Conto

Valério

1874

Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em dezembro de 1874 e em janeiro, fevereiro e março de 1875, assinado por Job. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original até o fim do capítulo IV. Os capítulos V, VI e VII não estão disponíveis na hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, que, até a presente data (22 de junho de 2024), não disponibilizou eletronicamente o volume do Jornal das Famílias referente a março de 1875, no qual se encontram esses três capítulos. O cotejo foi feito com a edição Relíquias de casa velha, v. 2, da edição Jackson, de 1937.

Capítulo primeiro

Valério era fluminense; veio à luz com a revolução de 1831. O pai estava no Campo, enquanto ele nascia humildemente, entre as lágrimas de sua mãe e os cuidados de uma velha comadre. Quando o pai voltou a casa, encontrou esse aumento na família. Beijou o filho, consolou a mulher, comeu alguma cousa, e foi passar a noite num dos clubs do tempo.

A paternidade é anterior à sociedade; mas os amores novos fazem esquecer os velhos, e a paixão política domina, em certos casos, os primeiros instintos da natureza.

Nascido entre lágrimas, foi Valério criado entre penas. O pai, que era um pobre militar, não tinha recursos de sobra para deixar à família, e morreu pouco depois da revolução. A mãe educou como pôde o pequeno até à idade de sete anos; a pobre senhora morreu sem poder vê-lo num colégio. Valério passou então à casa do padrinho, que era um general conhecido naquele tempo por suas façanhas e mentiras, mas no fim de contas boa alma e amigo de servir. O general mandou ensinar ao afilhado os primeiros rudimentos da língua e um pouco de latim. Vendo os progressos do pequeno, determinou mandá-lo estudar direito, e nesse propósito estava quando faleceu sem testamento. Os poucos bens que tinha caíram nas mãos dos parentes, e Valério ficou senhor das calçadas da rua, na idade de quatorze anos.

Como não é nossa intenção contar dia por dia a vida do rapaz, corramos um véu sobre os acontecimentos da sua adolescência até encontrá-lo em 1861, com trinta anos de idade, sem mais fortuna do que quando nascera, nem recurso certo para ocorrer às necessidades da vida. Tentara estudar direito, mas não conseguira alcançar os meios precisos para um curso regular. Não tinha ofício nenhum, e tinha cousa pior, que era ser incapaz de adotar qualquer ofício manual não só porque não o arrastava para aí a vocação, como porque, sentindo-se apto para uma carreira literária, temia perder a sua utilidade no mundo, adotando um meio de vida em que nada podia fazer.

Desistiu do intento de estudar direito; fechou os livros numa caixa, e contentando-se com o pouco que sabia de latim, geografia e história, entregou-se todo aos dois empregos de que tirava escassos recursos: escrevente de cartório e revisor de provas de tipografia.

Não consta em memória de homem que estes dois empregos tenham dado grandes rendas a quem os exerce. Valério vivia pobremente; recebia um mesquinho ordenado da tipografia e cobrava pela rasa o trabalho do cartório. De quando em quando algum traslado de inventário lá lhe dava com que comprar um paletó. Mas, como nem sempre havia traslado, nem sempre havia paletó novo. Os cotovelos, amigos da liberdade, operavam-lhe às vezes soluções de continuidade nas mangas. Nem era raro ver um botão solitário na cintura, tendo o outro caído de velhice.

Uma das cousas que Valério estudara com proveito era a gramática portuguesa. Por isso, sabendo que vagara uma cadeira de gramática num colégio público, Valério propôs-se à cadeira, e foi pedi-la do funcionário competente. A cadeira foi dada a outro peticionário que escrevera nestes termos ao diretor: "Não consta-me que haja candidato sério ao lugar que vagou nessa escola. Desejava consultar V. Exa. à respeito".

Valério contentou-se com a tipografia e o cartório. Dividia o tempo entre esses dois empregos, e o pouco que lhe restava mal chegava para dormir. Ocupava um aposento numa casa da rua das Flores e facilmente se imaginará que o aposento não primava pelo luxo. O mesmo espaço servia de sala e alcova; a mobília era escassa e pobre.

