Conto

Uma Loureira

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em maio e junho de 1872, assinado por Lara. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

II

Como ia dizendo, grande era a agitação em casa do comendador Nunes em certa noite de abril de 1860.

A causa desta agitação era nada menos que a apresentação de um rapaz, recentemente chegado do Norte, parente remoto dos Nunes e indigitado noivo da menina Luísa.

Chamava-se Alberto o rapaz, e tinha seus 27 anos feitos. A natureza o dotara de uma excelente figura e de um bom coração. Não escrevi à toa estes qualificativos; o coração de Alberto era bom, mas a figura era muito melhor.

O pai do candidato escrevera dois meses antes ao comendador Nunes uma carta em que lhe anunciava a vinda do filho, e aludia às conversas que tiveram ambos os velhos acerca do enlace matrimonial dos pequenos.

O comendador recebeu esta carta logo depois do jantar, e não a leu, porque era regra sua não ler nada depois do jantar, sob pretexto de que lhe perturbaria a digestão.

Pedrinho, que tinha tanto juízo como o irmão bacharel, achou a carta em cima da mesa, fê-la em pedaços para arranjar canoas de papel e armar assim uma esquadra dentro de uma bacia. Quando deram por esta travessura três quartas partes da carta já estavam em nada, porque o pequeno, vendo que alguns navios não navegavam bem, de todo os destruiu.

Os pedaços que ficaram eram apenas palavras soltas, e com algum sentido... mas que sentido! Só restavam palavras vagas e terríveis: teus... amores... Luísa... ele... flor em botão... lembras-te?

Quando a senhora D. Feliciana leu essas perguntas misteriosas sentiu que o sangue lhe subia todo ao coração, e depois à cabeça; estava iminente um ataque apoplético. Acalmou-se felizmente, mas ninguém pôde estancar-lhe as lágrimas.

Durante o longo tempo de casados nunca a senhora D. Feliciana duvidara uma vez sequer do marido, que aliás foi sempre o mais refinado hipócrita que o diabo mandou a este mundo. Aquele golpe, no fim de tantos anos, foi tremendo. Debalde o comendador Nunes alegava que de fragmentos nenhum sentido se poderia tirar, a esposa ofendida persistia nas recriminações e repetia as palavras soltas da carta.

- Queridinha - disse o comendador -, esperemos outra carta, e tu verás a minha inocência mais pura que a de uma criança de berço.

- Ingrato!

- Feliciana!

- Vai-te, monstro!

- Mas, minha filha...

- Flor em botão!

- É uma frase vaga.

- Teus amores!...

- Duas palavras soltas; pode ser que ele quisesse dizer. "Como vão os teus filhos, esses dois amores." Já vês...

- Lembras-te?

- Que tem isso? Que há nessa palavra que possa encerrar um crime?

- Ele!

E nisto passaram longas horas e longos dias.

Afinal, Feliciana se foi acalmando com o tempo, e ao cabo de um mês veio nova carta do pai de Alberto dizendo que impreterivelmente o rapaz estava aqui daí a um mês.

Por felicidade do comendador Nunes, o pai do noivo não tinha a musa fértil, e a segunda carta era mais ou menos do mesmo teor da primeira, e a senhora D. Feliciana, já convencida, esqueceu completamente os rigores do marido.

Comunicada a notícia ao objeto dela, que era a menina Luísa, nenhuma objeção fez esta ao casamento, e disse que estaria por tudo o que o pai quisesse.

- Isso não - disse o comendador -; eu não te obrigo a casar com ele. Se gostares do rapaz, serás sua esposa; no caso contrário, fá-lo-ei voltar com as mãos abanando.

- Hei de gostar - respondeu Luísa.

- Tens algum namoro? - perguntou Nunes com alguma hesitação.

- Nenhum.

Suspeitando que podia haver alguma cousa, que a menina não ousaria confiar-lhe, Nunes incumbiu a mulher de sondar o coração da pequena.

Revestiu-se a senhora D. Feliciana daquela meiga severidade, que tanto quadrava com o seu caráter, e interrogou francamente a filha.

- Luísa - disse ela -, eu fui feliz no meu casamento porque amei muito teu pai. Só há uma cousa que faça uma noiva feliz, é o amor. O que é o amor, Luísa?

- Não sei, mamãe.

Feliciana suspirou.

- Não sabes? - disse ela.

- Não sei

- É incrível!

- É verdade.

