Conto

Valério

1874

III

Às dez e meia apareceu o coronel Borges, acompanhado da família, que se compunha da mulher, senhora de quarenta e cinco outonos, e de uma filha, menina de dezoito primaveras. O coronel pertencia a essa classe indefinível de homens que estão entre a primavera e o outono, nem velhos, nem moços, mistura de Saturno e Antínous.

O escrivão recebeu o coronel com vivas demonstrações de amizade e respeito, às quais o coronel respondeu com esse ar solene e grave das capacidades e das nulidades. A entrada dos novos convidados fez impressão na sala; sentia-se a superioridade social do homem que, além do mais, tinha a ventura de ser pai de uma formosíssima filha. Os rapazes sufocaram na garganta um grito de admiração; e as moças disfarçaram um gesto de despeito.

Valério deu lugar a que passasse a família; a filha do coronel passou rente com ele. Ia cheia de perfumes e bálsamos; o rapaz respirou-lhos sem querer, e pela primeira vez sentiu a vertigem que pode causar uma mulher quando sabe escolher os aromas do seu uso. Não lhe escapou a pasmosa beleza da moça. Acompanhou com os olhos aquela figura elegante como uma palmeira, flexível como um junco, temperando com a graça do gesto a soberania do porte. A moça sentou-se entre a mãe e a senhora do escrivão. Pôde ser contemplada a gosto por todos. Era excessivamente clara, uma dessas brancuras de mármore, aspecto de estátua onde se não supõe haver coração. Tinha olhos negros, plácidos embora rutilantes, resguardados por longos cílios que ela às vezes apertava, menos por defeito de vista que por sestro. Penteava-se segundo a moda do tempo, mas sem afetação. Sorria discretamente, e quanto bastava para mostrar duas ordens de dentes corretos e alvos. O seu vestuário não exagerava a moda corrente, mas era luxuoso e perfeitamente acomodado à elegância das suas formas.

Valério contemplava admirado a beleza da moça e o mesmo faziam os demais rapazes, que já se preparavam para suplicar-lhe a honra de dançar uma polca ou uma quadrilha. Parece que a rapariga estava acostumada àqueles triunfos, porque, apenas se sentou, correu os olhos pela sala sorrindo com um ar de satisfação íntima; a mãe também se alegrou, e quanto ao pai, depois de conversar um pouco com alguns sujeitos a quem conhecia, foi para o interior da casa a convite do escrivão, que queria obrigá-lo a comer uns acepipes expressamente preparados para esse fim.

Não tardou que a filha do coronel dançasse, e Valério pôde admirar-lhe a graça, a reserva, a elegância dos seus movimentos. O pobre escrevente não lhe tirava os olhos de cima; duas ou três vezes encontraram-se os seus com os dela; Valério corava de vexado, como se o surpreendessem a cometer um crime. Quanto à moça, não se perturbava nem parecia zangar-se; olhava também para Valério com um olhar longo e tranquilo. O rapaz chegou a supor que era um movimento de simpatia, e Deus sabe que sonhos não lhe passavam então pelo espírito atordoado; a verdade, porém, é que a moça gostava de ser admirada; era uma dessas belezas capazes de vender o patrimônio do amor por um prato de admirações.

À meia-noite foi servida uma ceia volante; Valério deixou discretamente o seu posto e foi para dentro descansar e comer alguma cousa. Confessou de si para si que estava com fome. Sentou-se ao pé de uma mesa pequena, recebeu de um criado uns pastelinhos, e começou a ruminar tranquilamente. Cumpre acrescentar que ao bom do rapaz repugnou ver comer a jovem rainha da noite. Era escrúpulo de calouro. É mais poético não assistir à operação dos queixos quando se ama a uma mulher, mas - ai triste! - nem por isso fica suprimida a operação. O estômago não tem sexo; e a natureza tem exigências fatais. Aqueles lábios, que nos parecem exclusivamente feitos para risos e beijos, são a entrada indispensável de covilhetes e pastéis. É possível que na próxima edição da obra, o autor da criação corrija esse gravíssimo ponto; mas por enquanto a obra há de ser lida assim... ou morre de traça nos livreiros.

Perto do escrevente estavam algumas pessoas, ocupadas também em dar que fazer ao estômago, exceto o coronel, que, tendo já comido, conversava paternalmente com o escrivão e mais dois sujeitos.

