VIII
Um dia, em casa de Julião, estando já estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.
- Importante? - disse ele.
- Im-por-tan-tís-si-ma - confirmou a moça com o seu ar mais sonso.
- Que é?
- Descobri uma coisa que o senhor sente a meu respeito.
E dizendo isto, Fernandinha chegou os olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e calou-se um instante.
- Que sinto eu? Vá lá, diga.
- O senhor odeia-me - concluiu a moça.
Julião riu-se, e pareceu desabafado de uma opressão.
- Não é verdade? - perguntou ela.
- Pura verdade.
- Agora o que eu não sei é o motivo do ódio - continuou a moça -; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.
- Nem eu, mas deve ter-me feito alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.
- Não será de morte, mas é ódio...
Julião ouviu-a, mas sem comoção. Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:
- Por que me vens tu tentar, anjo rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!
Fernandinha, que se afastara lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas.
- Creio que me ama - dizia ela consigo -; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas estou certa... creio... afirmo... espero que me ame...
A impetuosidade de Fernandinha era só nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida, Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante: deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.
Julião manteve-se no terreno que escolhera - o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família, mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.
- Mas deveras, não gostará de mim? - dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.
Um dia, estando todos na chácara, Fernandinha parecia estouvada e alegre como nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela estremeceu, mas dominou-se logo.
- Seu primo, não é? - disse Henriqueta.
- Não sei, um noivo - repetiu a moça com um gesto nervoso e impaciente.
Julião encaminhou-se para o portão. Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:
- Uma notícia - disse ele -; daqui a quinze dias temos cá o Pimentel.
Dessa vez foi Henriqueta quem estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.
IX
A chegada do Pimentel veio complicar a situação. Complicar não é a expressão exata; veio obscurecê-la ainda mais. Havia entre aquelas quatro pessoas um drama interior, que se desenrolava todo na consciência e no coração de cada um, sem nenhuma manifestação externa, sem contraste visível nem palpável, e, a certos respeitos, sem notícia recíproca. Tal era a dificuldade.
Henriqueta sentiu uma extraordinária impressão ao saber da volta do Pimentel; mas se era principalmente de gosto, era também de medo, de enfado, de alguma coisa que ela mal chegava a entender; e ninguém lha descobriu. Ao contrário, graças à arte que possuía de se dominar, nem Fernandinha pôde perceber nenhuma mudança; aliás, Henriqueta não confiava à outra os seus mais recônditos pensamentos.
Poder-se-ia notar, isso sim, que Henriqueta se tornou durante aqueles quinze dias muito vigilante em relação à amiga; buscava as ocasiões de a ter em casa, iniciara alguns passatempos em que tomava parte o irmão; e até, quando era possível, deixava-os a sós. Fernandinha estimava esses lances sugeridos pela amiga; mas saía deles mais desanimada.
- Qual! Não me ama - pensava ela consigo -. Bem diz mamãe que não gosta de homens matemáticos.
Henriqueta, pela sua parte, quando não tinha presente a outra, tinha-lhe o nome e repetia-o muita vez, espreitando no rosto de Julião o sinal de uma comoção qualquer; mas o rosto dele era de mármore - frio e duro -, e Henriqueta perdia o tempo, e ficava como quem, além do tempo, perdesse as esperanças.
A chegada do Pimentel, vindo complicar a situação, foi também uma diversão nos primeiros dias. Julião foi vê-lo imediatamente; levou-o no dia seguinte a jantar. Henriqueta recebeu-o com muita afabilidade e nada mais. De véspera ensaiara-se a resistir à impressão do primeiro encontro - um ensaio de imaginação que lhe não valeu de coisa nenhuma no dia seguinte. O que lhe valeu muito foi a presença do irmão; diante dele, Henriqueta venceu-se.
- Já não esperava por mim, aposto? - disse Pimentel, apertando a mão da moça, que estava um pouco fria.
Este modo jovial deu-lhe forças; ela respondeu rindo que contava e muito; e acrescentou:
- Os senhores morrem pela Corte, não é assim?
