Conto

Valério

1874

IV

O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heroica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.

Não nos enganemos entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu, nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras cousas que não fossem estas cousas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal, a imagem da aplicação.

Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Periandro: "Não sabes tu que é impossível ao tolo calar-se durante um festim?" O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na polícia, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. "Covilhete sou", responderia o homem, "mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não."

Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.

Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou-lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar, e recolheu-se à tenda, como Aquiles, disposto a não sair dela sem que lhe matassem um Pátroclo. Aconteceu justamente que um parente da mulher recebeu garrote do governo, e o sangue dessa vítima, que gozava de perfeita saúde, reclamou vingança imediata. Pegou na pena e escreveu um livro de duzentas páginas em que dizia cousas do arco-da-velha ao governo e ao país. Quis conservar o mais restrito incógnito; mandou o folheto à imprensa por mão de seu sobrinho, a quem confiou a direção do preparo tipográfico; e aguardava ansioso o dia em que aparecesse a obra e fizesse pasmar o mundo político.

- Olha lá, meu André - dizia-lhe a esposa -, não te vai meter em trabalhos...

- Que trabalhos, Luísa?

- Eu sei! Descompor o governo! Não te podes arriscar a ser preso?

- Isso não me há de acontecer, por desgraça minha! Obter a palma do martírio! Não, não sou tão feliz!

Benzeu-se a esposa, que era temente a Deus e à polícia, enquanto o coronel mandava para a tipografia as provas que o sobrinho lhe trouxe.

Aguardava-se a publicação da obra, que na opinião do autor era uma colubrina de bronze coado, quando se deu o sarau do escrivão e o encontro de Valério. O escrevente prometera lá ir à casa do coronel no dia seguinte, e assim o fez, depois dos trabalhos da imprensa, que terminaram pelas sete ou oito horas.

No cumprimento exato da promessa, influiu acaso a filha do foliculário? Indo à casa do coronel, Valério levava a esperança de avistar-se com a moça? Para ser verdadeiro, devo dizer que não. Era talvez mais poético que assim fosse; mas não era a ideia do rapaz. Valério fazia justiça à sua posição, que era nenhuma. Não nutria a esperança de merecer da moça um momento de atenção; demais, a impressão da noite anterior, conquanto fosse viva, passara depressa, do mesmo modo que se esvoam os sonhos da sorte grande ao proletário que não tem com que comprar um bilhete.

Digamos a verdade toda.

Valério foi exato na execução da sua palavra pela esperança de que o coronel viesse a protegê-lo, e as palavras do escrivão influíram também para isso. Na situação em que se achava, queria mão que o levantasse, amigo que o protegesse. Não tinha mão nem amigo. O coronel pareceu-lhe homem talhado para ajudar um rapaz laborioso e pobre. Valério não quis repelir aquele auxílio da fortuna.

Recebeu-o alegremente o coronel.

- Bem-vindo seja, meu amigo - disse-lhe ele, convidando-o a entrar para a sala -. Cuidei que não viesse.

- Bem sei que é um pouco tarde - respondeu o escrevente -, mas só agora acabei o trabalho.

- Não é por isso... Pensei que não viesse, porque não supunha que um pedido meu pudesse trazê-lo cá tão cedo.

Valério fez um gesto; o coronel interrompeu-lho:

- Já sei o que me vai dizer, e eu, por exceção, creio no seu protesto. Não falemos nisso. Diga-me: toma chá comigo, não?

- Não posso, Sr. coronel.

- Por quê?

- Tenho um trabalho urgente.

- Ainda hoje?

- Sim, senhor.

- Trabalha muito!

- Assim é preciso.

- Pois trabalhará até mais tarde; mas por hoje é meu.

Valério não respondeu, ainda que contrariado com o obséquio. Quanto ao ex-deputado, entrou logo a falar no opúsculo que devia aparecer dentro de oito dias, e de novo perguntou se o achava bem escrito. Ouvida a confirmação de Valério, o coronel não se deteve; e confessou-lhe que era o autor. Valério já devera tê-lo percebido, mas o rapaz, apesar dos trinta anos feitos, era de uma ingenuidade pueril. Cumprimentou o coronel pela obra, e o coronel sorriu com ar de satisfação.

