Conto

Valério

1874

Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em dezembro de 1874 e em janeiro, fevereiro e março de 1875, assinado por Job. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original até o fim do capítulo IV. Os capítulos V, VI e VII não estão disponíveis na hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, que, até a presente data (22 de junho de 2024), não disponibilizou eletronicamente o volume do Jornal das Famílias referente a março de 1875, no qual se encontram esses três capítulos. O cotejo foi feito com a edição Relíquias de casa velha, v. 2, da edição Jackson, de 1937.

II

Costuma a fortuna complicar estas misérias com amores impossíveis; desta vez foi propícia, arredando do caminho do rapaz qualquer dessas aventuras que pudessem agravar-lhe o mal. Além disso, Valério era um tanto artista e poeta na maneira de apreciar as mulheres; amaria Safo, porque era musa, desdenharia a princesa de Talleyrand, apesar de formosa, porque era parva. Queria as mulheres inteligentes e instruídas - não as mulheres sabichonas, que é a pior casta de mulheres deste mundo, e Valério odiava o pedantismo, qualquer que fosse o seu sexo.

Odiar o pedantismo é entrar em luta com uma boa parte da gente que neste mundo dá cartas. Valério conheceu praticamente esse mal uma vez que sorriu à socapa, ouvindo no Carceller, onde almoçava, uma pretensão política feita por um sujeito a vários amigos, um doutor entre doutores. O orador de café percebeu o sorriso do estranho, levantou-se e disse-lhe dous impropérios literários, que Valério suportou com uma paciência mais estoica que evangélica, porque não era humilde, senão filósofo.

O incidente não alterou as opiniões do escrevente de cartório; pelo contrário, confirmou-lhas.

Não encontrara até então nenhuma mulher nas condições em que ele a desejava, e se encontrasse seria o remate do seu infortúnio. Ainda quando viesse a ser amado por ela, que futuro podia oferecer-lhe um pobre rapaz sem eira nem beira, sem proteção nem amizade neste mundo?

Pensava em tudo isto Valério, e, se tinha em si mundos de ternura, recalcava-os no mais íntimo do coração. Como não frequentava nenhuma casa, não tinha ocasião de ser tentado pelo amor.

Aconteceu uma vez que o escrivão do cartório onde ele trabalhava, reunindo em casa algumas pessoas para jantar e dançar, convidou os seus escreventes, entre os quais o nosso Valério, que recusou o convite. Ofendido no seu melindre de anfitrião, o escrivão franziu a testa e murmurou:

- Está bem.

Compreendeu o pobre escrevente a causa daquele movimento, e não convindo zangar-se com o homem que lhe dava meios de vida, confessou ingenuamente que a causa da recusa era simplesmente uma questão de sapateiro. O escrivão desrugou a testa, meteu a mão no bolso, tirou dez mil-réis e entregou-os ao escrevente, dizendo-lhe:

- Podia dizê-lo logo; sabe que não sou unhas de fome, e além disso temos contas entre nós. Descontaremos isto no traslado de falência que lá tem consigo.

Saiu Valério com os dez mil-réis no bolso e dirigiu-se a um sapateiro para munir-se de um par de botas que substituísse os sapatos velhos que fingiam calçar-lhe os pés. Ia pensando no aborrecimento que lhe causaria passar a tarde e a noite em casa do escrivão, sem conhecer ninguém, quando foi detido por um indivíduo que lhe disse:

- Ia agora mesmo procurá-lo. Quando me dá aquela continha?

A continha de que falava o sujeito era o resto de um paletó que Valério comprara quinze dias antes: cinco mil-réis.

Valério balbuciou algumas palavras de desculpa, e o indivíduo acostumado a ouvi-las de muita gente não se abalou com elas, e insistiu na pergunta. No fim de dez minutos, o devedor não tinha conseguido abalar o credor, puxou do bolso a nota de dez mil-réis e com ela pagou os cinco que devia.