- Também não digo que não - concordou ele -; e posso afiançar-lhe que agora, se a Corte é a vida, viverei cem anos.
- Não vais mais? - perguntou Julião.
- De visita; venho estabelecer-me aqui.
Pimentel estabeleceu-se efetivamente na Corte; mobiliou uma casa no Rio Comprido, meteu-se dentro; e as relações com a família de Julião prosseguiram como dantes, e até um pouco mais frequentes, se não mais íntimas. Esta situação pareceu mortificar Henriqueta e tornar-lhe quase importunas as visitas do Pimentel. Isto mesmo lhe notou Fernandinha.
- Que tem você contra este moço? - perguntou-lhe um dia.
- Nada. Por quê?
- Parece que tem alguma coisa.
- Eu? - disse Henriqueta rindo.
- Você, é verdade; noto que fica, às vezes, um pouco aborrecida quando ele está conosco. Será porque eu estou presente?
- Ora!
Fernandinha viu-a levantar os ombros com tão natural desdém, que acreditou na sinceridade da resposta.
- Se não é isso - continuou ela -, é porque ele lhe parece aborrecido.
Henriqueta hesitou um instante.
- Não digo que não - respondeu ela enfim.
E depois de um instante.
- O que me parece também é que você...
- Acabe! - disse Fernandinha ameaçando-a graciosamente com a mão.
- Acabo: gosta dele.
- Acertou.
O tom era de chasco, mas a ideia acordou-lhe outra - uma ideia má, pueril, de comédia - uma ideia de simulação, para o fim de obter pela inveja o que não obtivera pela sugestão de um afeto melhor. Como a esperança é um alimento eterno, Henriqueta viu luzir no rosto da amiga uma certa expressão, que lhe pareceu de júbilo; viu, e perguntou a si mesma se deveras Fernandinha amava o outro; mas lembrou-lhe os dias passados e abanou a cabeça.
Isto passava-se de noite, pouco depois de oito horas. Às nove retirou-se Fernandinha. Henriqueta ficando só com o irmão, pôs-lhe as mãos nos ombros, olhou longo tempo para ele, e disse rindo.
- Urso!
Julião olhou para ela espantado.
- Urso! - repetiu a irmã, e retirou-se apressada.
X
Julião ficou muito impressionado com a palavra da irmã. Suspeitou que Fernandinha lhe houvesse feito alguma confidência, e que a repetição daquele nome fosse uma espécie de declaração indireta. Era esta justamente a intenção de Henriqueta; e as coisas levariam outro rumo, se fosse diferente o gênio de ambos.
No dia seguinte, ao encontrarem-se os dois irmãos, trocaram um olhar interrogativo, mas nenhum deles ousou responder nada. Henriqueta lançou mão de um recurso; mandou dizer a Fernandinha que fosse jantar com ela. Tinha ideia de os lançar nos braços um do outro, não literalmente, mas de um modo que chegariam, ao cabo de algum tempo, a esse resultado. Infelizmente, o Julião não apareceu em casa; jantou na cidade com Pimentel.
O Pimentel acompanhou-o depois à casa, à noite, seriam oito horas. Fernandinha estava picada, com a ausência de Julião, e recebeu-o de um modo arrufado e quase triste. Ao contrário, em relação a Pimentel, suas maneiras foram outras, outras, as palavras, outros, o gesto e o tom. Nessa mesma diferença podia Julião ler alguma coisa que lhe seria propícia; mas ele não conhecia o coração das mulheres, não praticara jamais essa espécie de luta das afeições; viu naquilo uma preterição.
O caso abalou-o; durante aquelas poucas horas dissimulou como pôde, mas a nova fase das coisas parecia feri-lo cruamente. Talvez Fernandinha lhe notou a impressão, porque recrudesceu de afabilidade com o Pimentel - fez-se o que era, graciosa, estouvada, alegre; - e se a nota intencional era um pouco mais forte do que seria a natural, não deu por isso o irmão de Henriqueta; ele próprio padecia muito.