Entrou a conversa pela política dentro. Valério de política apenas sabia alguma cousa que lia nos jornais do Carceller quando lá ia almoçar. Mas era fácil conversar com o coronel; fazia-se o papel de confidente. Tão reservado era o ex-deputado na rua e na Câmara, como expansivo era em casa, principalmente quando o auditório não lhe parecia nímio instruído.

Veio uma mucama dizer que o chá estava pronto.

Quando Valério e o coronel entraram na sala de jantar, já lá estavam sentadas a Sra. D. Luísa e a menina Hélvia. O coronel fez uma apresentação geral do conviva, que não deixou de estremecer quando encontrou os olhos da moça. Esta fitou tranquilamente os seus no rapaz, e pareceu conhecê-lo; fez um esforço de memória e lembrou-se de tê-lo visto na véspera na casa do escrivão.

Nenhum incidente perturbou este chá patriarcal entremeado de observações políticas do coronel e vagos suspiros da filha. A Sra. D. Luísa, sabendo na conversa que Valério nascera no dia da revolução de abril, contou uma anedota do tempo, e o coronel aproveitou o ensejo para dizer a sua opinião sobre as revoluções. Hélvia pouco falou; comeu um biscouto, bebeu uma xícara de chá, olhou três vezes para Valério e pediu licença à mãe para levantar-se por ter dor de cabeça. Concedeu-lha a boa senhora, enquanto o coronel sorria maliciosamente à parte.

Pouco depois retirou-se Valério, mas só depois de prometer ao coronel que o iria ver no dia seguinte de manhã. Foi com efeito no dia seguinte à casa do coronel; eram oito horas da manhã.

- Sabe o que eu desejo? Conheci que o senhor é moço inteligente; queria incumbi-lo da leitura das últimas provas do meu folheto... dando-lhe autorização para emendar o que lhe parecer, porque eu escrevi aquilo à pressa, e agora tenho muitas cousas que me tomam o tempo.

- Com muito prazer - respondeu Valério -, mas eu não creio que se deva emendar mais nada.

- Pode haver, pode haver - insistiu o coronel -. Eu tinha encarregado desse trabalho aquele moço que lá ia, e que é meu sobrinho; mas houve um desacordo de família, e agora... Estamos entendidos?

- Estamos.

V

No dia em que o folheto apareceu, o coronel passou toda a manhã na rua do Ouvidor, conversando com algumas pessoas a respeito do acontecimento do dia. O acontecimento até então estava na imaginação do autor da obra; nas vidraças do Garnier e do Laemmert alguns exemplares, ainda virgens, solicitavam os dois mil-réis dos passantes; o título era auspicioso; os exemplares começaram a correr o mundo. Mas poucos tinham tido tempo de folhear apenas algumas páginas.

Valério viu de longe o coronel, que conversava num grupo; o coronel viu-o também; o rapaz sorriu e caminhou para lá, mas o foliculário ocultou a cara e encostou a boca ao ouvido de um dos circunstantes.

Valério passou sem parar.

Quando à noite, segundo promessa anterior, o revisor se apresentou em casa do coronel, disse-lhe este:

- Olhe, hoje vi-o de longe, e fingi que o não via. Não é conveniente que pareça conhecer-me; eu estou vendido aos deuses infernais.

- Mas que me importa que saibam da honra que V. Exa. me dá? Eu não tenho nada com o governo...

O coronel abanou a cabeça.

- Quem pode afirmar isso? - disse ele -. Aceite o meu conselho; quando me vir, finja que me não conhece; senão, pode ficar comprometido.

Valério prometeu por condescendência. No meio da conversa suspeitou que o conselho do coronel fosse uma evasiva, e que o único desejo dele fosse não manifestar em público as relações que tinha com o escrevente revisor de provas. Mas achou pueril esta razão.