Tal era a vida de Valério aos trinta anos; abundância de apetite e escassez de jantares, isso é a segunda classe de Chamfort; muito trabalho e pouquíssimos recursos. Nulo passado, escasso presente, tristíssimo porvir. Quando Valério meditava sobre as condições da sua existência, a sua mocidade sem risos, o seu futuro sem esperanças, lançava um olhar melancólico para o suicídio, como a solução razoável do problema da vida, e perguntava entre si se a moral que desarma o braço do homem não era simplesmente uma moral de convenção. Imediatamente, porém, volvia a sentimentos melhores; encarava severamente a responsabilidade que lhe corria de carregar a vida dignamente, sem violência nem rebeldia; adiava o suicídio para o próximo desânimo.

Contribuíam para esta filosofia severa algumas horas de ambição e devaneio, em que Valério esquecia provas e traslados, e lançava o espírito por esses espaços fora em busca de felicidades sonhadas e imaginadas grandezas. Não tinha objeto sua ambiciosa imaginação: ora vivia uma vida de amores, ora ocupava um trono de glória; agora imaginava-se Petrarca, mais tarde acreditava-se Pitt; construía castelos no ar, embriagava-se com perfumes do Oriente, dominava as turbas pasmadas, vivia um romance e repousava na história.

Quando descia dessas alturas vertiginosas, Valério tinha ao menos esquecido a miséria atual, porque sonhar é esquecer, e esquecer é muita vez toda a felicidade da vida.

II

Costuma a fortuna complicar estas misérias com amores impossíveis; desta vez foi propícia, arredando do caminho do rapaz qualquer dessas aventuras que pudessem agravar-lhe o mal. Além disso, Valério era um tanto artista e poeta na maneira de apreciar as mulheres; amaria Safo, porque era musa, desdenharia a princesa de Talleyrand, apesar de formosa, porque era parva. Queria as mulheres inteligentes e instruídas - não as mulheres sabichonas, que é a pior casta de mulheres deste mundo, e Valério odiava o pedantismo, qualquer que fosse o seu sexo.

Odiar o pedantismo é entrar em luta com uma boa parte da gente que neste mundo dá cartas. Valério conheceu praticamente esse mal uma vez que sorriu à socapa, ouvindo no Carceller, onde almoçava, uma pretensão política feita por um sujeito a vários amigos, um doutor entre doutores. O orador de café percebeu o sorriso do estranho, levantou-se e disse-lhe dous impropérios literários, que Valério suportou com uma paciência mais estoica que evangélica, porque não era humilde, senão filósofo.

O incidente não alterou as opiniões do escrevente de cartório; pelo contrário, confirmou-lhas.

Não encontrara até então nenhuma mulher nas condições em que ele a desejava, e se encontrasse seria o remate do seu infortúnio. Ainda quando viesse a ser amado por ela, que futuro podia oferecer-lhe um pobre rapaz sem eira nem beira, sem proteção nem amizade neste mundo?

Pensava em tudo isto Valério, e, se tinha em si mundos de ternura, recalcava-os no mais íntimo do coração. Como não frequentava nenhuma casa, não tinha ocasião de ser tentado pelo amor.

Aconteceu uma vez que o escrivão do cartório onde ele trabalhava, reunindo em casa algumas pessoas para jantar e dançar, convidou os seus escreventes, entre os quais o nosso Valério, que recusou o convite. Ofendido no seu melindre de anfitrião, o escrivão franziu a testa e murmurou:

- Está bem.

Compreendeu o pobre escrevente a causa daquele movimento, e não convindo zangar-se com o homem que lhe dava meios de vida, confessou ingenuamente que a causa da recusa era simplesmente uma questão de sapateiro. O escrivão desrugou a testa, meteu a mão no bolso, tirou dez mil-réis e entregou-os ao escrevente, dizendo-lhe:

- Podia dizê-lo logo; sabe que não sou unhas de fome, e além disso temos contas entre nós. Descontaremos isto no traslado de falência que lá tem consigo.

Saiu Valério com os dez mil-réis no bolso e dirigiu-se a um sapateiro para munir-se de um par de botas que substituísse os sapatos velhos que fingiam calçar-lhe os pés. Ia pensando no aborrecimento que lhe causaria passar a tarde e a noite em casa do escrivão, sem conhecer ninguém, quando foi detido por um indivíduo que lhe disse:

- Ia agora mesmo procurá-lo. Quando me dá aquela continha?

A continha de que falava o sujeito era o resto de um paletó que Valério comprara quinze dias antes: cinco mil-réis.

