Capítulo primeiro
Imensa e profunda foi a mágoa do infeliz Cosme. Depois de três anos de não interrompida ventura, faleceu-lhe a mulher, ainda na flor da idade, e no esplendor das graças com que a dotara a natureza. Uma rápida moléstia a arrebatou aos carinhos do esposo e à admiração de quantos tiveram a honra e o prazer de praticar com ela. Quinze dias apenas esteve de cama; mas foram quinze séculos para o infeliz Cosme. Por cúmulo de desgraças, expirou longe dos olhos dele; Cosme saíra para ir buscar a solução de um negócio; quando chegou à casa achou um cadáver.
Dizer a aflição em que este acontecimento lançou o infeliz Cosme pediria outra pena que não a minha. Cosme chorou logo no primeiro dia todas as suas lágrimas; no dia seguinte tinha os olhos exaustos e secos. Os seus numerosos amigos contemplavam com tristeza o rosto do infeliz e ao lançar a pá de terra sobre o caixão já depositado no fundo da cova, mais de um recordou os dias que passara ao pé dos dois esposos, tão queridos um do outro, tão venerados e amados dos seus íntimos.
Cosme não se limitou ao encerramento usual dos sete dias. "A dor não é costume", dizia ele aos que o iam visitar; "sairei daqui quando puder arrastar o resto dos meus dias". Ali ficou durante seis semanas, sem ver a rua nem o céu. Os seus empregados iam prestar-lhe contas, a que ele, com incrível esforço, prestava religiosa atenção. Cortava o coração ver aquele homem, ferido no que havia de mais caro para ele, discutir às vezes um erro de soma ou uma troca de algarismos. Uma lágrima às vezes vinha interromper a operação. O viúvo lutava com o homem do dever.
Ao cabo de seis semanas resolveu sair à rua o infeliz Cosme.
- Não estou curado - dizia ele a um compadre -; mas é preciso obedecer às necessidades da vida.
- Infeliz! - exclamou o compadre apertando-o nos braços.
II
Na véspera de sair foi visitá-lo um moço de vinte e oito anos, que podia ser seu filho, porque o infeliz Cosme contava quarenta e oito. Cosme conhecera o pai de Oliveira e fora seu companheiro nos bons tempos da mocidade. Oliveira afeiçoou-se ao amigo de seu pai, e frequentava-lhe a casa ainda antes do casamento.
- Sabe que vou casar? - disse um dia Cosme a Oliveira.
- Sim? Com quem?
- Adivinhe.
- Não posso.
- Com D. Carlota.
- Aquela moça a quem me apresentou ontem no teatro?
- Justo.
- Dou-lhe os meus parabéns.
Cosme arregalou os olhos de contente.
- Não lhe parece que faço boa escolha?
- Excelente: moça, formosa, rica...
- Um anjo!
Oliveira puxou duas fumaças do charuto e observou:
- Mas como arranjou isso? Nunca me falou em tal. Verdade é que sempre o conheci discreto; e meu pai costumava dizer que o senhor era uma urna inviolável.
- Por que motivo andaria eu a bater com a língua nos dentes?
- Tem razão...
- Este casamento há de dar que falar, porque eu já estou um pouco maduro.
- Oh! Não parece.
- Mas estou; cá tenho já os meus quarenta e cinco. Não os mostro, bem sei; apuro-me no vestir e não tenho um fio de cabelo branco.
- E conta ainda um mérito mais: é experiente.
- Dois méritos: experiente e sossegado. Não estou na idade de andar correndo a via-sacra e dando desgosto à família, que é o defeito dos rapazes. Parece-lhe então que seremos felizes?
- Como dois eleitos do céu.
Cosme, que ainda não era o infeliz Cosme, esfregou as mãos de contentamento e manifestou a opinião de que o seu jovem amigo era um espírito sensato e observador.
Efetuou-se o casamento com assistência de Oliveira, que, apesar da mudança de estado do amigo de seu pai, não deixou de lhe frequentar a casa. De todos os que lá iam era o que tinha maior intimidade. Suas boas qualidades lhe davam jus à estima e veneração.
Desgraçadamente era moço e Carlota era bela. Oliveira, ao cabo de alguns meses, sentiu-se loucamente apaixonado. Era honrado e viu a gravidade da situação. Quis evitar o desastre; deixou de frequentar a casa de Cosme. Cerca de cinquenta dias deixou de lá ir, até que o amigo o encontrou e à viva força o levou a jantar.
A paixão não estava morta nem caminhava para isso; a vista da bela Carlota não fez mais do que converter em incêndio o que já era braseiro.
Eu desisto de contar as lutas em que andou o coração de Oliveira durante todo o tempo que viveu a esposa de Cosme. Evitou ele manifestar nunca à formosa dama o que sentia por ela; um dia, porém, tão patente era o seu amor, que ela claramente lho percebeu. Uma leve sombra de vaidade fez com que Carlota não descobrisse com maus olhos o amor que inspirara ao rapaz. Não tardou porém que a reflexão e o sentimento da honra lhe mostrassem todo o perigo daquela situação. Carlota mostrou-se severa com ele, e este recurso fez ainda mais aumentar as disposições respeitosas em que se achava Oliveira.
- Tanto melhor! - disse ele consigo.
A exclamação de Oliveira queria dizer duas cousas. Era, primeiramente, uma homenagem de respeito à amada do seu coração. Era também uma esperança. Oliveira nutria a doce esperança de que Carlota enviuvasse mais cedo do que supunha o marido, e nesse caso podia ele apresentar a sua candidatura, com a certeza de que recebia uma mulher provadamente virtuosa.