O folheto fez alguma impressão; daí a seis ou sete dias apareceram dois artigos no Jornal do Commercio refutando as asserções do folheto. O autor esfregou as mãos; a mulher abanou a cabeça com tristeza. Quando Valério lá apareceu, disse-lhe o coronel:

- Viu como me esfolaram hoje?

- Vi, Sr. coronel. V. Exa. responde?

- Sem dúvida; e estava justamente agora a acabar umas notas para lhe dar, porque eu ando tão ocupado... Vou dar-lhe as notas, e veja se por elas me faz uma resposta. Realmente é uma maçada... Eu tenho tanto que fazer!... Ande cá ao gabinete.

As notas dadas pelo coronel não valiam cousa nenhuma; mas tendo dito que daria resposta aos dois artigos, foi Valério para casa, trabalhar, depois de tomar chá com o foliculário.

A resposta saiu boa; fez impressão; replicou o escritor governista; treplicou o coronel por boca de Valério; e durante quinze dias teve o público fluminense o seu manjar favorito, que é uma mofina anônima.

Não tardou que Valério compreendesse a causa da amizade do coronel. Evidentemente o homem não escrevia nada, e com certeza não era o autor do folheto. O sobrinho, com quem brigara, era naturalmente o seu secretário; e foi uma ventura encontrar à mão o revisor de provas, porque, em tão melindroso mister, só um homem necessitado e discreto pode substituir um parente amigo.

Tudo isto compreendera Valério, mas para logo refletiu que isso aumentaria a probabilidade de merecer o reconhecimento do coronel, e era justamente o que ele desejava. Refletia mal o rapaz, se contava só com o reconhecimento; era preciso contar também com o medo. Mas Valério não pensou nisso.

Valério encontrava-se muitas vezes com a filha do coronel, e fora dissimulação negar que as graças da moça influíam cada vez mais no ânimo do rapaz. A moça não o amava certamente, nem talvez consentira que ele lho dissesse; mas não recuava quando o rapaz fitava nela os olhos, nem deixava de lhe falar com afabilidade até certo ponto animadora. Hélvia não desprezava nenhum feudo de nenhum regato incógnito.

Este nome de Hélvia, que algum leitor terá achado de mau gosto, fora-lhe posto depois de grave luta entre o pai e a mãe. Queria esta que a rapariga se chamasse Rita, em virtude da devoção que nutria por esse ornamento da corte celeste. O pai, cujos talentos guerreiros não cediam aos talentos políticos, achou que satisfaria a sua consciência dando à filha um nome que resumisse certo caráter belicoso - Joana - em memória da donzela de Orléans. Dizia a mãe que Joana era nome de velha, preconceito este imitado por alguns autores de comédias e romances que só dão às suas velhas uma certa ordem de nomes, como se uma velha não começasse por ser moça e até por ser criança. O pai replicou que, se Joana era nome de velha, Rita era nome de preta. Discutido este gravíssimo ponto, e não chegando os dois a um acordo, foi consultado o padrinho, que serviu de moderador entre as duas opiniões, recusando-as ambas.

- O verdadeiro nome que se lhe há de dar, há de ser Hélvia - disse ele.

- Pior! - exclamou a comadre -. Este nem é nome de gente.

O padrinho era um velho advogado; sorriu com ar de desdém e compaixão, e replicou:

- Não é nome de gente?

Seguiu-se a esta pergunta um movimento oratório de tamanha altura e grandeza, que eu sinto não poder consignar aqui para memória eterna. A conclusão do legista foi a seguinte:

- Hélvia se há de chamar a rapariga, porque foi o nome da maior mulher que honrou a raça humana, mulher imortal que devia ter o busto em todas as cidades e em todos os parlamentos, pois foi ela a autora da maior obra que os séculos ainda conheceram, foi a mãe de Cícero.

Dona Luísa não entendeu a tolice do compadre, e achou que nem Cícero nem sua honrada mãe, que Júpiter guarde, vinha nada ao caso da pequena. Todavia, calou-se. Quanto ao coronel, não perdeu tão boa ocasião de mostrar a sua eloquência doméstica, e assombrar a mulher com um elogio do orador romano.