Estava pois reduzido a cinco mil-réis. Não era difícil comprar com esse dinheiro um par de sapatos, nem os seus eram de maior preço. Dirigiu-se a um sapateiro de décima classe, e aí mercou um par de sapatos de bezerra, que o sapateiro afirmava serem novos, mas que Valério supôs terem já alguma experiência do mundo e das calçadas. Com um bilhete de gôndola, perdido no bolso do colete, pagou Valério a um barbeiro que lhe limpou a cara; depois foi vestir-se como pôde, e às quatro horas estava em casa do escrivão.

Sabem todos com que cara aparece um homem quando vai pela primeira vez dans le monde. O acanhamento é visível; não dá um passo que não olhe para todos; esconde-se voluntariamente e sempre que pode. Valério estava nessa situação, acrescendo que o seu vestuário aumentava o contraste da sua pessoa no meio da sociedade em que se achava. Não havia luxo nem elegância nas pessoas convidadas pelo escrivão; a reunião era familiar, e o escrivão não estava em grandes relações com Botafogo. Mas, apesar de tudo, havia entre a sociedade e Valério um abismo. O escrivão recebeu o rapaz com certa afabilidade de superior, que mostrava da parte do homem um vício de educação ou de caráter - porquanto o escrevente do cartório era um convidado da casa, e, como tal, estava nivelado com os outros. Nem o escrivão notava essa diferença nem Valério deu por ela; o cumprimento do escrivão causou grande prazer ao rapaz, que já estava embaraçadíssimo quando se viu alvo dos olhares das moças e dos rapazes.

O jantar foi animado, e Valério achava-se satisfeito vendo a alegria de todos. Dentro de uma hora cederam os estômagos a palavras às línguas, e começou uma série de brindes ao dono da casa, que foi designado por várias metáforas descabeladas, entre outras a de um funcionário municipal que lhe chamou camarista de Têmis. O escrivão sorriu com um ar de quem ignorava o que era Têmis; mas a palavra camarista soou-lhe bem ao ouvido. O orador de sobremesa é um tipo universal; entre nós tem já alcançado uma posição sólida e brilhante. Valério, que não conhecia o tipo, admirou muito a loquela dos oradores e a compridez dos speeches, e mais ainda os aplausos e risadas dos circunstantes, conforme os discursos fossem patéticos ou gaiatos. Todos tiveram parte nas saúdes; e o último brinde foi levantado pelo escrivão, que falou neste termos:

- Meus senhores! Se há na vida de um homem instantes de felicidade é certamente este em que os amigos se reúnem à roda de nós, para cumprimentar-nos e partilhar conosco as afeições sinceras e profundas. (Muito bem!) Folgo de ver-vos esquecer outros cuidados para entregar-vos todos a festejar o meu dia, que, como é natural e usual na sociedade, é o primeiro dia da existência, desta existência, senhores, que apesar de amaldiçoada, é sempre cara ao nosso coração, cara, repito, principalmente quando os amigos nos servem de lenitivo. Eu bebo aos meus amigos.

Cada um bebeu à sua saúde e preludiou-se a debandada. Seguiu-se mais tarde um pequeno concerto em que um flautista arrebatou o auditório tocando umas variações sobre o já secante Carnaval de Veneza; e às nove horas começou a primeira quadrilha.

Valério foi simples espectador do baile; não sabia dançar, nem que soubesse dançaria logo da primeira vez que se achava em sociedade. Encostou-se a uma porta que dava para a sala e contemplou os movimentos de toda aquela gente alegre. A única pessoa que, apesar de tudo, estava um tanto inquieta, era o dono da casa. Esperava um convidado que não viera. Um convidado que era a verdadeira cúpula do edifício festival, o coronel Borges, militar reformado, ex-deputado, ex-quase-ministro, figura que devia impor à reunião e levantá-lo muito alto no ânimo dos convidados.

