sentir esta censura toda íntima".
Buscou-se sempre a maior proximidade possível com a publicação original, o que nem sempre tem sido a política de edições posteriores. Um exemplo é a correção de "concertar" ("harmonizar", "pôr em concerto com", "arrumar"), que mudam para "consertar" ("reparar algo que se estragou"). A edição Jackson da década de 1930 consagrou o uso de "dous", quando no Jornal das Famílias o autor só emprega "dois" (embora, contraditoriamente, use "cousa" e não "coisa"). Respeitaram-se as oscilações registradas na publicação original entre "até o" e "até ao", "chegar à casa" e "chegar a casa", "em todo o caso" e "em todo caso".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa entusiasmadíssimo". Observe-se que o autor, às vezes, omite a vírgula em casos absolutamente idênticos: "Era honrado e viu a gravidade da situação". A mesma oscilação se dá com o uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "Alfredo recolheu carinhosamente as informações todas do cocheiro, e o nome de Ângela para logo lhe ficou entranhado no coração."; porém: "[...] o criado subiu a almofada e o carro partiu".
Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "Ontem, voltou-se tanto para trás, que esteve quase a esbarrar com um velho", mas: "Laura sabia tão bem disfarçar que nunca traía a sua sagacidade"; ou como no uso e não uso de vírgulas isolando adversativas no meio de orações, às vezes numa mesma passagem: "A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico, da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito".
Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz, assim como nos casos de orações subordinadas reduzidas de gerúndio, e, ainda, nas orações em que há uma inversão na ordem sintática habitual da frase: "e a sinceridade, creio que é uma virtude".
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado parágrafo e travessão.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, bem como na elaboração de algumas notas a de Laíza Verçosa do Nascimento e de Maira Moura, atuais bolsistas de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.