- E quando se publica esse folheto? - perguntou o escrivão.

- Creio que breve - respondeu o coronel -; o autor, que, como lhe disse, é meu amigo íntimo, promete que dentro de uma semana estará à venda.

- Estou ansioso por ver isso! - exclamou um velho com feições de militar -. Ataca o governo?

- Se eu lhe digo que é uma filípica! - tornou o coronel -; é um opúsculo de fazer época.

- Disso precisamos nós.

Os ímpetos de oposicionista do militar não agradavam ao escrivão, que tinha filho em não sei que secretaria do Estado. Por isso tratava de desviar a conversa do assunto do opúsculo.

- Sempre queria vê-lo dançar, coronel!

- Qual! Já não é para mim.

- Como se chama o opúsculo? - perguntou o militar.

- Não sei se devo confiar tanta cousa; o autor não me autorizou... mas... é verdade que daí a uma semana... chama-se o opúsculo: Abaixo as máscaras!

- Magnifico! Magnifico título! - exclamou o militar.

Ouvindo o título do opúsculo, Valério estremeceu, e prestou à conversa mais atenção do que até ali. O velho militar continuou a elogiar o título, e insistiu com o coronel para que dissesse onde poderia ir comprar o opúsculo quando ele aparecesse.

- Suponho que em todas as livrarias; mas se quer eu lhe arranjarei um e mandar-lho-ei antes de publicado.

- Tanto favor! A obra é bem escrita?

- Dizem que sim; eu não entendo de estilos.

Sem medir todo o alcance da inconveniência, Valério interrompeu a conversa dizendo:

- Entendo eu um pouco; e acho que o estilo do opúsculo de que se trata é excelente.

Houve um súbito silêncio logo depois das palavras do escrevente. O escrivão fez uma careta de desgosto vendo que Valério se intrometia aonde ninguém o chamara; e o coronel, disfarçando quanto podia um sorriso delator, perguntou ao vizinho quem era aquele sujeito; o vizinho disse que o não conhecia. O coronel voltou-se para Valério.

- Conhece então a obra? - perguntou-lhe.

- Conheço.

- Conhece o autor?

- Não, senhor.

- Então, houve traição...

- Não, senhor; eu sou revisor de provas na tipografia onde se está imprimindo o folheto.

Novo silêncio e mais prolongado. O escrivão tinha a cara mais vermelha que um pimentão; se um olhar fulminasse, Valério já não era gente, pois o que o escrivão lhe lançou continha raios de raiva, despeito, nojo. Traduzido em vulgar, o olhar do escrivão queria dizer:

- Pois este pelintra vem ter a honra de jantar comigo, ver dançar os outros, estar aqui confundindo com pessoas de certa ordem, e se há de ouvir e calar, responde quando ninguém lhe pergunta, e por fim de contas, confessa-se revisor das provas!

Valério não viu o olhar do escrivão, nem compreendeu o silêncio de todos.

- Gosto imenso do estilo do folheto, e creio que há de fazer época.

- Eu assim penso - disse o coronel sorrindo para Valério -; mas, quem assim fala e julga não é decerto um simples revisor...

- Sou também escrevente no cartório do Sr. Z.

- Ah! Escrevente e revisor! Mas não é isso bastante; vejo que tem humanidades... estudou...

- Muito pouco... e há muito tempo.

- Mas tem o gosto apurado...

- Não sei; eu digo o que me parece.

- Descontaremos a modéstia - disse o coronel -; vejo que tem certos estudos... Quer um charuto?...

- Não fumo.

- É um vício; corrija-se dele. Charutos, meus senhores?... Hoje fuma-se por toda a parte... Pensa então que o folheto tem bom estilo?

- Excelente.

- É a opinião de algumas pessoas que leram o folheto; eu confesso, de estilos não sei.

- Nem eu - disse o militar.

A situação de Valério estava um pouco salva; a bondade com que o coronel tratava ao escrevente teve o dom de acalmar os furores do escrivão, que já trocava palavras com o rapaz; e quando viu levantar-se o coronel de braço com Valério, a indiferença do escrivão tornou-se em viva simpatia.

Valério pôde contemplar ainda durante meia hora a interessante filha do coronel, que durante essa noite dançara alegremente como quem não tem cuidados no futuro nem saudades do passado.