O tempo corria com essa rapidez máxima que costuma ter em certas ocasiões, e o escrivão, semelhante à célebre esposa do conto, perguntava à irmã Ana, que era neste caso um moleque, se não via rien venir lá-bas.

Nesta ânsia foram ouvidas as dez horas.

III

Às dez e meia apareceu o coronel Borges, acompanhado da família, que se compunha da mulher, senhora de quarenta e cinco outonos, e de uma filha, menina de dezoito primaveras. O coronel pertencia a essa classe indefinível de homens que estão entre a primavera e o outono, nem velhos, nem moços, mistura de Saturno e Antínous.

O escrivão recebeu o coronel com vivas demonstrações de amizade e respeito, às quais o coronel respondeu com esse ar solene e grave das capacidades e das nulidades. A entrada dos novos convidados fez impressão na sala; sentia-se a superioridade social do homem que, além do mais, tinha a ventura de ser pai de uma formosíssima filha. Os rapazes sufocaram na garganta um grito de admiração; e as moças disfarçaram um gesto de despeito.

Valério deu lugar a que passasse a família; a filha do coronel passou rente com ele. Ia cheia de perfumes e bálsamos; o rapaz respirou-lhos sem querer, e pela primeira vez sentiu a vertigem que pode causar uma mulher quando sabe escolher os aromas do seu uso. Não lhe escapou a pasmosa beleza da moça. Acompanhou com os olhos aquela figura elegante como uma palmeira, flexível como um junco, temperando com a graça do gesto a soberania do porte. A moça sentou-se entre a mãe e a senhora do escrivão. Pôde ser contemplada a gosto por todos. Era excessivamente clara, uma dessas brancuras de mármore, aspecto de estátua onde se não supõe haver coração. Tinha olhos negros, plácidos embora rutilantes, resguardados por longos cílios que ela às vezes apertava, menos por defeito de vista que por sestro. Penteava-se segundo a moda do tempo, mas sem afetação. Sorria discretamente, e quanto bastava para mostrar duas ordens de dentes corretos e alvos. O seu vestuário não exagerava a moda corrente, mas era luxuoso e perfeitamente acomodado à elegância das suas formas.

Valério contemplava admirado a beleza da moça e o mesmo faziam os demais rapazes, que já se preparavam para suplicar-lhe a honra de dançar uma polca ou uma quadrilha. Parece que a rapariga estava acostumada àqueles triunfos, porque, apenas se sentou, correu os olhos pela sala sorrindo com um ar de satisfação íntima; a mãe também se alegrou, e quanto ao pai, depois de conversar um pouco com alguns sujeitos a quem conhecia, foi para o interior da casa a convite do escrivão, que queria obrigá-lo a comer uns acepipes expressamente preparados para esse fim.

Não tardou que a filha do coronel dançasse, e Valério pôde admirar-lhe a graça, a reserva, a elegância dos seus movimentos. O pobre escrevente não lhe tirava os olhos de cima; duas ou três vezes encontraram-se os seus com os dela; Valério corava de vexado, como se o surpreendessem a cometer um crime. Quanto à moça, não se perturbava nem parecia zangar-se; olhava também para Valério com um olhar longo e tranquilo. O rapaz chegou a supor que era um movimento de simpatia, e Deus sabe que sonhos não lhe passavam então pelo espírito atordoado; a verdade, porém, é que a moça gostava de ser admirada; era uma dessas belezas capazes de vender o patrimônio do amor por um prato de admirações.

À meia-noite foi servida uma ceia volante; Valério deixou discretamente o seu posto e foi para dentro descansar e comer alguma cousa. Confessou de si para si que estava com fome. Sentou-se ao pé de uma mesa pequena, recebeu de um criado uns pastelinhos, e começou a ruminar tranquilamente. Cumpre acrescentar que ao bom do rapaz repugnou ver comer a jovem rainha da noite. Era escrúpulo de calouro. É mais poético não assistir à operação dos queixos quando se ama a uma mulher, mas - ai triste! - nem por isso fica suprimida a operação. O estômago não tem sexo; e a natureza tem exigências fatais. Aqueles lábios, que nos parecem exclusivamente feitos para risos e beijos, são a entrada indispensável de covilhetes e pastéis. É possível que na próxima edição da obra, o autor da criação corrija esse gravíssimo ponto; mas por enquanto a obra há de ser lida assim... ou morre de traça nos livreiros.

