Conto

Uma Loureira

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em maio e junho de 1872, assinado por Lara. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

Havia grande agitação em casa do comendador Nunes, em certa noite de abril de 1860.

Não era comendador o Sr. Nicolau Nunes, era apenas oficial da Ordem da Rosa, mas todos lhe davam o título de comendador, e o Sr. Nunes não resistia a esta deliciosa falsificação. A princípio reclamou sorrindo contra a liberdade dos amigos, que desta maneira emendaram a parcimônia do governo. Mas os amigos insistiam no tratamento, e até hoje ainda se não descobriu o meio de recusarmos uma cousa que desejamos do fundo d'alma. Ora, o Sr. Nunes desejava do fundo d'alma ser comendador, e quando falou ao seu compadre, o conselheiro F., foi com a mira na comenda. O conselheiro empenhou-se com o ministro, e este apenas consentiu em dar o hábito ao Sr. Nunes. Graças aos empenhos, pôde o candidato obter o oficialato.

Era ele um homem de 45 anos, um tanto calvo, bem apessoado, nariz não vulgar, se atendermos no tamanho, mas vulgaríssimo se lhe estudarmos a expressão. O nariz é um livro, até hoje pouco estudado pelos romancistas, que aliás se presumem grandes analistas da pessoa humana. Eu, quando vejo alguém pela primeira vez, não lhe estudo a boca, nem os olhos, nem as mãos; estudo-lhe o nariz. Mostra-me o nariz, e eu direi quem és.

O nariz do comendador Nunes era a cousa mais vulgar deste mundo; não exprimia cousa nenhuma de jeito, nem de elevação. Era um promontório, nada mais. E, todavia, o comendador Nunes tirava grande vaidade do nariz, por lhe haver dito um sobrinho que era nariz romano. Havia, é verdade, uma corcova no meio da extensa linha nasal do comendador Nunes, e naturalmente foi por zombaria que o sobrinho chamou àquilo romano. A corcova era um acervo de protuberâncias irregulares e impossíveis. Em suma, podia-se dizer que a cara do comendador Nunes era composta de dois Estados divididos por uma cordilheira extensa.

Fora destas circunstâncias nasais, nada havia que dizer da pessoa do comendador Nunes. Era boa figura e boa alma.

Dizer quais eram os seus meios de vida e o seu passado importa pouco para a nossa história. Basta dizer que, se quisesse deixar de trabalhar, já tinha que comer, e deixar aos filhos, e à esposa.

A esposa do comendador Nunes era uma rochonchuda senhora de 46 anos, relativamente fresca, pouco amiga de brilhar fora de casa, e toda dada aos cuidados do governo doméstico. O seu casamento com o comendador Nunes foi feito contra a vontade do pai, pela razão de que, nesse tempo, Nunes não tinha vintém. Mas o pai era boa alma, e, apenas soube que o genro ia fazendo fortuna, fez as pazes com a filha. Morreu nos braços de ambos.

Amaram-se muito os dois esposos, e os frutos desse amor foram nada menos de dez filhos, dos quais apenas escaparam três, Luísa, Nicolau e Pedrinho.

Nicolau tinha 20 anos, Pedrinho, 7, e apesar desta notável diferença de idade não se pode dizer quem tinha mais juízo, se Pedrinho, se Nicolau.

Desejoso de o ver em boa posição literária, Nunes mandara o filho passar alguns anos na academia de São Paulo, e realmente ele os passou ali, até obter uma carta de bacharel. O diploma dado ao jovem Nicolau podia fazer crer que ele de fato sabia alguma cousa; mas era completa ilusão. Nicolau saiu sabendo pouco mais ou menos o que sabia antes de lá entrar.

Em compensação, ninguém era mais versado no esticado das luvas, no talhado da casaca, no apertado da bota, e outras cousas assim, em que Nicolau era mais que bacharel, era doutor de borla e capelo.

Luísa tinha 18 anos, e podia-se dizer que era a flor da família. Baixinha e delgada, um tanto pálida e morena, Luísa inspirava facilmente simpatia, e mais do que simpatia a quem a visse pela primeira vez. Vestia bem, mas aborrecia o luxo. Tocava piano, mas aborrecia a música. Alguns caprichos tinha, que, à primeira vista, poderiam desagradar à gente, mas, bem pesadas as cousas, as suas qualidades venciam os caprichos; o que era uma grande compensação.