Os acontecimentos dissiparam todos esse castelos; Carlota foi a primeira a sair deste mundo, e a dor de Oliveira não foi menor que a dor do infeliz Cosme. Nem teve ânimo de ir ao enterro; foi à missa, e a muito custo pôde reter as lágrimas.
Agora que seis semanas haviam decorrido depois da terrível catástrofe, Oliveira procurou o infeliz viúvo justamente na véspera do dia em que este saía à rua, como eu tive a honra de lhes dizer.
III
Cosme estava assentado diante da escrivaninha examinando melancolicamente alguns papéis. Oliveira assomou à porta do gabinete. O infeliz viúvo voltou o rosto e encontrou os olhos do amigo. Nenhum deles se moveu; a sombra da moça parecia ter surgido entre ambos. Enfim, o infeliz Cosme levantou-se e atirou-se aos braços do amigo.
Não se sabe bem o tempo que eles gastaram nesta magoada e saudosa atitude. Quando se desprenderam, Oliveira enxugou furtivamente uma lágrima; Cosme levou o lenço aos olhos.
A princípio, evitaram falar da moça; mas o coração trouxe naturalmente aquele assunto de conversa.
Cosme era incansável nos louvores que tecia à finada esposa, cuja perda, dizia ele, não era só irreparável, havia de ser-lhe mortal. Oliveira procurava dar-lhe algumas consolações.
- Oh! - exclamou o infeliz Cosme -, para mim não há consolações. Isto agora já não é viver, é vegetar, é arrastar o corpo e a alma sobre a terra, até o dia em que Deus se compadeça de ambos. A dor que eu sinto cá dentro é um germe da morte; sinto que não posso durar muito tempo. Tanto melhor, meu caro Oliveira; mais depressa irei ter com ela.
- Estou muito longe de lhe censurar esse sentimento - observou Oliveira procurando disfarçar a comoção -. Não conheci eu durante três anos o que valia aquela alma?
- Nunca a houve mais angélica!
Cosme proferiu estas palavras levantando as mãos para o teto, com uma expressão mesclada de admiração e saudade, que abalaria as próprias cadeiras se tivessem ouvidos. Oliveira concordou plenamente com o juízo do amigo.
- Era efetivamente um anjo - disse ele -. Nenhuma mulher teve ainda tantas qualidades juntas.
- Oh! Meu bom amigo! Se soubesse que satisfação me está dando! Neste mundo de interesses e vaidades, ainda há um coração puro, que sabe apreciar os dotes do céu. Carlota era isso mesmo que o senhor está dizendo. Era ainda muito mais. A alma dela, ninguém a conheceu nunca como eu. Que bondade! Que ternura! Que graça infantil! Ao pé destes dons, que severidade! Que singeleza! E enfim, se passarmos, melhor direi, se descermos a outra ordem de virtudes, que amor da ordem! Que amor do trabalho! Que economia!
O infeliz viúvo levou as mãos aos olhos e ficou algum tempo acabrunhado ao peso de tão doces e amargas recordações. Oliveira também estava comovido. O que ainda mais o entristeceu foi reparar que estava sentado na mesma cadeira em que Carlota costumava passar as noites, a conversar com ele e o marido. Cosme levantou enfim a cabeça.
- Perdoe-me - disse ele - estas fraquezas. São naturais. Eu seria um monstro se não chorasse aquele anjo.
Chorar, naquela ocasião, era uma figura poética. O infeliz Cosme tinha os olhos secos.
- Nem já lágrimas tenho - continuou ele traduzindo em prosa o que acabava de dizer -. As lágrimas ao menos são um desabafo; mas este sentir interior, esta tempestade que não rompe, mas que se concentra no coração, isto é pior que tudo.
- Tem razão - disse Oliveira -, deve ser assim e é natural que seja. Não me tenha entretanto por um consolador banal; é necessário não digo esquecê-la, que seria impossível, mas voltar-se para a vida, que é uma necessidade.
Cosme esteve algum tempo calado.
- Já tenho dito isso mesmo - respondeu ele - e sinto que assim acontecerá mais cedo ou mais tarde. Vida é que nunca hei de ter; daqui até a morte é apenas um vegetar. Mas enfim, isso mesmo é preciso...
Oliveira continuou a dizer-lhe algumas palavras de consolação, que o infeliz Cosme ouvia distraído, com os olhos ora no teto, ora nos papéis que tinha diante de si. Oliveira, entretanto, precisava também de quem o consolasse, e não pôde falar muito tempo sem comover-se a si próprio. Seguiu-se um curto silêncio, que o infeliz Cosme foi o primeiro a romper.
- Sou rico - disse ele -, ou antes corre que o sou. Mas de que me servem os bens? A riqueza não me substitui o tesouro que perdi. Mais ainda; essa riqueza ainda aumenta a minha saudade, porque parte dela foi Carlota que ma trouxe. Bem sabe que eu a receberia com um vestido de chita...
- Ora! - disse Oliveira levantando os ombros.
- Bem sei que me faz justiça; mas há invejosos ou caluniadores para quem estes sentimentos são apenas máscaras de interesse. Lastimo essas almas. Esses corações estão podres.
Oliveira concordou plenamente com a opinião do infeliz Cosme.
O viúvo continuou.
- Demais, ainda que eu fosse um homem de interesse, a minha boa Carlota devia tornar-me um amigo. Nunca vi mais nobre desinteresse que o dela. Alguns dias antes de morrer quis fazer testamento. Baldei todos os esforços para impedi-la; ela foi mais forte do que eu. Tive de ceder. Nesse testamento constituiu-me ela seu herdeiro universal. Ah! Eu daria toda a herança por uma semana mais de existência para ela. Uma semana? Que digo? Por uma hora mais!