Perto do escrevente estavam algumas pessoas, ocupadas também em dar que fazer ao estômago, exceto o coronel, que, tendo já comido, conversava paternalmente com o escrivão e mais dois sujeitos.

- E quando se publica esse folheto? - perguntou o escrivão.

- Creio que breve - respondeu o coronel -; o autor, que, como lhe disse, é meu amigo íntimo, promete que dentro de uma semana estará à venda.

- Estou ansioso por ver isso! - exclamou um velho com feições de militar -. Ataca o governo?

- Se eu lhe digo que é uma filípica! - tornou o coronel -; é um opúsculo de fazer época.

- Disso precisamos nós.

Os ímpetos de oposicionista do militar não agradavam ao escrivão, que tinha filho em não sei que secretaria do Estado. Por isso tratava de desviar a conversa do assunto do opúsculo.

- Sempre queria vê-lo dançar, coronel!

- Qual! Já não é para mim.

- Como se chama o opúsculo? - perguntou o militar.

- Não sei se devo confiar tanta cousa; o autor não me autorizou... mas... é verdade que daí a uma semana... chama-se o opúsculo: Abaixo as máscaras!

- Magnifico! Magnifico título! - exclamou o militar.

Ouvindo o título do opúsculo, Valério estremeceu, e prestou à conversa mais atenção do que até ali. O velho militar continuou a elogiar o título, e insistiu com o coronel para que dissesse onde poderia ir comprar o opúsculo quando ele aparecesse.

- Suponho que em todas as livrarias; mas se quer eu lhe arranjarei um e mandar-lho-ei antes de publicado.

- Tanto favor! A obra é bem escrita?

- Dizem que sim; eu não entendo de estilos.

Sem medir todo o alcance da inconveniência, Valério interrompeu a conversa dizendo:

- Entendo eu um pouco; e acho que o estilo do opúsculo de que se trata é excelente.

Houve um súbito silêncio logo depois das palavras do escrevente. O escrivão fez uma careta de desgosto vendo que Valério se intrometia aonde ninguém o chamara; e o coronel, disfarçando quanto podia um sorriso delator, perguntou ao vizinho quem era aquele sujeito; o vizinho disse que o não conhecia. O coronel voltou-se para Valério.

- Conhece então a obra? - perguntou-lhe.

- Conheço.

- Conhece o autor?

- Não, senhor.

- Então, houve traição...

- Não, senhor; eu sou revisor de provas na tipografia onde se está imprimindo o folheto.

Novo silêncio e mais prolongado. O escrivão tinha a cara mais vermelha que um pimentão; se um olhar fulminasse, Valério já não era gente, pois o que o escrivão lhe lançou continha raios de raiva, despeito, nojo. Traduzido em vulgar, o olhar do escrivão queria dizer:

- Pois este pelintra vem ter a honra de jantar comigo, ver dançar os outros, estar aqui confundindo com pessoas de certa ordem, e se há de ouvir e calar, responde quando ninguém lhe pergunta, e por fim de contas, confessa-se revisor das provas!

Valério não viu o olhar do escrivão, nem compreendeu o silêncio de todos.

- Gosto imenso do estilo do folheto, e creio que há de fazer época.

- Eu assim penso - disse o coronel sorrindo para Valério -; mas, quem assim fala e julga não é decerto um simples revisor...

- Sou também escrevente no cartório do Sr. Z.

- Ah! Escrevente e revisor! Mas não é isso bastante; vejo que tem humanidades... estudou...

- Muito pouco... e há muito tempo.

- Mas tem o gosto apurado...

- Não sei; eu digo o que me parece.

