Conto

Um Para O Outro

1879
Este conto foi originalmente publicado em A Estação, em julho, agosto, setembro e outubro de 1879, assinado por Machado de Assis. Os exemplares digitalizados do periódico na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro encontram-se mutilados, neles faltando, precisamente, a seção de Literatura. Embora José Galante de Sousa registre o conto na sua Bibliografia de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955. p. 514), a peça não foi incluída em nenhum dos volumes da editora Jackson (década de 1930), nem tampouco nos volumes de contos avulsos reunidos e publicados por Raimundo Magalhães Jr. na década de 1950. O texto-fonte aqui utilizado é o da edição Nova Aguilar, de 2008.

VIII

Um dia, em casa de Julião, estando já estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.

- Importante? - disse ele.

- Im-por-tan-tís-si-ma - confirmou a moça com o seu ar mais sonso.

- Que é?

- Descobri uma coisa que o senhor sente a meu respeito.

E dizendo isto, Fernandinha chegou os olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e calou-se um instante.

- Que sinto eu? Vá lá, diga.

- O senhor odeia-me - concluiu a moça.

Julião riu-se, e pareceu desabafado de uma opressão.

- Não é verdade? - perguntou ela.

- Pura verdade.

- Agora o que eu não sei é o motivo do ódio - continuou a moça -; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.

- Nem eu, mas deve ter-me feito alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.

- Não será de morte, mas é ódio...

Julião ouviu-a, mas sem comoção. Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:

- Por que me vens tu tentar, anjo rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!

Fernandinha, que se afastara lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas.

- Creio que me ama - dizia ela consigo -; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas estou certa... creio... afirmo... espero que me ame...

A impetuosidade de Fernandinha era só nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida, Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante: deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.

Julião manteve-se no terreno que escolhera - o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família, mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.

- Mas deveras, não gostará de mim? - dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.

Um dia, estando todos na chácara, Fernandinha parecia estouvada e alegre como nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela estremeceu, mas dominou-se logo.

- Seu primo, não é? - disse Henriqueta.

- Não sei, um noivo - repetiu a moça com um gesto nervoso e impaciente.

Julião encaminhou-se para o portão. Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:

- Uma notícia - disse ele -; daqui a quinze dias temos cá o Pimentel.

Dessa vez foi Henriqueta quem estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.

IX

A chegada do Pimentel veio complicar a situação. Complicar não é a expressão exata; veio obscurecê-la ainda mais. Havia entre aquelas quatro pessoas um drama interior, que se desenrolava todo na consciência e no coração de cada um, sem nenhuma manifestação externa, sem contraste visível nem palpável, e, a certos respeitos, sem notícia recíproca. Tal era a dificuldade.

Henriqueta sentiu uma extraordinária impressão ao saber da volta do Pimentel; mas se era principalmente de gosto, era também de medo, de enfado, de alguma coisa que ela mal chegava a entender; e ninguém lha descobriu. Ao contrário, graças à arte que possuía de se dominar, nem Fernandinha pôde perceber nenhuma mudança; aliás, Henriqueta não confiava à outra os seus mais recônditos pensamentos.

Poder-se-ia notar, isso sim, que Henriqueta se tornou durante aqueles quinze dias muito vigilante em relação à amiga; buscava as ocasiões de a ter em casa, iniciara alguns passatempos em que tomava parte o irmão; e até, quando era possível, deixava-os a sós. Fernandinha estimava esses lances sugeridos pela amiga; mas saía deles mais desanimada.

- Qual! Não me ama - pensava ela consigo -. Bem diz mamãe que não gosta de homens matemáticos.

Henriqueta, pela sua parte, quando não tinha presente a outra, tinha-lhe o nome e repetia-o muita vez, espreitando no rosto de Julião o sinal de uma comoção qualquer; mas o rosto dele era de mármore - frio e duro -, e Henriqueta perdia o tempo, e ficava como quem, além do tempo, perdesse as esperanças.

A chegada do Pimentel, vindo complicar a situação, foi também uma diversão nos primeiros dias. Julião foi vê-lo imediatamente; levou-o no dia seguinte a jantar. Henriqueta recebeu-o com muita afabilidade e nada mais. De véspera ensaiara-se a resistir à impressão do primeiro encontro - um ensaio de imaginação que lhe não valeu de coisa nenhuma no dia seguinte. O que lhe valeu muito foi a presença do irmão; diante dele, Henriqueta venceu-se.