Assentou-se que se chamaria Hélvia, e assim se batizou a menina na igreja de Santa Rita. Que dúvida teremos de aceitar o nome da rapariga, se já aceitamos os escritos do pai?

VI

Valério convenceu-se um dia de que não era indiferente à rapariga. Foi o caso que, estando ela uma noite a tocar uma melodia assaz triste, o moço disse ao pai que achava a música lindíssima, e o pai, à mesa do chá, comunicou a opinião à rapariga, que sorriu e concordou com Valério. No dia seguinte, achando-se Valério em casa do coronel, a moça foi logo ao piano e tocou a mesma cousa, e assim o fez mais duas ou três vezes.

A única cousa que fazia espanto ao rapaz era a melancolia da moça. Hélvia falava e ria pouco, e, tendo a mãe notado isso em voz alta, compreendeu Valério que a melancolia era recente e alguma cousa havia de ter.

Seria amor por ele? Valério começou a sentir essa doce ilusão, e cem outros incidentes, como o do piano, vieram dar alento ao coração ambicioso do rapaz, sem audiência do juízo que lhe poria veto às esperanças.

Valério entretanto julgava que, se a rapariga lhe aceitasse o amor, fácil seria obter o consentimento do pai. O coronel revelava a todos os instantes que prestava à opinião e ao juízo do moço uma homenagem de respeito. Sem intenção de o dominar, Valério influía no espírito do coronel, a ponto de causar ciúme à mulher, que via levantar-se em frente de si uma autoridade estranha e ilegítima.

Valério era o oráculo de Delfos do coronel, que o consultava a respeito de todas as cousas, até as mais minuciosas. Admirava-se o rapaz de não ter sido um espírito daqueles aproveitado pelos partidos que acham sempre auxiliares deste gênero, e os empregam com proveito de ambas as partes.

Naturalmente a gravidade muda do ex-deputado foi a sarça ardente que o escondeu aos olhos profanos; e a maleabilidade do homem atravessou incógnita o Parlamento.

Resolvera o coronel escrever segundo opúsculo, e Valério foi convidado a redigir as notas esparsas do autor que, a julgar pelo trabalho alegado, era o indivíduo mais laborioso das duas Américas.

- Desta vez - disse o coronel -, não é admitido que me recuse pagar-lhe; já não se trata só de artigos, trata-se de um folheto que lhe há de levar tempo.

- Se é com essa condição - respondeu Valério -, não lhe faço o trabalho.

- Mas...

- Tenho dito.

O coronel apertou-lhe a mão com aquela energia de um homem que, inesperadamente, faz uma economia de cem ou duzentos mil-réis.

- O senhor é um homem admirável - disse ele ao rapaz.

- Não me disse que me quer por amigo?

- Sem dúvida.

- Pois deixe-me colher o fruto da amizade, que é servir os amigos.

Começou o rapaz a redigir o novo opúsculo. Valério tinha algumas qualidades de estilo, posto não tivesse estilo feito, nem podia tê-lo, que só o trabalho e a meditação podem provar as prendas literárias. No entanto, era sóbrio, enérgico, claro e animado quando escrevia, e para um folheto político estas qualidades são preciosas. O trabalho ia adiantado, e o coronel já tinha ouvido dois capítulos que julgara excelentes.

Uma tarde, saindo da casa do coronel, aonde fora de passagem, Valério encontrou junto à porta da sala a menina Hélvia, que lhe disse:

- Venha antes de cá estar o papai.

Admirado com estas palavras, Valério não respondeu logo. Contemplava a moça e procurava certificar-se se estava acordado ou sonhando.

Ela repetiu com voz doce e melancólica:

- Vem, sim?

- Venho.

Estendeu-lhe a mão; ela lhe estendeu a sua; apertaram-se com força. Valério desceu a escada como se descesse das nuvens. Quando tornou em si, estava na esquina da rua.