Depois de despedir-se do escrivão, o coronel apertou a mão ao escrevente, dizendo-lhe:

- Não se esquece?

- Não, senhor.

- Nº 14.

Ninguém ouviu estas palavras do coronel ao rapaz; mas o escrivão adivinhou que alguma cousa íntima se passara entre o rapaz e o coronel.

- Cultive esta amizade - disse o escrivão a Valério, quando o coronel saiu -; é um excelente homem e dotado de uma inteligência brilhante; frequente esta roda, que vai bem.

IV

O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heroica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.

Não nos enganemos entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu, nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras cousas que não fossem estas cousas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal, a imagem da aplicação.

Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Periandro: "Não sabes tu que é impossível ao tolo calar-se durante um festim?" O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na polícia, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. "Covilhete sou", responderia o homem, "mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não."

Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.

Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou-lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar, e recolheu-se à tenda, como Aquiles, disposto a não sair dela sem que lhe matassem um Pátroclo. Aconteceu justamente que um parente da mulher recebeu garrote do governo, e o sangue dessa vítima, que gozava de perfeita saúde, reclamou vingança imediata. Pegou na pena e escreveu um livro de duzentas páginas em que dizia cousas do arco-da-velha ao governo e ao país. Quis conservar o mais restrito incógnito; mandou o folheto à imprensa por mão de seu sobrinho, a quem confiou a direção do preparo tipográfico; e aguardava ansioso o dia em que aparecesse a obra e fizesse pasmar o mundo político.

- Olha lá, meu André - dizia-lhe a esposa -, não te vai meter em trabalhos...

- Que trabalhos, Luísa?

- Eu sei! Descompor o governo! Não te podes arriscar a ser preso?

- Isso não me há de acontecer, por desgraça minha! Obter a palma do martírio! Não, não sou tão feliz!

Benzeu-se a esposa, que era temente a Deus e à polícia, enquanto o coronel mandava para a tipografia as provas que o sobrinho lhe trouxe.

Aguardava-se a publicação da obra, que na opinião do autor era uma colubrina de bronze coado, quando se deu o sarau do escrivão e o encontro de Valério. O escrevente prometera lá ir à casa do coronel no dia seguinte, e assim o fez, depois dos trabalhos da imprensa, que terminaram pelas sete ou oito horas.

No cumprimento exato da promessa, influiu acaso a filha do foliculário? Indo à casa do coronel, Valério levava a esperança de avistar-se com a moça? Para ser verdadeiro, devo dizer que não. Era talvez mais poético que assim fosse; mas não era a ideia do rapaz. Valério fazia justiça à sua posição, que era nenhuma. Não nutria a esperança de merecer da moça um momento de atenção; demais, a impressão da noite anterior, conquanto fosse viva, passara depressa, do mesmo modo que se esvoam os sonhos da sorte grande ao proletário que não tem com que comprar um bilhete.

Digamos a verdade toda.

Valério foi exato na execução da sua palavra pela esperança de que o coronel viesse a protegê-lo, e as palavras do escrivão influíram também para isso. Na situação em que se achava, queria mão que o levantasse, amigo que o protegesse. Não tinha mão nem amigo. O coronel pareceu-lhe homem talhado para ajudar um rapaz laborioso e pobre. Valério não quis repelir aquele auxílio da fortuna.

Recebeu-o alegremente o coronel.

- Bem-vindo seja, meu amigo - disse-lhe ele, convidando-o a entrar para a sala -. Cuidei que não viesse.

- Bem sei que é um pouco tarde - respondeu o escrevente -, mas só agora acabei o trabalho.

- Não é por isso... Pensei que não viesse, porque não supunha que um pedido meu pudesse trazê-lo cá tão cedo.

Valério fez um gesto; o coronel interrompeu-lho:

- Já sei o que me vai dizer, e eu, por exceção, creio no seu protesto. Não falemos nisso. Diga-me: toma chá comigo, não?

- Não posso, Sr. coronel.

- Por quê?

- Tenho um trabalho urgente.

- Ainda hoje?

- Sim, senhor.

- Trabalha muito!

- Assim é preciso.

- Pois trabalhará até mais tarde; mas por hoje é meu.