- E serei eu com os meus quarenta e seis anos, que te ensine o que é o amor? Estás zombando comigo. Nunca sentiste nada por algum rapaz?

Luísa hesitou.

- Ah! - disse a mãe -. Vejo que sentiste já.

- Senti uma vez palpitar-me o coração - disse Luísa -, ao ver um rapaz, que logo no dia seguinte me escreveu uma carta...

- E tu respondeste?

- Respondi.

- Desgraçada! Nunca se respondem a estas cartas sem ter certeza das intenções do autor delas. Teu pai... Mas deixemos isto. Respondeste só uma vez?...

- Respondi vinte e cinco vezes.

- Jesus!

- Mas ele casou com outra, segundo soube depois...

- Aí está. Vê que imprudência...

- Mas nós trocamos as cartas.

- Foi só esse, não?

- Depois veio outro...

Dona Feliciana pôs as mãos na cabeça.

- A esse escrevi só quinze.

- Só quinze! E veio mais outro?

- Foi o último.

- Quantas?

- Trinta e sete.

- Santo Nome de Jesus!

Dona Feliciana estava louca de surpresa. Luísa, a muito custo, conseguiu acalmá-la.

- Mas em suma - disse a boa mãe -, ao menos agora não amas nenhum?

- Agora nenhum.

Dona Feliciana respirou, e foi tranquilizar o marido acerca do coração da filha. Luísa contemplou a mãe com verdadeiro amor, e foi para o quarto responder à quinta carta do alferes Coutinho, amigo íntimo do bacharel Nunes.

III

Repito, e agora será a última vez, grande era a agitação em casa do comendador Nunes nesta noite de abril de 1860.

Luísa já estava vestida de ponto em branco, e encostada à janela conversava com uma amiga que morava na vizinhança e costumava ir lá tomar chá com a família.

Dona Feliciana, também preparada, dava as ordens convenientes para que o futuro genro recebesse uma boa impressão quando lá chegasse.

O comendador Nunes estava fora; o paquete do Norte havia chegado perto das ave-marias, e o comendador foi a bordo receber o viajante. Acompanhava-o Nicolau. Quanto a Pedrinho, travesso como um milhão de diabos, ora puxava o vestido da irmã, ora tocava tambor no chapéu do Vaz (pai da amiga de Luísa), ora surripiava um doce.

O Sr. Vaz, a cada travessura do pequeno, ria com aquele riso amarelo de quem não acha graça nenhuma; e por duas vezes esteve tentado a dar-lhe um beliscão. Luísa não reparava no irmão, tão entretida estava nas suas confidências amorosas com a filha do Vaz.

- Mas você está disposta a casar com esse sujeito a quem não conhece? - perguntava a filha do Vaz a Luísa, encostadas ambas à janela.

- Ora, Chiquinha, você parece tola - respondia Luísa -. Eu disse que casava, mas isso depende das circunstâncias. O Coutinho pode roer-me a corda como já roeu à Amélia, e não é bom ficar desprevenida. Além disso, pode ser que o Alberto me agrade mais.

- Mais do que o Coutinho?

- Sim.

- É impossível.

- Quem sabe? Eu gosto do Coutinho, mas estou certa de que ele não é a flor de todos os homens. Pode haver outros mais bonitos...

- Isso há - concordou maliciosamente a Chiquinha.

- Por exemplo, o Antonico.

Chiquinha fez um sinal afirmativo.

- Como vai ele?

- Está bom. Pediu-me uma trança de cabelos anteontem...

- Sim!

- E eu respondi que depois, quando estivesse mais certa de seu amor.

Neste ponto do diálogo, o Vaz, que estava na sala, fungou uma pitada. Luísa reparou que era feio deixá-lo só, e saíram ambas da janela.

Entretanto, a senhora D. Feliciana dera as últimas ordens e veio para a sala. Bateram sete horas, e o viajante não aparecia. A esposa do comendador Nunes estava ansiosa por ver o genro, e a futura noiva sentia uma cousa que se parecia com a curiosidade. Chiquinha fazia os seus cálculos.

"Se ela não o quiser", pensava esta dócil criatura, "e se ele me agradar sacrifico o Antonico."

Vinte minutos depois houve um rumor na escada, e D. Feliciana correu ao patamar para receber o candidato.

Entraram efetivamente na sala os três personagens esperados, o Nunes, o filho e Alberto. Todos os olhos se cravaram neste, e durante dois minutos, ninguém viu mais ninguém na sala.

