Conto

Uma Águia Sem Asas

1872

III

Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado.

Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.

Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não lia só, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.

- A poesia - dizia ela -, não se analisa, sente-se ou esquece-se.

Seria esse o ponto vulnerável da moça?

Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas, sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.

Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo quê não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:

- A poesia é a linguagem dos anjos.

- O amor e as musas nasceram no mesmo dia.

- A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.

E outras cosas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.

Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.

Esteve assim calada durante longo tempo.

- Contempla a sua pátria? - perguntou-lhe com meiguice Jorge.

- A minha pátria? - disse a moça sem perceber a ideia do rapaz.

- É a bela hora do poente - continuou este -, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite, mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! Tarde! Oh! Poema! Oh! Amor!

Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.

- Gosta então muito da tarde? - perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.

- Ah! Muito! - respondeu Jorge -. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.

- Isto é sublime! - exclamou a moça, batendo palmas.

Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara.

A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.

- Creio que meu pai me chama - disse ela-; vamos.

Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família.

Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranquila.

"Não tem que ver", dizia Jorge consigo, "acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas..."

Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta, seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.

Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que o merece bem:

... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma aspiração constante para a região serena dos espíritos, um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando duas almas da mesma índole se encontram como as nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas estrofes!... Vem, meu anjo! Passemos uma vida assim! Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante, porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...

E cinco ou seis páginas neste gosto.

Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.

Digamos a verdade toda.

Jorge passou a noite sobressaltado.

Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois, sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas mais cousas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.

Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.

- Minha demora é pequena - disse o rapaz -; venho por parte de minha mana.

- Ah!

- E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.

- Nisto quê?

- Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a cousa fica entre nós...

Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.

- Minha mana é caprichosa - dizia ele -, e por isso...

- Concordo que foi um ato de loucura - disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara -; mas o senhor compreenderá que um amor...

- Compreendo tudo - disse Carlos -; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.

E saiu.

Jorge ficou só.

Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado.

Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.

- Safa! - disse Andrade -. Essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra cousa.

- Não sei disto - respondeu Jorge -; confesso-me vencido, eis tudo.

Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto falho na couraça de Sara.

Qual deles acertaria?

Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.

IV

Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.

Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! A moça parecia cada vez mais recalcitrante.

Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.

Sara era uma rocha.

A nada cedia.

Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.

Restava Andrade.

Teria ele descoberto alguma cousa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa da isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela.

Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada por seu pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.

James Hope participou alegre sua notícia aos três moços.

- Mas vão já? - perguntou Andrade, quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.

- Daqui a dois meses - respondeu o velho.

"Valha-nos isso!", pensou Andrade.

Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo.

Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.

Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada um dava a sua opinião.

Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.

A distração da moça era evidente.

Em que pensaria ela?

De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.

- Sabem a novidade? - disse ele.

- Que é? - perguntaram todos.

- Caiu o ministério.

- Deveras? - disse James.

- Que temos nós com o ministério? - perguntou uma moça.

- O mundo caminha bem sem o ministério - observou outra.

- Oremos pelo ministério - acrescentou piedosamente uma terceira.

Não se falou mais nisto. Aparentemente era uma cousa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.

Assim seria para os outros.

Para Andrade foi um raio de luz - ou pelo menos um indício veemente.

Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois dela ficara algum tanto pensativa.

Por quê?

Tomou nota do incidente.

Noutra ocasião, foi surpreendê-la a ler um livro.

- Que livro será esse? - perguntou ele sorrindo.

- Veja - respondeu ela apresentando-lhe o livro.

Era uma história de Catarina de Médicis.

Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo.

Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor.

Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:

Empurraram me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.

A peça era o Pedro.

No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado.

Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida; mas o que lhe aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?

Pela razão da beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira.

Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.

- Venha - disse-lhe Hope -, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.

- Ah!

- É um excelente drama este Pedro - disse a moça apertando a mão de Andrade.

- Excelente só? - perguntou ele.

- Diga-me - perguntou James - este Pedro sobe sempre até o fim?

- Não o disse ele no primeiro ato? - disse Andrade -. Subir! Subir! Subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição não pode deixar de a realizar, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.

- Tem razão - disse Sara.

- Pela minha parte - continuou Andrade -, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?

Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado.

Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços.

Adivinhara tudo.

Tudo o quê?

Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.

V

Eram duas pessoas indiferentes até àquele dia; daí a pouco, pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se.

Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso ao mesmo tempo que tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo.

Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.

Amor é bom para as almas angélicas.

Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.

Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera a pouco e pouco convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.

Que mais queria a moça?

Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono poria esse trono em perigo.

Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras.

Andrade compreendera isso.

E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça.

Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o nosso Andrade.

A paz era para ele o ideal.

E a ambição não existe sem perpétua guerra.

Como conciliar pois este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?

Deixava ao futuro?

Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?

A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.

- Perco ainda uma vez a minha viagem - disse o velho -, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.

- Parece-lhe que eu?... - murmurou Andrade.

- Ande lá - disse Hope batendo no ombro do futuro genro-; minha filha morre pelo senhor.

O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua de mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí.

Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.

Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideiras.

Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano.

Quis disfarçá-lo, mas não pôde.

E um dia disse a Andrade:

- Por que razão a águia perdeu as asas?

- Qual águia? - perguntou ele.

Sara sorriu amargamente.

Andrade compreendeu a intenção dela.

- A águia era apenas uma pomba - disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.

Sara recuou e foi encostar-se à janela.

Caía então a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.

- Suspiras? - perguntou Andrade.

Não teve resposta.

Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade, que batia compassadamente no chão.

Afinal, levantou-se o rapaz.

- Olha, Sara - disse ele -, vês este céu dourado e esta natureza tranquila?

A moça não respondeu.

- Isto é a vida, isto é a verdadeira glória - continuou o marido -. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.

Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima.

Verteu duas.

Uma pelas ambições abatidas e desfeitas.

Outra pelo erro em que estivera até então.

Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.

Que mais lhe direi para completar a narrativa?

Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos.

Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: "Foi boa esposa e teve muitos filhos".

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