Dona Feliciana tinha na filha todas as suas esperanças de imortalidade. Dizia ela que a sua ascendência era uma linha não interrompida de boas donas de casa. Queria que a filha fosse uma digna descendente de tão preclaro sangue, e continuasse a tradição que recebera. Luísa dava esperança disso.

Tal era a família Nunes.

II

Como ia dizendo, grande era a agitação em casa do comendador Nunes em certa noite de abril de 1860.

A causa desta agitação era nada menos que a apresentação de um rapaz, recentemente chegado do Norte, parente remoto dos Nunes e indigitado noivo da menina Luísa.

Chamava-se Alberto o rapaz, e tinha seus 27 anos feitos. A natureza o dotara de uma excelente figura e de um bom coração. Não escrevi à toa estes qualificativos; o coração de Alberto era bom, mas a figura era muito melhor.

O pai do candidato escrevera dois meses antes ao comendador Nunes uma carta em que lhe anunciava a vinda do filho, e aludia às conversas que tiveram ambos os velhos acerca do enlace matrimonial dos pequenos.

O comendador recebeu esta carta logo depois do jantar, e não a leu, porque era regra sua não ler nada depois do jantar, sob pretexto de que lhe perturbaria a digestão.

Pedrinho, que tinha tanto juízo como o irmão bacharel, achou a carta em cima da mesa, fê-la em pedaços para arranjar canoas de papel e armar assim uma esquadra dentro de uma bacia. Quando deram por esta travessura três quartas partes da carta já estavam em nada, porque o pequeno, vendo que alguns navios não navegavam bem, de todo os destruiu.

Os pedaços que ficaram eram apenas palavras soltas, e com algum sentido... mas que sentido! Só restavam palavras vagas e terríveis: teus... amores... Luísa... ele... flor em botão... lembras-te?

Quando a senhora D. Feliciana leu essas perguntas misteriosas sentiu que o sangue lhe subia todo ao coração, e depois à cabeça; estava iminente um ataque apoplético. Acalmou-se felizmente, mas ninguém pôde estancar-lhe as lágrimas.

Durante o longo tempo de casados nunca a senhora D. Feliciana duvidara uma vez sequer do marido, que aliás foi sempre o mais refinado hipócrita que o diabo mandou a este mundo. Aquele golpe, no fim de tantos anos, foi tremendo. Debalde o comendador Nunes alegava que de fragmentos nenhum sentido se poderia tirar, a esposa ofendida persistia nas recriminações e repetia as palavras soltas da carta.

- Queridinha - disse o comendador -, esperemos outra carta, e tu verás a minha inocência mais pura que a de uma criança de berço.

- Ingrato!

- Feliciana!

- Vai-te, monstro!

- Mas, minha filha...

- Flor em botão!

- É uma frase vaga.

- Teus amores!...

- Duas palavras soltas; pode ser que ele quisesse dizer. "Como vão os teus filhos, esses dois amores." Já vês...

- Lembras-te?

- Que tem isso? Que há nessa palavra que possa encerrar um crime?

- Ele!

E nisto passaram longas horas e longos dias.

Afinal, Feliciana se foi acalmando com o tempo, e ao cabo de um mês veio nova carta do pai de Alberto dizendo que impreterivelmente o rapaz estava aqui daí a um mês.

Por felicidade do comendador Nunes, o pai do noivo não tinha a musa fértil, e a segunda carta era mais ou menos do mesmo teor da primeira, e a senhora D. Feliciana, já convencida, esqueceu completamente os rigores do marido.

Comunicada a notícia ao objeto dela, que era a menina Luísa, nenhuma objeção fez esta ao casamento, e disse que estaria por tudo o que o pai quisesse.

- Isso não - disse o comendador -; eu não te obrigo a casar com ele. Se gostares do rapaz, serás sua esposa; no caso contrário, fá-lo-ei voltar com as mãos abanando.

- Hei de gostar - respondeu Luísa.

- Tens algum namoro? - perguntou Nunes com alguma hesitação.

- Nenhum.

Suspeitando que podia haver alguma cousa, que a menina não ousaria confiar-lhe, Nunes incumbiu a mulher de sondar o coração da pequena.

Revestiu-se a senhora D. Feliciana daquela meiga severidade, que tanto quadrava com o seu caráter, e interrogou francamente a filha.