- Já não esperava por mim, aposto? - disse Pimentel, apertando a mão da moça, que estava um pouco fria.

Este modo jovial deu-lhe forças; ela respondeu rindo que contava e muito; e acrescentou:

- Os senhores morrem pela Corte, não é assim?

- Também não digo que não - concordou ele -; e posso afiançar-lhe que agora, se a Corte é a vida, viverei cem anos.

- Não vais mais? - perguntou Julião.

- De visita; venho estabelecer-me aqui.

Pimentel estabeleceu-se efetivamente na Corte; mobiliou uma casa no Rio Comprido, meteu-se dentro; e as relações com a família de Julião prosseguiram como dantes, e até um pouco mais frequentes, se não mais íntimas. Esta situação pareceu mortificar Henriqueta e tornar-lhe quase importunas as visitas do Pimentel. Isto mesmo lhe notou Fernandinha.

- Que tem você contra este moço? - perguntou-lhe um dia.

- Nada. Por quê?

- Parece que tem alguma coisa.

- Eu? - disse Henriqueta rindo.

- Você, é verdade; noto que fica, às vezes, um pouco aborrecida quando ele está conosco. Será porque eu estou presente?

- Ora!

Fernandinha viu-a levantar os ombros com tão natural desdém, que acreditou na sinceridade da resposta.

- Se não é isso - continuou ela -, é porque ele lhe parece aborrecido.

Henriqueta hesitou um instante.

- Não digo que não - respondeu ela enfim.

E depois de um instante.

- O que me parece também é que você...

- Acabe! - disse Fernandinha ameaçando-a graciosamente com a mão.

- Acabo: gosta dele.

- Acertou.

O tom era de chasco, mas a ideia acordou-lhe outra - uma ideia má, pueril, de comédia - uma ideia de simulação, para o fim de obter pela inveja o que não obtivera pela sugestão de um afeto melhor. Como a esperança é um alimento eterno, Henriqueta viu luzir no rosto da amiga uma certa expressão, que lhe pareceu de júbilo; viu, e perguntou a si mesma se deveras Fernandinha amava o outro; mas lembrou-lhe os dias passados e abanou a cabeça.

Isto passava-se de noite, pouco depois de oito horas. Às nove retirou-se Fernandinha. Henriqueta ficando só com o irmão, pôs-lhe as mãos nos ombros, olhou longo tempo para ele, e disse rindo.

- Urso!

Julião olhou para ela espantado.

- Urso! - repetiu a irmã, e retirou-se apressada.

X

Julião ficou muito impressionado com a palavra da irmã. Suspeitou que Fernandinha lhe houvesse feito alguma confidência, e que a repetição daquele nome fosse uma espécie de declaração indireta. Era esta justamente a intenção de Henriqueta; e as coisas levariam outro rumo, se fosse diferente o gênio de ambos.

No dia seguinte, ao encontrarem-se os dois irmãos, trocaram um olhar interrogativo, mas nenhum deles ousou responder nada. Henriqueta lançou mão de um recurso; mandou dizer a Fernandinha que fosse jantar com ela. Tinha ideia de os lançar nos braços um do outro, não literalmente, mas de um modo que chegariam, ao cabo de algum tempo, a esse resultado. Infelizmente, o Julião não apareceu em casa; jantou na cidade com Pimentel.

O Pimentel acompanhou-o depois à casa, à noite, seriam oito horas. Fernandinha estava picada, com a ausência de Julião, e recebeu-o de um modo arrufado e quase triste. Ao contrário, em relação a Pimentel, suas maneiras foram outras, outras, as palavras, outros, o gesto e o tom. Nessa mesma diferença podia Julião ler alguma coisa que lhe seria propícia; mas ele não conhecia o coração das mulheres, não praticara jamais essa espécie de luta das afeições; viu naquilo uma preterição.

O caso abalou-o; durante aquelas poucas horas dissimulou como pôde, mas a nova fase das coisas parecia feri-lo cruamente. Talvez Fernandinha lhe notou a impressão, porque recrudesceu de afabilidade com o Pimentel - fez-se o que era, graciosa, estouvada, alegre; - e se a nota intencional era um pouco mais forte do que seria a natural, não deu por isso o irmão de Henriqueta; ele próprio padecia muito.