Não era paixão que sentisse pela moça. Alguma simpatia, sim; esboço de amor. No entanto, ouvindo aquelas palavras, viu apresentar-se-lhe uma visão de felicidade; imaginou que a moça ardia por ele; e que há de melhor neste mundo do que ser amado? A vida é tão curta, os homens, tão maus, os acontecimentos, tão incertos, que uma criatura que nos ama é a imagem da misericórdia de Deus. De quantos ódios, invejas, malquerenças, calúnias não consola o amor de uma mulher? Tudo isso anteviu o espírito de Valério, que foi à tipografia mais leve que um pássaro e cheio de confiança no futuro.

No dia seguinte procurou Valério a hora em que o coronel não estivesse em casa, e, para melhor certificar-se, postou-se à esquina desde as oito horas da manhã. Ali esperou duas longas horas. Tamanha paciência, só um amante a teria, a não ser um credor. Às dez horas viu sair o coronel de cabeça alta e brandindo com gesto, que pretendia ser gracioso, uma bengala mais grave que o dono. Valério investiu para a casa.

No corredor estacou.

Qualquer que fosse mais corajoso estacaria também; não se acode a tais entrevistas sem um grande abalo, e não há coragem de Aquiles que não abata as armas ao aproximar-se de uma menina que parece querer amar.

Hesitou se devia subir; a consciência disse-lhe que era talvez inconveniente. Era uma formalidade da consciência; ela bem sabia que não é forte quando está doente do coração. O coração disse ao rapaz que subisse.

O rapaz subiu.

Hélvia, que da janela o vira entrar, já o esperava no patamar.

- Papai saiu agora mesmo - disse ela, entrando com Valério na sala.

- Vi-o sair - respondeu o moço corando muito.

Daquelas duas criaturas a que estava tranquila era Hélvia; a que estava comovida e envergonhada era Valério. Trocavam-se os papéis.

Depois que se sentaram, disse Hélvia:

- Já amou?

A alma de Valério deu um pulo ao ouvir estas palavras. O moço não soube que responder. Fitou os olhos da moça, abaixou-os depois como a donzela que ouve uma confissão de amor. Ela repetiu a pergunta. Valério murmurou:

- Amo.

- Ainda bem! - disse ela -. Compreender-me-á então; só quem amou, compreenderá o passo que dei.

- É inútil defender-se - disse Valério -; eu agradeço-lhe até esse passo.

- Tanto melhor! Obrigada!

Hélvia soltou estas palavras com voz trêmula; duas lágrimas começaram a tremer-lhe nos olhos, eram as avançadas de uma legião de lágrimas que estavam a saltar-lhe e não se detiveram.

Valério levantou-se e correu a Hélvia, quando esta, pondo a cara nas mãos, chorava e soluçava como se uma grande dor lhe apertasse o coração. Animava-se a estátua; aquela que parecia de gelo era de fogo.

Houve um prolongado silêncio. A moça enxugou os olhos, e Valério sentou-se triste. Triste, porque as lágrimas de Hélvia queriam dizer que não se tratava de um amor nascente, mas talvez de um amor contrariado. Compreendeu de um lance que era chamado como salvador; outro talvez se sentisse humilhado; Valério, não. Deixou que a moça pudesse falar e disse-lhe:

- Que posso fazer para que seja feliz?

- Tudo.

- Juro-lhe que o farei.

Hélvia contou então ao rapaz que amava o primo, e era amada por ele; mas que, tendo o pai brigado com ele, lhe proibira voltar à casa e ela perdera a esperança de que o pai consentisse jamais no casamento. Queria que Valério interviesse para que o primo voltasse à casa e se reconciliasse com o coronel. O resto viria por si.

- Há muito que lhe queria falar; mas era impossível. Aproveitei a indisposição da mamãe, que desde ontem está na cama, para lhe dizer isto.

- Por que me não escreveu?

- Não podia, e, ainda que pudesse, não tinha certeza de convencê-lo com algumas palavras frias escritas num papel.

Valério prometeu interceder em favor do namorado proscrito. Para isso tomou informações a respeito do rapaz para ir à casa dele. Depois mudou de plano. Advertiu que entender-se com ele era dar à intervenção um caráter de serviço pouco delicado, e achou melhor servir unicamente à moça, o que lhe parecia mais próprio.

VII

O coronel resistiu ao primeiro ataque.