- Luísa - disse ela -, eu fui feliz no meu casamento porque amei muito teu pai. Só há uma cousa que faça uma noiva feliz, é o amor. O que é o amor, Luísa?

- Não sei, mamãe.

Feliciana suspirou.

- Não sabes? - disse ela.

- Não sei

- É incrível!

- É verdade.

- E serei eu com os meus quarenta e seis anos, que te ensine o que é o amor? Estás zombando comigo. Nunca sentiste nada por algum rapaz?

Luísa hesitou.

- Ah! - disse a mãe -. Vejo que sentiste já.

- Senti uma vez palpitar-me o coração - disse Luísa -, ao ver um rapaz, que logo no dia seguinte me escreveu uma carta...

- E tu respondeste?

- Respondi.

- Desgraçada! Nunca se respondem a estas cartas sem ter certeza das intenções do autor delas. Teu pai... Mas deixemos isto. Respondeste só uma vez?...

- Respondi vinte e cinco vezes.

- Jesus!

- Mas ele casou com outra, segundo soube depois...

- Aí está. Vê que imprudência...

- Mas nós trocamos as cartas.

- Foi só esse, não?

- Depois veio outro...

Dona Feliciana pôs as mãos na cabeça.

- A esse escrevi só quinze.

- Só quinze! E veio mais outro?

- Foi o último.

- Quantas?

- Trinta e sete.

- Santo Nome de Jesus!

Dona Feliciana estava louca de surpresa. Luísa, a muito custo, conseguiu acalmá-la.

- Mas em suma - disse a boa mãe -, ao menos agora não amas nenhum?

- Agora nenhum.

Dona Feliciana respirou, e foi tranquilizar o marido acerca do coração da filha. Luísa contemplou a mãe com verdadeiro amor, e foi para o quarto responder à quinta carta do alferes Coutinho, amigo íntimo do bacharel Nunes.

III

Repito, e agora será a última vez, grande era a agitação em casa do comendador Nunes nesta noite de abril de 1860.

Luísa já estava vestida de ponto em branco, e encostada à janela conversava com uma amiga que morava na vizinhança e costumava ir lá tomar chá com a família.

Dona Feliciana, também preparada, dava as ordens convenientes para que o futuro genro recebesse uma boa impressão quando lá chegasse.

O comendador Nunes estava fora; o paquete do Norte havia chegado perto das ave-marias, e o comendador foi a bordo receber o viajante. Acompanhava-o Nicolau. Quanto a Pedrinho, travesso como um milhão de diabos, ora puxava o vestido da irmã, ora tocava tambor no chapéu do Vaz (pai da amiga de Luísa), ora surripiava um doce.

O Sr. Vaz, a cada travessura do pequeno, ria com aquele riso amarelo de quem não acha graça nenhuma; e por duas vezes esteve tentado a dar-lhe um beliscão. Luísa não reparava no irmão, tão entretida estava nas suas confidências amorosas com a filha do Vaz.

- Mas você está disposta a casar com esse sujeito a quem não conhece? - perguntava a filha do Vaz a Luísa, encostadas ambas à janela.

- Ora, Chiquinha, você parece tola - respondia Luísa -. Eu disse que casava, mas isso depende das circunstâncias. O Coutinho pode roer-me a corda como já roeu à Amélia, e não é bom ficar desprevenida. Além disso, pode ser que o Alberto me agrade mais.

- Mais do que o Coutinho?

- Sim.

- É impossível.

- Quem sabe? Eu gosto do Coutinho, mas estou certa de que ele não é a flor de todos os homens. Pode haver outros mais bonitos...

- Isso há - concordou maliciosamente a Chiquinha.

- Por exemplo, o Antonico.

Chiquinha fez um sinal afirmativo.

- Como vai ele?

- Está bom. Pediu-me uma trança de cabelos anteontem...

- Sim!

- E eu respondi que depois, quando estivesse mais certa de seu amor.

Neste ponto do diálogo, o Vaz, que estava na sala, fungou uma pitada. Luísa reparou que era feio deixá-lo só, e saíram ambas da janela.

Entretanto, a senhora D. Feliciana dera as últimas ordens e veio para a sala. Bateram sete horas, e o viajante não aparecia. A esposa do comendador Nunes estava ansiosa por ver o genro, e a futura noiva sentia uma cousa que se parecia com a curiosidade. Chiquinha fazia os seus cálculos.