Alberto compreendeu facilmente que era objeto da atenção geral, e não se perturbou. Pelo contrário, subiram-lhe à cabeça uns fumos de soberba, e esta boa impressão lhe desatou a língua e deu livre curso aos cumprimentos.

Era um rapaz como qualquer outro. Apresentava-se bem, e não falava mal. Nada tinha em suas feições que fosse notável, exceto um certo modo de olhar quando alguém lhe falava, um certo ar de impaciência. Isto mesmo ninguém lho notou então, nem depois naquela casa.

Passaremos por alto as primeiras horas da conversa, que foram empregadas em narrar a viagem, a referir as notícias que mais ou menos podiam interessar as duas famílias.

Às 10 horas vieram dizer que o chá estava na mesa, e não era chá, e sim uma esplêndida ceia preparada com o esmero dos grandes dias. Alberto deu o braço a D. Feliciana, que já estava cativa das maneiras dele, e todos se encaminharam para a sala de jantar.

A situação daquelas diferentes pessoas já estava muito modificada; a ceia acabou por estabelecer entre Alberto e os outros uma discreta familiaridade.

Entretanto, apesar da extrema amabilidade do rapaz, parecia que Luísa não estava contente. O comendador Nunes sondava com os olhos a fisionomia da filha, e estava inquieto por não ver nela o menor vestígio de alegria. Feliciana toda enlevada nos modos e palavras de Alberto não dera fé daquela circunstância, ao passo que Chiquinha, descobrindo no rosto de Luísa uns sinais de despeito, parecia alegrar-se com isto, e sorrir-lhe a ideia de sacrificar desta vez o Antonico.

Reparava nestas coisas o Alberto? Não. A preocupação principal do candidato, durante a ceia, era a ceia, e nada mais. Outras qualidades podiam faltar ao rapaz, mas uma já lhe notava o pai da Chiquinha: a voracidade.

Alberto era capaz de comer a ração de um regimento.

Vaz reparou nesta circunstância, como já tinha reparado em outras. Nem parece que o pai de Chiquinha viesse a este mundo para outra cousa. Tinha olho fino e língua afiada. Ninguém podia escapar ao seu terrível binóculo.

Alberto tinha deixado a mala em um hotel onde alugou sala e quarto. O comendador, não desejando que o rapaz se sacrificasse mais aquela noite, que pedia descanso, pediu a Alberto que não fizesse cerimônia, e apenas julgasse que eram horas se fosse embora.

Alberto entretanto parecia disposto a não usar tão cedo da faculdade que lhe dava Nunes. Amável, conversado e prendado, o nosso Alberto entreteve a família até muito tarde; mas por fim saiu, com grande pena de D. Feliciana e grande satisfação de Luísa.

Por que motivo esta satisfação? Tal era a pergunta que a si mesmo fazia o comendador quando Alberto se retirara.

- Sabes que mais, Feliciana? - disse o Nunes apenas se achou no quarto com a mulher -. Creio que a rapariga não simpatizou com o Alberto.

- Não?

- Não tirei os olhos dela, e posso afiançar que parecia extremamente aborrecida.

- Pode ser - observou D. Feliciana -, mas isso não é uma razão.

- Não é?

- Não é.

Nunes abanou a cabeça.

- Raras vezes se pode vir a gostar de uma pessoa de quem se não gostou logo - disse ele sentenciosamente.

- Oh! Isso não! - respondeu logo a mulher-. Também eu quando te vi antipatizei solenemente contigo, e entretanto...

- Sim, mas isso é raro.

- Menos do que pensas.

Houve um silêncio.

- E contudo este casamento era muito do meu agrado - suspirou o marido.

- Deixa estar que eu arranjo tudo.

Com estas palavras de D. Feliciana terminou a conversa.

IV

Qual era a causa da tristeza ou aborrecimento de Luísa?

Quem a adivinhou foi Chiquinha. A causa foi um despeito de moça bonita. Alberto era amável demais, amável com todos, olhando para ela com a mesma indiferença com que olhava para as outras pessoas.

Luísa não queria ser olhada assim.

Imaginava ela que um rapaz que fizera uma viagem para vir apresentar-se candidato à sua mão devia prestar-lhe alguma homenagem, em vez de a tratar com a mesma delicadeza que dispensava aos outros.

No dia seguinte estas impressões de Luísa estavam mais dissipadas. O sono foi a causa disso, e também a reflexão.