Valério não respondeu, ainda que contrariado com o obséquio. Quanto ao ex-deputado, entrou logo a falar no opúsculo que devia aparecer dentro de oito dias, e de novo perguntou se o achava bem escrito. Ouvida a confirmação de Valério, o coronel não se deteve; e confessou-lhe que era o autor. Valério já devera tê-lo percebido, mas o rapaz, apesar dos trinta anos feitos, era de uma ingenuidade pueril. Cumprimentou o coronel pela obra, e o coronel sorriu com ar de satisfação.

Entrou a conversa pela política dentro. Valério de política apenas sabia alguma cousa que lia nos jornais do Carceller quando lá ia almoçar. Mas era fácil conversar com o coronel; fazia-se o papel de confidente. Tão reservado era o ex-deputado na rua e na Câmara, como expansivo era em casa, principalmente quando o auditório não lhe parecia nímio instruído.

Veio uma mucama dizer que o chá estava pronto.

Quando Valério e o coronel entraram na sala de jantar, já lá estavam sentadas a Sra. D. Luísa e a menina Hélvia. O coronel fez uma apresentação geral do conviva, que não deixou de estremecer quando encontrou os olhos da moça. Esta fitou tranquilamente os seus no rapaz, e pareceu conhecê-lo; fez um esforço de memória e lembrou-se de tê-lo visto na véspera na casa do escrivão.

Nenhum incidente perturbou este chá patriarcal entremeado de observações políticas do coronel e vagos suspiros da filha. A Sra. D. Luísa, sabendo na conversa que Valério nascera no dia da revolução de abril, contou uma anedota do tempo, e o coronel aproveitou o ensejo para dizer a sua opinião sobre as revoluções. Hélvia pouco falou; comeu um biscouto, bebeu uma xícara de chá, olhou três vezes para Valério e pediu licença à mãe para levantar-se por ter dor de cabeça. Concedeu-lha a boa senhora, enquanto o coronel sorria maliciosamente à parte.

Pouco depois retirou-se Valério, mas só depois de prometer ao coronel que o iria ver no dia seguinte de manhã. Foi com efeito no dia seguinte à casa do coronel; eram oito horas da manhã.

- Sabe o que eu desejo? Conheci que o senhor é moço inteligente; queria incumbi-lo da leitura das últimas provas do meu folheto... dando-lhe autorização para emendar o que lhe parecer, porque eu escrevi aquilo à pressa, e agora tenho muitas cousas que me tomam o tempo.

- Com muito prazer - respondeu Valério -, mas eu não creio que se deva emendar mais nada.

- Pode haver, pode haver - insistiu o coronel -. Eu tinha encarregado desse trabalho aquele moço que lá ia, e que é meu sobrinho; mas houve um desacordo de família, e agora... Estamos entendidos?

- Estamos.

V

No dia em que o folheto apareceu, o coronel passou toda a manhã na rua do Ouvidor, conversando com algumas pessoas a respeito do acontecimento do dia. O acontecimento até então estava na imaginação do autor da obra; nas vidraças do Garnier e do Laemmert alguns exemplares, ainda virgens, solicitavam os dois mil-réis dos passantes; o título era auspicioso; os exemplares começaram a correr o mundo. Mas poucos tinham tido tempo de folhear apenas algumas páginas.

Valério viu de longe o coronel, que conversava num grupo; o coronel viu-o também; o rapaz sorriu e caminhou para lá, mas o foliculário ocultou a cara e encostou a boca ao ouvido de um dos circunstantes.

Valério passou sem parar.

Quando à noite, segundo promessa anterior, o revisor se apresentou em casa do coronel, disse-lhe este:

- Olhe, hoje vi-o de longe, e fingi que o não via. Não é conveniente que pareça conhecer-me; eu estou vendido aos deuses infernais.

- Mas que me importa que saibam da honra que V. Exa. me dá? Eu não tenho nada com o governo...

O coronel abanou a cabeça.

- Quem pode afirmar isso? - disse ele -. Aceite o meu conselho; quando me vir, finja que me não conhece; senão, pode ficar comprometido.

Valério prometeu por condescendência. No meio da conversa suspeitou que o conselho do coronel fosse uma evasiva, e que o único desejo dele fosse não manifestar em público as relações que tinha com o escrevente revisor de provas. Mas achou pueril esta razão.