- Descontaremos a modéstia - disse o coronel -; vejo que tem certos estudos... Quer um charuto?...

- Não fumo.

- É um vício; corrija-se dele. Charutos, meus senhores?... Hoje fuma-se por toda a parte... Pensa então que o folheto tem bom estilo?

- Excelente.

- É a opinião de algumas pessoas que leram o folheto; eu confesso, de estilos não sei.

- Nem eu - disse o militar.

A situação de Valério estava um pouco salva; a bondade com que o coronel tratava ao escrevente teve o dom de acalmar os furores do escrivão, que já trocava palavras com o rapaz; e quando viu levantar-se o coronel de braço com Valério, a indiferença do escrivão tornou-se em viva simpatia.

Valério pôde contemplar ainda durante meia hora a interessante filha do coronel, que durante essa noite dançara alegremente como quem não tem cuidados no futuro nem saudades do passado.

Depois de despedir-se do escrivão, o coronel apertou a mão ao escrevente, dizendo-lhe:

- Não se esquece?

- Não, senhor.

- Nº 14.

Ninguém ouviu estas palavras do coronel ao rapaz; mas o escrivão adivinhou que alguma cousa íntima se passara entre o rapaz e o coronel.

- Cultive esta amizade - disse o escrivão a Valério, quando o coronel saiu -; é um excelente homem e dotado de uma inteligência brilhante; frequente esta roda, que vai bem.

IV

O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heroica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.

Não nos enganemos entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu, nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras cousas que não fossem estas cousas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal, a imagem da aplicação.

Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Periandro: "Não sabes tu que é impossível ao tolo calar-se durante um festim?" O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na polícia, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. "Covilhete sou", responderia o homem, "mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não."

Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.

Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou-lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar, e recolheu-se à tenda, como Aquiles, disposto a não sair dela sem que lhe matassem um Pátroclo. Aconteceu justamente que um parente da mulher recebeu garrote do governo, e o sangue dessa vítima, que gozava de perfeita saúde, reclamou vingança imediata. Pegou na pena e escreveu um livro de duzentas páginas em que dizia cousas do arco-da-velha ao governo e ao país. Quis conservar o mais restrito incógnito; mandou o folheto à imprensa por mão de seu sobrinho, a quem confiou a direção do preparo tipográfico; e aguardava ansioso o dia em que aparecesse a obra e fizesse pasmar o mundo político.

- Olha lá, meu André - dizia-lhe a esposa -, não te vai meter em trabalhos...

- Que trabalhos, Luísa?

- Eu sei! Descompor o governo! Não te podes arriscar a ser preso?

- Isso não me há de acontecer, por desgraça minha! Obter a palma do martírio! Não, não sou tão feliz!

Benzeu-se a esposa, que era temente a Deus e à polícia, enquanto o coronel mandava para a tipografia as provas que o sobrinho lhe trouxe.

Aguardava-se a publicação da obra, que na opinião do autor era uma colubrina de bronze coado, quando se deu o sarau do escrivão e o encontro de Valério. O escrevente prometera lá ir à casa do coronel no dia seguinte, e assim o fez, depois dos trabalhos da imprensa, que terminaram pelas sete ou oito horas.

No cumprimento exato da promessa, influiu acaso a filha do foliculário? Indo à casa do coronel, Valério levava a esperança de avistar-se com a moça? Para ser verdadeiro, devo dizer que não. Era talvez mais poético que assim fosse; mas não era a ideia do rapaz. Valério fazia justiça à sua posição, que era nenhuma. Não nutria a esperança de merecer da moça um momento de atenção; demais, a impressão da noite anterior, conquanto fosse viva, passara depressa, do mesmo modo que se esvoam os sonhos da sorte grande ao proletário que não tem com que comprar um bilhete.

Digamos a verdade toda.