Mas Henriqueta não padecia menos. Certo, ela via no rosto de Pimentel, ao lado de Fernandinha, alguma coisa parecida com a benevolência superior que se tem com as crianças - um certo ar que excluía qualquer interesse de natureza mais íntima; além disso, via os olhos do provinciano dirigirem-se muita vez para ela, com a expressão que tinham alguns meses antes, e ela então fugia com os seus. Não obstante, padecia; tinha o ciúme exclusivo que treme até dos mais pueris afagos.

- Urso! - pensava ela olhando para o irmão.

E, ao vê-lo tão severo, tão grave, ao contemplar nele o chefe amante e amado da família, sempre tão desvelado e bom, lembrava-lhe a recomendação do pai: - Vivam um para o outro; - e ia ter com ele, e como que o consolava e se consolava daquele voluntário abandono.

Uma palavra bastava para dar à situação um desenlace feliz e breve; ambos, porém, se obstinavam no silêncio; nenhum deles adivinhara o outro.

Essa primeira noite foi amarga para os dois; as seguintes não o foram menos; logo depois o foram de todo. No fim de oito dias, Henriqueta tentou sondar ainda uma vez o irmão; via-o triste, e suspeitou a verdade; este, que não suspeitara nada, furtou-se à curiosidade da irmã.

Henriqueta abanou a cabeça, e depois de um instante de reflexão, disse resolutamente:

- Você gosta de Fernandinha!

Julião fez uma careta de desdém; foi a sua única resposta; Henriqueta contentou-se com ela. Mas se se contentou com a resposta, não se contentou com a solução; era-lhe preciso, à fina força, levá-los ao amor e ao casamento.

Passaram mais oito dias. Uma noite, indo Henriqueta à casa de Fernandinha, achou lá o Pimentel, que já ali tinha estado uma vez ou duas. Achou-os bem; pareceu-lhe sentir que era demais.

- Demais? - pensou ela com um gesto de orgulho.

Era demais. Pimentel e Fernandinha tinham aceitado, por despeito, uma situação dúbia e dissimulada; mas o coração, que nem sempre é bom calculista, trocara as intenções, e eles começaram a sentir-se bem ao pé um do outro, e a descobrir que eram bonitos, capazes de amar, e capazes de ser amados. Daí ao amor não distava um oceano, talvez um rio estreito; e esse rio eles o transpuseram, numa noite de luar, ao pé da janela - tal qual numa balada romântica.

Henriqueta e Julião não gastaram muito tempo a compreender o verdadeiro estado das coisas; e quando compreenderam tiveram um instante de despeito, arrependeram-se da abstenção, da resistência, da dissimulação imposta aos sentimentos que havia neles; mas lembravam-se um do outro, e aprovavam-se.

Um dia tiveram notícia oficial de que ia efetuar-se o casamento de Pimentel e Fernandinha. Julião recebeu-a com impassibilidade; Henriqueta chorou muito durante a noite. No dia seguinte viu-lhe Julião os olhos vermelhos.

- Você chorou?

- Não - murmurou a moça.

- Chorou, sim; porque foi?

Henriqueta calou-se.

- Porque foi, Henriqueta? - insistiu Julião assustado.

A resposta de Henriqueta foi lançar-lhe os braços ao pescoço, e pousar-lhe a fronte no ombro. Julião levantou-lhe brandamente a cabeça; olhou para ela; teve uma súbita intuição da realidade.

- Henriqueta! - disse ele -. Você... você o amava?

A moça baixou os olhos; Julião entendeu tudo; deixou-se cair numa cadeira, com o rosto nas mãos. Foi a vez de Henriqueta, que se chegou a ele, arredou-lhe as mãos, viu-lhe a expressão abatida do rosto; não lhe perguntou nada. Com as mãos cingidas, os olhos para o azul do céu, ficaram assim longo tempo a saborear a dor de seu voluntário e ocioso sacrifício. Compreenderam que nenhum deles quisera ser o primeiro a deixar a família, e daí a inércia e a dissimulação. Talvez nessa hora viam, ao longe, a figura lívida do pai; talvez lhe escutassem a palavra última: - Vivam um para o outro.

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