O folheto fez alguma impressão; daí a seis ou sete dias apareceram dois artigos no Jornal do Commercio refutando as asserções do folheto. O autor esfregou as mãos; a mulher abanou a cabeça com tristeza. Quando Valério lá apareceu, disse-lhe o coronel:

- Viu como me esfolaram hoje?

- Vi, Sr. coronel. V. Exa. responde?

- Sem dúvida; e estava justamente agora a acabar umas notas para lhe dar, porque eu ando tão ocupado... Vou dar-lhe as notas, e veja se por elas me faz uma resposta. Realmente é uma maçada... Eu tenho tanto que fazer!... Ande cá ao gabinete.

As notas dadas pelo coronel não valiam cousa nenhuma; mas tendo dito que daria resposta aos dois artigos, foi Valério para casa, trabalhar, depois de tomar chá com o foliculário.

A resposta saiu boa; fez impressão; replicou o escritor governista; treplicou o coronel por boca de Valério; e durante quinze dias teve o público fluminense o seu manjar favorito, que é uma mofina anônima.

Não tardou que Valério compreendesse a causa da amizade do coronel. Evidentemente o homem não escrevia nada, e com certeza não era o autor do folheto. O sobrinho, com quem brigara, era naturalmente o seu secretário; e foi uma ventura encontrar à mão o revisor de provas, porque, em tão melindroso mister, só um homem necessitado e discreto pode substituir um parente amigo.

Tudo isto compreendera Valério, mas para logo refletiu que isso aumentaria a probabilidade de merecer o reconhecimento do coronel, e era justamente o que ele desejava. Refletia mal o rapaz, se contava só com o reconhecimento; era preciso contar também com o medo. Mas Valério não pensou nisso.

Valério encontrava-se muitas vezes com a filha do coronel, e fora dissimulação negar que as graças da moça influíam cada vez mais no ânimo do rapaz. A moça não o amava certamente, nem talvez consentira que ele lho dissesse; mas não recuava quando o rapaz fitava nela os olhos, nem deixava de lhe falar com afabilidade até certo ponto animadora. Hélvia não desprezava nenhum feudo de nenhum regato incógnito.

Este nome de Hélvia, que algum leitor terá achado de mau gosto, fora-lhe posto depois de grave luta entre o pai e a mãe. Queria esta que a rapariga se chamasse Rita, em virtude da devoção que nutria por esse ornamento da corte celeste. O pai, cujos talentos guerreiros não cediam aos talentos políticos, achou que satisfaria a sua consciência dando à filha um nome que resumisse certo caráter belicoso - Joana - em memória da donzela de Orléans. Dizia a mãe que Joana era nome de velha, preconceito este imitado por alguns autores de comédias e romances que só dão às suas velhas uma certa ordem de nomes, como se uma velha não começasse por ser moça e até por ser criança. O pai replicou que, se Joana era nome de velha, Rita era nome de preta. Discutido este gravíssimo ponto, e não chegando os dois a um acordo, foi consultado o padrinho, que serviu de moderador entre as duas opiniões, recusando-as ambas.

- O verdadeiro nome que se lhe há de dar, há de ser Hélvia - disse ele.

- Pior! - exclamou a comadre -. Este nem é nome de gente.

O padrinho era um velho advogado; sorriu com ar de desdém e compaixão, e replicou:

- Não é nome de gente?

Seguiu-se a esta pergunta um movimento oratório de tamanha altura e grandeza, que eu sinto não poder consignar aqui para memória eterna. A conclusão do legista foi a seguinte:

- Hélvia se há de chamar a rapariga, porque foi o nome da maior mulher que honrou a raça humana, mulher imortal que devia ter o busto em todas as cidades e em todos os parlamentos, pois foi ela a autora da maior obra que os séculos ainda conheceram, foi a mãe de Cícero.

Dona Luísa não entendeu a tolice do compadre, e achou que nem Cícero nem sua honrada mãe, que Júpiter guarde, vinha nada ao caso da pequena. Todavia, calou-se. Quanto ao coronel, não perdeu tão boa ocasião de mostrar a sua eloquência doméstica, e assombrar a mulher com um elogio do orador romano.

Assentou-se que se chamaria Hélvia, e assim se batizou a menina na igreja de Santa Rita. Que dúvida teremos de aceitar o nome da rapariga, se já aceitamos os escritos do pai?

A+
A-