Valério foi exato na execução da sua palavra pela esperança de que o coronel viesse a protegê-lo, e as palavras do escrivão influíram também para isso. Na situação em que se achava, queria mão que o levantasse, amigo que o protegesse. Não tinha mão nem amigo. O coronel pareceu-lhe homem talhado para ajudar um rapaz laborioso e pobre. Valério não quis repelir aquele auxílio da fortuna.

Recebeu-o alegremente o coronel.

- Bem-vindo seja, meu amigo - disse-lhe ele, convidando-o a entrar para a sala -. Cuidei que não viesse.

- Bem sei que é um pouco tarde - respondeu o escrevente -, mas só agora acabei o trabalho.

- Não é por isso... Pensei que não viesse, porque não supunha que um pedido meu pudesse trazê-lo cá tão cedo.

Valério fez um gesto; o coronel interrompeu-lho:

- Já sei o que me vai dizer, e eu, por exceção, creio no seu protesto. Não falemos nisso. Diga-me: toma chá comigo, não?

- Não posso, Sr. coronel.

- Por quê?

- Tenho um trabalho urgente.

- Ainda hoje?

- Sim, senhor.

- Trabalha muito!

- Assim é preciso.

- Pois trabalhará até mais tarde; mas por hoje é meu.

Valério não respondeu, ainda que contrariado com o obséquio. Quanto ao ex-deputado, entrou logo a falar no opúsculo que devia aparecer dentro de oito dias, e de novo perguntou se o achava bem escrito. Ouvida a confirmação de Valério, o coronel não se deteve; e confessou-lhe que era o autor. Valério já devera tê-lo percebido, mas o rapaz, apesar dos trinta anos feitos, era de uma ingenuidade pueril. Cumprimentou o coronel pela obra, e o coronel sorriu com ar de satisfação.

Entrou a conversa pela política dentro. Valério de política apenas sabia alguma cousa que lia nos jornais do Carceller quando lá ia almoçar. Mas era fácil conversar com o coronel; fazia-se o papel de confidente. Tão reservado era o ex-deputado na rua e na Câmara, como expansivo era em casa, principalmente quando o auditório não lhe parecia nímio instruído.

Veio uma mucama dizer que o chá estava pronto.

Quando Valério e o coronel entraram na sala de jantar, já lá estavam sentadas a Sra. D. Luísa e a menina Hélvia. O coronel fez uma apresentação geral do conviva, que não deixou de estremecer quando encontrou os olhos da moça. Esta fitou tranquilamente os seus no rapaz, e pareceu conhecê-lo; fez um esforço de memória e lembrou-se de tê-lo visto na véspera na casa do escrivão.

Nenhum incidente perturbou este chá patriarcal entremeado de observações políticas do coronel e vagos suspiros da filha. A Sra. D. Luísa, sabendo na conversa que Valério nascera no dia da revolução de abril, contou uma anedota do tempo, e o coronel aproveitou o ensejo para dizer a sua opinião sobre as revoluções. Hélvia pouco falou; comeu um biscouto, bebeu uma xícara de chá, olhou três vezes para Valério e pediu licença à mãe para levantar-se por ter dor de cabeça. Concedeu-lha a boa senhora, enquanto o coronel sorria maliciosamente à parte.

Pouco depois retirou-se Valério, mas só depois de prometer ao coronel que o iria ver no dia seguinte de manhã. Foi com efeito no dia seguinte à casa do coronel; eram oito horas da manhã.

- Sabe o que eu desejo? Conheci que o senhor é moço inteligente; queria incumbi-lo da leitura das últimas provas do meu folheto... dando-lhe autorização para emendar o que lhe parecer, porque eu escrevi aquilo à pressa, e agora tenho muitas cousas que me tomam o tempo.

- Com muito prazer - respondeu Valério -, mas eu não creio que se deva emendar mais nada.

- Pode haver, pode haver - insistiu o coronel -. Eu tinha encarregado desse trabalho aquele moço que lá ia, e que é meu sobrinho; mas houve um desacordo de família, e agora... Estamos entendidos?

- Estamos.

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A-