- Pede-me por um pelintra - disse ele a Valério -, não conhece aquela bisca; é um peralta que me não respeita, e até chegou a ter a petulância de amar-me cá a pequena.

- Está feito, ele é rapaz.

- Pois será, será; mas eu não dou minha filha a um valdevinos daquela laia.

- Mas eu desejava...

- Servi-lo-ei noutra cousa, nisto não.

Valério calou-se; achou melhor adiar o ataque para mais tarde. O coronel ainda falou a respeito do sobrinho, e vendo que Valério nada mais dizia, calou-se também.

Ao cabo de cinco dias resolveu falar-lhe outra vez; mas dessa vez foi o coronel quem primeiro tocou no assunto.

- Ainda pensa no tratante do meu sobrinho?

- Ainda. E o senhor?

- Eu estou na mesma.

- Perdão, Sr. coronel; eu não creio que seu sobrinho mereça tanto ódio; fez algumas extravagâncias de rapaz, mas... é um caráter... quero dizer, é um sobrinho, um parente.

- Veja lá; nem o senhor se atreve a elogiá-lo; apenas o desculpa. Conhece-o bem?

Valério hesitou; o coronel, que fizera a pergunta com intenção de perscrutar donde vinha o empenho, compreendeu logo que Valério estava influenciado pela filha.

- Conheço-o alguma cousa - disse finalmente Valério -; e não acho que seja um rapaz perdido.

- Há de cá chegar. Não falemos mais nisto.

Valério compreendeu a necessidade de falar ao rapaz, a fim de não comprometer a moça, caso alcançasse a reconciliação. Jaime recebeu-o com alguma indiferença; estimou entretanto que a rapariga tivesse pedido por ele, e disse que a amava loucamente. Este loucamente foi dito com a mesma tranquilidade com que ele diria: "Está muito calor!"

- Pobre moça! - disse Valério consigo.

O coronel foi o primeiro a renovar o assunto. Outro mais sagaz que Valério, ou mais experimentado, teria compreendido que o coronel estava disposto a reconciliar-se com o sobrinho, e apenas recusava para ser vencido.

Foi o que aconteceu no fim de um mês. O coronel consentiu na reconciliação; e Valério atribuiu isso ao prazer que lhe causou o novo folheto político que lhe levara pronto. Foi Valério quem conduziu Jaime à casa do coronel e assistiu à reconciliação do tio com o sobrinho, que foi glacial e indiferente.

Hélvia apertou-lhe a mão com reconhecimento:

- Devo-lhe a vida! - disse ela.

- Eu devo-lhe a felicidade de a ter feito feliz - respondeu Valério.

O moço dizia a verdade. Tinha certa inclinação pela moça; mas os seus sentimentos generosos venceram tudo; e o seu amor nascente desapareceu diante da glória e do prazer de tornar a moça feliz.

Hélvia não perdeu tempo. Disse ao primo que a pedisse ao pai; e este, depois de alguma recusa, mais aparente que real, concedeu-lha.

Nesse ínterim, adoeceu Valério. O casamento efetuou-se quando ele se achava de cama, e no meio da impressão produzida pelo folheto, que ninguém deixou de atribuir ao coronel.

A doença de Valério foi longa e dolorosa; durou uns dois meses; uns vizinhos cuidaram dele e um médico o curou de graça. Quando o rapaz se levantou da cama, foi ao cartório, onde lhe disse o escrivão que, tendo admitido outro escrevente por necessidade de serviço, não podia nesse momento admiti-lo, mas que esperasse algum tempo. A tipografia ainda lhe deu algumas provas para ler.

Admirou-se Valério de que o coronel não o procurasse, mas pensou que talvez não soubesse da sua moléstia e o supusesse até indiferente, pois sem razão deixara a casa. Foi procurar o coronel. Achou-o aborrecido e zangado; disse-lhe que estivera doente, ao que o coronel não atendeu muito, sem dúvida por estar preocupado.

A existência do moço tinha agora um caráter sério. Como prover a todas as suas despesas, com o mesquinho ordenado que obtinha da imprensa? Por felicidade disseram-lhe que o coronel aderira ao programa ministerial, mediante o emprego do sobrinho e alguns favores mais. Valério lembrou-se de procurá-lo e dizer-lhe em que posição se achava.