"Talvez que ele não ousasse...", pensava ela.

E esperou que ele lá fosse nesse dia.

Pouco depois do almoço recebeu Luísa uma carta do alferes Coutinho. O namorado já tinha notícia do pretendente, e escrevera a epístola meia lacrimosa, meia ameaçadora. Era notável o seguinte período:

... Podes, mulher ingrata, calcar a teus pés o meu coração, cujo crime foi amar-te com todas as suas forças, e palpitar por ti a todas as horas!... Mas o que tu não podes, o que ninguém poderia, nem Deus, é fazer com que eu te não ame agora e sempre, e até debaixo da fria campa!... E um amor destes merece desprezo, Luísa?...

A epístola do alferes impressionou a moça.

"Este ama-me", pensava ela, "e o outro!..."

O outro chegou pouco depois, já reformado na roupa, já mais cortesão com a moça. Um quarto de hora bastou para que Luísa modificasse a sua opinião a respeito do rapaz.

Alberto aproveitou as liberdades que lhe davam com ela para lhe dizer que a achava mais bela do que a sua imaginação sonhara.

- E de ordinário - acrescentou ele -, a nossa imaginação nos ilude. Se desta vez estive abaixo da realidade, a causa disto é que a sua beleza está além da imaginação humana.

Neste sentido fez o noivo um discurso obscuro, oco e mal alinhavado, que ela ouviu com delícias.

- Veio de tão longe para zombar de mim? - perguntou ela.

- Zombar! - disse Alberto ficando sério.

- Oh! Perdão - disse ela -, eu não queria ofendê-lo; mas creio que isso só por zombaria se poderia dizer...

- Oh! Nunca! - exclamou Alberto apertando docemente a mão de Luísa.

O comendador surpreendeu esta cena, e a sua alegria não conheceu limites. Todavia era conveniente dissimulá-la, e assim o fez.

- Tudo caminha bem - dizia ele consigo -. O rapaz não é peco.

E não era. Nessa mesma tarde perguntou ele a Luísa se queria aceitá-lo por esposo. A moça não contava com esta pergunta a queima-roupa e não soube que lhe responderia.

- Não quer? - perguntou o rapaz.

- Eu não disse isso.

- Mas responda.

- Isso é com meu pai.

- Com seu pai? - perguntou Alberto espantado -. Mas ele governa então o seu coração?...

Luísa nada respondeu, nem podia responder. Houve um longo silêncio; Alberto foi o primeiro que falou.

- Então - disse ele -; que me responde?

- Deixe-me refletir.

Alberto fez uma careta.

- Refletir? - perguntou ele -. Mas o amor é uma cousa e a reflexão é outra.

- É verdade - respondeu a moça -; e neste caso, deixe que eu o ame.

Não contando com esta resposta, Alberto empalideceu, e viu bem que era uma espécie de castigo que ela queria dar-lhe por causa da sua intempestiva reflexão. Pareceu-lhe que fora esquisito falar de amor a uma moça a quem via pela primeira vez.

Luísa não se arrependeu da pequena lição dada ao pretendente, e pareceu-lhe conveniente conservá-lo na incerteza durante alguns dias, a fim de o castigar ainda mais.

Não contava ela porém com o golpe que lhe preparava o alferes Coutinho.

Já sabemos que este alferes era íntimo amigo de Nicolau. Várias vezes o filho de Nunes o convidara para ir à casa do pai; mas Coutinho sempre recusara o convite delicadamente, e parece que o fazia justamente para se não aproximar de Luísa.

Como?

É verdade. Na opinião de Coutinho, o amor não vive só de mistério, vive também de distância.

A máxima poderia ser excelente, mas no caso atual não prestava para nada. Coutinho compreendeu isto perfeitamente, e com destreza conseguiu ser convidado nessa noite por Nicolau para lá ir.

De maneira quê, no meio de seus devaneios poéticos, ouvindo as narrações que Alberto fazia diante da família encantada com o narrador, Luísa viu assomar à porta a figura do irmão e a do alferes.

Luísa reteve um grito.

Nicolau apresentou o amigo a toda a família, e a conversa um pouco esfriou com a chegada do novo personagem; mas não tardou que continuasse no mesmo tom.

Luísa não ousava olhar para um nem para outro. Alberto nada percebeu nos primeiros momentos; mas Coutinho tinha os olhos cravados nela com tanta insistência, que era impossível não ver nele, senão um rival feliz, ao menos um pretendente resoluto.