Mas Henriqueta não padecia menos. Certo, ela via no rosto de Pimentel, ao lado de Fernandinha, alguma coisa parecida com a benevolência superior que se tem com as crianças - um certo ar que excluía qualquer interesse de natureza mais íntima; além disso, via os olhos do provinciano dirigirem-se muita vez para ela, com a expressão que tinham alguns meses antes, e ela então fugia com os seus. Não obstante, padecia; tinha o ciúme exclusivo que treme até dos mais pueris afagos.
- Urso! - pensava ela olhando para o irmão.
E, ao vê-lo tão severo, tão grave, ao contemplar nele o chefe amante e amado da família, sempre tão desvelado e bom, lembrava-lhe a recomendação do pai: - Vivam um para o outro; - e ia ter com ele, e como que o consolava e se consolava daquele voluntário abandono.
Uma palavra bastava para dar à situação um desenlace feliz e breve; ambos, porém, se obstinavam no silêncio; nenhum deles adivinhara o outro.
Essa primeira noite foi amarga para os dois; as seguintes não o foram menos; logo depois o foram de todo. No fim de oito dias, Henriqueta tentou sondar ainda uma vez o irmão; via-o triste, e suspeitou a verdade; este, que não suspeitara nada, furtou-se à curiosidade da irmã.
Henriqueta abanou a cabeça, e depois de um instante de reflexão, disse resolutamente:
- Você gosta de Fernandinha!
Julião fez uma careta de desdém; foi a sua única resposta; Henriqueta contentou-se com ela. Mas se se contentou com a resposta, não se contentou com a solução; era-lhe preciso, à fina força, levá-los ao amor e ao casamento.
Passaram mais oito dias. Uma noite, indo Henriqueta à casa de Fernandinha, achou lá o Pimentel, que já ali tinha estado uma vez ou duas. Achou-os bem; pareceu-lhe sentir que era demais.
- Demais? - pensou ela com um gesto de orgulho.
Era demais. Pimentel e Fernandinha tinham aceitado, por despeito, uma situação dúbia e dissimulada; mas o coração, que nem sempre é bom calculista, trocara as intenções, e eles começaram a sentir-se bem ao pé um do outro, e a descobrir que eram bonitos, capazes de amar, e capazes de ser amados. Daí ao amor não distava um oceano, talvez um rio estreito; e esse rio eles o transpuseram, numa noite de luar, ao pé da janela - tal qual numa balada romântica.
Henriqueta e Julião não gastaram muito tempo a compreender o verdadeiro estado das coisas; e quando compreenderam tiveram um instante de despeito, arrependeram-se da abstenção, da resistência, da dissimulação imposta aos sentimentos que havia neles; mas lembravam-se um do outro, e aprovavam-se.
Um dia tiveram notícia oficial de que ia efetuar-se o casamento de Pimentel e Fernandinha. Julião recebeu-a com impassibilidade; Henriqueta chorou muito durante a noite. No dia seguinte viu-lhe Julião os olhos vermelhos.
- Você chorou?
- Não - murmurou a moça.
- Chorou, sim; porque foi?
Henriqueta calou-se.
- Porque foi, Henriqueta? - insistiu Julião assustado.
A resposta de Henriqueta foi lançar-lhe os braços ao pescoço, e pousar-lhe a fronte no ombro. Julião levantou-lhe brandamente a cabeça; olhou para ela; teve uma súbita intuição da realidade.
- Henriqueta! - disse ele -. Você... você o amava?
A moça baixou os olhos; Julião entendeu tudo; deixou-se cair numa cadeira, com o rosto nas mãos. Foi a vez de Henriqueta, que se chegou a ele, arredou-lhe as mãos, viu-lhe a expressão abatida do rosto; não lhe perguntou nada. Com as mãos cingidas, os olhos para o azul do céu, ficaram assim longo tempo a saborear a dor de seu voluntário e ocioso sacrifício. Compreenderam que nenhum deles quisera ser o primeiro a deixar a família, e daí a inércia e a dissimulação. Talvez nessa hora viam, ao longe, a figura lívida do pai; talvez lhe escutassem a palavra última: - Vivam um para o outro.