"Se ela não o quiser", pensava esta dócil criatura, "e se ele me agradar sacrifico o Antonico."

Vinte minutos depois houve um rumor na escada, e D. Feliciana correu ao patamar para receber o candidato.

Entraram efetivamente na sala os três personagens esperados, o Nunes, o filho e Alberto. Todos os olhos se cravaram neste, e durante dois minutos, ninguém viu mais ninguém na sala.

Alberto compreendeu facilmente que era objeto da atenção geral, e não se perturbou. Pelo contrário, subiram-lhe à cabeça uns fumos de soberba, e esta boa impressão lhe desatou a língua e deu livre curso aos cumprimentos.

Era um rapaz como qualquer outro. Apresentava-se bem, e não falava mal. Nada tinha em suas feições que fosse notável, exceto um certo modo de olhar quando alguém lhe falava, um certo ar de impaciência. Isto mesmo ninguém lho notou então, nem depois naquela casa.

Passaremos por alto as primeiras horas da conversa, que foram empregadas em narrar a viagem, a referir as notícias que mais ou menos podiam interessar as duas famílias.

Às 10 horas vieram dizer que o chá estava na mesa, e não era chá, e sim uma esplêndida ceia preparada com o esmero dos grandes dias. Alberto deu o braço a D. Feliciana, que já estava cativa das maneiras dele, e todos se encaminharam para a sala de jantar.

A situação daquelas diferentes pessoas já estava muito modificada; a ceia acabou por estabelecer entre Alberto e os outros uma discreta familiaridade.

Entretanto, apesar da extrema amabilidade do rapaz, parecia que Luísa não estava contente. O comendador Nunes sondava com os olhos a fisionomia da filha, e estava inquieto por não ver nela o menor vestígio de alegria. Feliciana toda enlevada nos modos e palavras de Alberto não dera fé daquela circunstância, ao passo que Chiquinha, descobrindo no rosto de Luísa uns sinais de despeito, parecia alegrar-se com isto, e sorrir-lhe a ideia de sacrificar desta vez o Antonico.

Reparava nestas coisas o Alberto? Não. A preocupação principal do candidato, durante a ceia, era a ceia, e nada mais. Outras qualidades podiam faltar ao rapaz, mas uma já lhe notava o pai da Chiquinha: a voracidade.

Alberto era capaz de comer a ração de um regimento.

Vaz reparou nesta circunstância, como já tinha reparado em outras. Nem parece que o pai de Chiquinha viesse a este mundo para outra cousa. Tinha olho fino e língua afiada. Ninguém podia escapar ao seu terrível binóculo.

Alberto tinha deixado a mala em um hotel onde alugou sala e quarto. O comendador, não desejando que o rapaz se sacrificasse mais aquela noite, que pedia descanso, pediu a Alberto que não fizesse cerimônia, e apenas julgasse que eram horas se fosse embora.

Alberto entretanto parecia disposto a não usar tão cedo da faculdade que lhe dava Nunes. Amável, conversado e prendado, o nosso Alberto entreteve a família até muito tarde; mas por fim saiu, com grande pena de D. Feliciana e grande satisfação de Luísa.

Por que motivo esta satisfação? Tal era a pergunta que a si mesmo fazia o comendador quando Alberto se retirara.

- Sabes que mais, Feliciana? - disse o Nunes apenas se achou no quarto com a mulher -. Creio que a rapariga não simpatizou com o Alberto.

- Não?

- Não tirei os olhos dela, e posso afiançar que parecia extremamente aborrecida.

- Pode ser - observou D. Feliciana -, mas isso não é uma razão.

- Não é?

- Não é.

Nunes abanou a cabeça.

- Raras vezes se pode vir a gostar de uma pessoa de quem se não gostou logo - disse ele sentenciosamente.

- Oh! Isso não! - respondeu logo a mulher-. Também eu quando te vi antipatizei solenemente contigo, e entretanto...

- Sim, mas isso é raro.

- Menos do que pensas.

Houve um silêncio.

- E contudo este casamento era muito do meu agrado - suspirou o marido.

- Deixa estar que eu arranjo tudo.

Com estas palavras de D. Feliciana terminou a conversa.

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