"Veremos!", disse ele consigo.

"Quem vencerá?", perguntava a si mesmo o alferes Coutinho olhando a furto para o candidato do Norte.

V

Ao passo que o Nunes e D. Feliciana se davam por felizes julgando bem encaminhadas as cousas, e Chiquinha premeditava trocar o Antonico pelo Alberto, uma luta se travava no espírito de Luísa.

Uma luta neste caso era já probabilidade de vitória para Alberto, visto que o outro era o namorado antigo, aceito e amado. O coração de Luísa parecia feito para estas situações dúbias em que a vaidade de moça toma as feições de amor, com tanta habilidade que ilude os mais.

Alberto tinha qualidades brilhantes, ainda que não sólidas; mas Coutinho era já o namorado aceito, e sempre deixava saudades.

Demais, Alberto era um bom casamento, mas a moça sentia que ele queria dominá-la depois, e já pressentia nele alguns sintomas de vontade imperiosa; ao passo que o alferes, exceto alguns rompantes sem consequência, era um verdadeiro paz d'alma.

Estas razões, pesava-as a moça no seu interior, e ora se inclinava a um, ora a outro dos dois namorados.

Às vezes adotava-os ambos, porque, ao mesmo tempo que trocava palavras de esperança com Alberto, escrevia cartas apaixonadas ao alferes.

Nesta situação decorreram alguns dias, sem que o comendador visse apontar no horizonte uma esperança. Ora a filha parecia dada ao namoro do Alberto, ora a achava fria, reservada, indisposta contra ele.

Alberto compreendeu a figura que estava fazendo, e determinou dar um golpe definitivo.

Uma noite, em que conversava com ela um pouco retirado dos outros, Alberto perguntou à moça, quando ela menos esperava:

- Então? Há longos dias espero uma resposta; confio que ma dará hoje.

Luísa não respondeu logo, mas quando ia abrir a boca, interrompeu-a Alberto dizendo:

- Já sei a causa da sua esquivança...

- Já sabe? - perguntou a moça rindo.

Alberto fez com a cabeça um sinal afirmativo.

- Já sei - acrescentou ele.

- E qual é, não me dirá?

- A senhora namora outro.

Luísa ficou séria.

- Não se zangue - continuou Alberto -; eu sei que namora a outro, e desejava que de uma vez por todas se decidisse ou por um ou por outro.

Luísa ia responder ao rapaz, e já preparava uma dose de indignação necessária no caso, quando a aparição do comendador Nunes veio interromper a cena.

Nunes reparou no acanhamento dos dois, e ficou triste; mas não tardou que lhe voltasse a alegria, ao ver as maneiras afáveis com que ambos se tratavam em presença dele.

Tão contente ficou que não hesitou em aludir ali mesmo ao projeto do casamento sem reparar na inconveniência do caso.

Luísa não combateu a ideia do pai nem também se mostrou solícita em aceitá-la; ouviu-o apenas.

Quando o comendador ficou a sós com Alberto, disse:

- Homem, você parece-me palerma.

- Por quê?

- Ora, por quê! Há tanto tempo para obter uma resposta. Não consegue fazer-se amar estando só em campo.

- Eis o seu engano.

- Como assim?

Alberto fez um gesto pedindo silêncio, e foram para o gabinete do comendador. Este fechou a porta e ambos ficaram a sós.

- Então, que temos? - perguntou Nunes.

- Há mouro na costa - segredou Alberto.

- Então é recente, porque até agora...

- Não, é antigo.

- Antigo?

- Sim, já existia antes da minha vinda.

Nunes ficou aturdido com a notícia.

- E quem é esse peralta? - disse ele bufando de raiva.

- Não lho posso dizer - respondeu discretamente o candidato.

O comendador entrou a passear aflito, sem atender às rogativas de Alberto, que lhe recomendava silêncio.

- Vou saber quem é - disse ele caminhando para a porta.

- Como? - perguntou Alberto.

- Vou interrogar Luísa.

Alberto travou-lhe do braço e fê-lo sentar.

- Meu caro sogro - - disse Alberto - chamo-lhe assim porque estou certo da vitória final -, não convém nunca proceder por meios violentos. Desde que alguma cousa possa dar ao meu rival a auréola da perseguição estou perdido. Deixe o negócio por minha conta.