Valério balbuciou algumas palavras de desculpa, e o indivíduo acostumado a ouvi-las de muita gente não se abalou com elas, e insistiu na pergunta. No fim de dez minutos, o devedor não tinha conseguido abalar o credor, puxou do bolso a nota de dez mil-réis e com ela pagou os cinco que devia.

Estava pois reduzido a cinco mil-réis. Não era difícil comprar com esse dinheiro um par de sapatos, nem os seus eram de maior preço. Dirigiu-se a um sapateiro de décima classe, e aí mercou um par de sapatos de bezerra, que o sapateiro afirmava serem novos, mas que Valério supôs terem já alguma experiência do mundo e das calçadas. Com um bilhete de gôndola, perdido no bolso do colete, pagou Valério a um barbeiro que lhe limpou a cara; depois foi vestir-se como pôde, e às quatro horas estava em casa do escrivão.

Sabem todos com que cara aparece um homem quando vai pela primeira vez dans le monde. O acanhamento é visível; não dá um passo que não olhe para todos; esconde-se voluntariamente e sempre que pode. Valério estava nessa situação, acrescendo que o seu vestuário aumentava o contraste da sua pessoa no meio da sociedade em que se achava. Não havia luxo nem elegância nas pessoas convidadas pelo escrivão; a reunião era familiar, e o escrivão não estava em grandes relações com Botafogo. Mas, apesar de tudo, havia entre a sociedade e Valério um abismo. O escrivão recebeu o rapaz com certa afabilidade de superior, que mostrava da parte do homem um vício de educação ou de caráter - porquanto o escrevente do cartório era um convidado da casa, e, como tal, estava nivelado com os outros. Nem o escrivão notava essa diferença nem Valério deu por ela; o cumprimento do escrivão causou grande prazer ao rapaz, que já estava embaraçadíssimo quando se viu alvo dos olhares das moças e dos rapazes.

O jantar foi animado, e Valério achava-se satisfeito vendo a alegria de todos. Dentro de uma hora cederam os estômagos a palavras às línguas, e começou uma série de brindes ao dono da casa, que foi designado por várias metáforas descabeladas, entre outras a de um funcionário municipal que lhe chamou camarista de Têmis. O escrivão sorriu com um ar de quem ignorava o que era Têmis; mas a palavra camarista soou-lhe bem ao ouvido. O orador de sobremesa é um tipo universal; entre nós tem já alcançado uma posição sólida e brilhante. Valério, que não conhecia o tipo, admirou muito a loquela dos oradores e a compridez dos speeches, e mais ainda os aplausos e risadas dos circunstantes, conforme os discursos fossem patéticos ou gaiatos. Todos tiveram parte nas saúdes; e o último brinde foi levantado pelo escrivão, que falou neste termos:

- Meus senhores! Se há na vida de um homem instantes de felicidade é certamente este em que os amigos se reúnem à roda de nós, para cumprimentar-nos e partilhar conosco as afeições sinceras e profundas. (Muito bem!) Folgo de ver-vos esquecer outros cuidados para entregar-vos todos a festejar o meu dia, que, como é natural e usual na sociedade, é o primeiro dia da existência, desta existência, senhores, que apesar de amaldiçoada, é sempre cara ao nosso coração, cara, repito, principalmente quando os amigos nos servem de lenitivo. Eu bebo aos meus amigos.

Cada um bebeu à sua saúde e preludiou-se a debandada. Seguiu-se mais tarde um pequeno concerto em que um flautista arrebatou o auditório tocando umas variações sobre o já secante Carnaval de Veneza; e às nove horas começou a primeira quadrilha.

Valério foi simples espectador do baile; não sabia dançar, nem que soubesse dançaria logo da primeira vez que se achava em sociedade. Encostou-se a uma porta que dava para a sala e contemplou os movimentos de toda aquela gente alegre. A única pessoa que, apesar de tudo, estava um tanto inquieta, era o dono da casa. Esperava um convidado que não viera. Um convidado que era a verdadeira cúpula do edifício festival, o coronel Borges, militar reformado, ex-deputado, ex-quase-ministro, figura que devia impor à reunião e levantá-lo muito alto no ânimo dos convidados.

O tempo corria com essa rapidez máxima que costuma ter em certas ocasiões, e o escrivão, semelhante à célebre esposa do conto, perguntava à irmã Ana, que era neste caso um moleque, se não via rien venir lá-bas.

Nesta ânsia foram ouvidas as dez horas.

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