Justamente no dia em que se preparava para isso, um dos vizinhos se lhe apresentou em casa dizendo que fizera alguma despesa com a moléstia de Valério e desejava ser embolsado. Coincidiu isto com a entrada do caixeiro da botica que lhe foi levar uma conta. Ambas as dívidas orçavam por duzentos mil-réis. Onde os iria buscar o rapaz? Prometeu que pagaria as dívidas da moléstia e saiu para imaginar um meio.

Nenhum lhe ocorreu.

O rapaz estava só no mundo.

Só? Lembrou-lhe de repente o coronel; e afoutamente se encaminhou para lá. Expôs-lhe a situação e a escassez de seu emprego, e ao mesmo tempo pediu duzentos mil-réis adiantados.

- Duzentos mil-réis, não os tenho comigo - respondeu o coronel -. O casamento de minha filha obrigou-me a muitas despesas; mas daqui a uma semana apareça cá. Quanto ao emprego, falarei ao ministro, mas creio que não é fácil. O governo quer sinceramente economias (o folheto dissera justamente o contrário), e só dificilmente se pode abrir ensejo a um serviço destes. Contudo, confie em mim. Vou ver se lhe posso fazer alguma cousa.

Valério saiu um pouco desanimado, mas por outro lado consolado. Tinha certeza de receber os duzentos mil-réis para ocorrer à divida imediatamente.

No fim de uma semana voltou lá.

O coronel não estava em casa.

Voltou de noite; o coronel mandara dizer que dormia fora.

Zangou-se o rapaz contra o destino; mas resignou-se e no dia seguinte foi à casa do coronel. Não o encontrou. O mesmo aconteceu nos cinco dias seguintes; Valério suspeitou que o coronel não lhe quisesse falar.

Ao cabo de seis dias, encontrou-o no Rossio.

- Que é feito? - disse-lhe o coronel.

- Tenho ido à sua casa, mas não tenho tido a felicidade de encontrá-lo - respondeu Valério.

- Não me tenho esquecido do senhor - disse o coronel -; falei a um dos ministros e prometeu-me que veria isso. Tenha paciência, espere; pode esperar alguns meses, mas eu confio que se pode fazer alguma cousa. Adeus!

Valério ficou a olhar para ele sem articular palavra. Dos duzentos mil-réis não disse o coronel cousa nenhuma. Valério entendeu que não devia falar neles. Quanto ao emprego, viu o moço que era tão problemático como os duzentos mil-réis. Abriu-se-lhe um sorriso triste nos lábios, ainda pálidos da doença, e seguiu cabisbaixo para casa.

Desesperando de achar meio de pagar as dívidas como queria, propôs aos dous credores, que lhes daria uma diminuta mensalidade, tirada do pouco que fazia como revisor de provas. Os credores franziram a testa, mas aceitaram; era o meio de não perder o dinheiro.

Entregou-se Valério todo ao trabalho, e começou a cumprir à risca a promessa que fizera. Dois golpes acabaram, entretanto, por lhe abater completamente o ânimo. Um foi o incêndio na tipografia. Estava Valério em casa quando soube do desastre; eram dez horas da manhã. Seguiu para o lugar; achou a casa em ruínas. Os tipos ficaram todos fundidos; o dono do estabelecimento estava quase doudo.

Abatido, desvairado, Valério deixou o lugar do sinistro e entrou a andar ao acaso. Na rua do Cano viu de longe a menina Hélvia com o marido. Aproximou-se como se visse uma tábua de salvação. Aquela felicidade dos dous consortes era obra dele; na aflição em que estava, podia, sem afronta para si, receber o salário da obra. Não reparou que estava, comparativamente, um tanto maltrapilho.

Apressou o passo e ia articular uma palavra, quando os dous, olhando para ele, voltaram imperturbavelmente a esquina.

Valério, que cometera outras tolices na sua vida, coroou a obra indo atirar-se ao mar.

A+
A-