Nunes concordou com estas razões de Alberto e viu nelas o indício de uma grande cabeça.

Abraçou-o e saiu a passeio.

VI

Nicolau, que era um estouvado, nada compreendeu da situação em que se achava a irmã, e ignorava absolutamente o namoro do Coutinho, porque este, conhecendo a leviandade do amigo, nunca lhe confiou nada.

Não acontecia porém o mesmo a um primo deles, o jovem Gonçalves, filho de um irmão de D. Feliciana, e chegado poucos dias antes de Minas, onde o pai tinha uma fazendola.

Gonçalves compreendeu logo que Alberto e Coutinho namoravam a prima Luísa, e que esta os namorava a ambos.

Era tanto mais de admirar que Gonçalves fizesse esta descoberta, quanto que dificilmente se acharia outro mais papalvo que ele. Talvez por isso mesmo não procurasse Luísa à vista dele encobrir o jogo que estava fazendo.

Qualquer que fosse a razão, Gonçalves descobriu a cousa e achou-a muito engraçada. Neste sentido fez uma alusão à prima.

- Prima - disse ele -, você é muito fina...

- Por quê? - inquiriu esta muito espevitada.

- Porque acendeu vela a dois santos - respondeu Gonçalves tranquilamente.

Luísa deu de ombros e saiu.

Mas desde esse dia tratou de se não expor aos olhos terríveis do sonso Gonçalves. E como pudesse acontecer que o Coutinho, fiado na palermice de Gonçalves, não dissimulasse convenientemente a sua chama, Luísa tratou de o avisar.

- Cuidado com Gonçalves.

- Por quê?

- Pode descobrir-nos.

- Ora, é um tolo.

- Não, é um sonso.

Alberto não teve o benefício deste aviso; mas Luísa já lhe ia dando mais corda, e se lhe não disse tão claramente como a Coutinho o que pensava do primo Gonçalves, deu-o a entender.

A situação de Alberto melhorara, mas não era ainda igual à de Coutinho. Se Luísa desse mostras de o desprezar era provável que o candidato desistisse das suas pretensões; mas como ela aceitava em princípio a sua corte, estava Alberto resolvido a pleitear a causa.

Além disso, as cartas do pai eram instantes a respeito do assunto que o trouxera ao Rio de Janeiro, e o próprio rapaz estava ansioso por voltar à província natal.

Nestes termos, lembrou-se de dar um golpe desusado, e próprio de romance: ir entender-se com o rival.

O caso era difícil; era necessário muito tino para não cair no ridículo. Convinha, porém, deslindar a dificuldade e fugir ao prolongamento de uma situação insuportável para os dois êmulos.

Apenas assentou nisto foi Alberto procurar Coutinho. Achou-o em casa. Como se conheciam da casa do comendador era-lhes fácil disfarçar algum tanto a situação singular em que se achavam um para com o outro.

Coutinho, além disso, posto parecesse impetuoso nos seus afetos - era-o ao menos nas suas cartas -, tinha hábitos de sociedade e sabia dissimular perfeitamente.

As primeiras palavras foram indiferentes; Coutinho compreendeu, porém, que algum motivo trazia Alberto à casa dele, e esse motivo não podia deixar de ser a pessoa e a mão de Luísa.

"Quererá que eu lhe ceda as minhas vantagens mediante alguma partícula do dote?", dizia ele.

Pela sua parte Alberto também reflexionava:

"Por onde chegarei ao terrível assunto? O sujeito não me parece de boa avença. Vamos, coragem!"

E de repente, quando o Coutinho menos esperava, dispara-lhe em cheio esta pergunta:

- O senhor ama D. Luísa?

Coutinho estremeceu com a pergunta, posto houvesse percebido que a namorada era o assunto exclusivo da visita. Durante alguns minutos não soube que responder.

Alberto repetiu a pergunta.

Coutinho tirou charutos da algibeira, ofereceu a Alberto, que o não aceitou, e enquanto se preparava para acender outro, respondeu à pergunta com outra pergunta:

- E o senhor também a ama?

- Por que o hei de negar se o senhor o sabe, e por que o negará o senhor se eu o sei? - respondeu Alberto.

- Nesse caso - redarguiu Coutinho com finura -, não foi para dizermos um ao outro aquilo que ambos sabemos que o senhor cá veio.

- Não.

- Queira falar.

- Agora aceito o seu charuto - disse amigavelmente Alberto.

Acendeu o charuto e começou a falar.

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