Conto

Um Para O Outro

1879

VI

Henriqueta deixou-se estar, nem triste nem alegre; indiferente. A vida da família tornou a ser o que era antes: patriarcal e quieta. Alguns recreios íntimos, poucos externos, e nenhum que excedesse da mediania discreta e honrada. Nessa parte, como em tudo mais, eram harmônicos os caracteres dos dois irmãos: não tinham mais nem menos exigências.

- Seu irmão parece um urso - disse um dia a Henriqueta uma moça da vizinhança, relacionada há pouco com eles.

- Por quê?

- Porque parece.

- Você está enganada - disse Henriqueta -. É talvez um pouco assim, calado, metido consigo, mas havendo intimidade...

No outro dia, Henriqueta contou a Julião o reparo da vizinha. Julião riu, sacudiu os ombros e não comentou de outro modo o reparo.

- O que é certo que você é assim mesmo.

- Assim como?

- Bicho do mato.

- Pode ser.

- Sabe você o que se faz com um bicho?

- Que é?

- Foge-se.

- Então, você quer fugir-me?

- E já.

Henriqueta disse esta última palavra, dando um passo para a porta; Julião foi ter com ela, pegou-lhe na mão, e deu-lhe um bolo. Riram-se muito: sentaram-se depois; falaram de mil várias coisas. A tia foi achá-los ali e abanou a cabeça, rindo.

- Vocês parecem dois namorados - disse ela.

- E somos, não é? - perguntou Julião.

- Apoiado - concordou Henriqueta.

Dois namorados - eis a verdadeira definição; não havia outra melhor. Tinham as saudades, os arrufos, as criancices dos namorados. A afeição que os ligava, tocante e profunda, era já um vínculo bastante; mas outros vieram reforçá-lo mais. Assim, o costume da vida comum, a índole própria, e afinal a memória do pai. "Vivam um para o outro" foram as últimas palavras do velho moribundo; eles não esqueceram essa recomendação derradeira; ouviram-na como se fora um preceito da eternidade. Viviam exatamente um para o outro; não tinham desejos diferentes, e quando os tinham, chegavam facilmente a combiná-los. Pode-se dizer que as impressões de um eram as de outro, e que um mesmo cérebro e um mesmo coração pensava e batia por ambos. Não seria isto exatamente; não era; alguma vez arrufavam-se, mas essas divergências não eram mais do que o perrexil do afeto, uma coisa que lhe dava melhor sabor.

Já vimos um desses arrufos. Poucos dias depois da conversa da vizinha, Henriqueta lembrou a esta para irem a passeio à Tijuca, um domingo de manhã. Assentaram que sim. Henriqueta disse-o depois ao irmão.

- Fizeste mal - disse este.

- Mal?

Julião conformou o dito com o gesto.

- Mas por quê?

- Ora, um passeio à Tijuca!

- Já o temos feito noutras ocasiões.

- É verdade, mas somos nós e titia. Agora, uma pessoa estranha...

- Sim, uma vizinha, que sé dá comigo. Que tem?

Julião não respondeu.

- Pois bem - disse Henriqueta; vou mandar dizer que não podemos ir. Deu um passo para a porta da sala; Julião, que a viu um pouco séria, deteve-a.

- Não - disse ele -; não mandes dizer nada; iremos.

- Por quê? Se te incomoda?

- Iremos.

Henriqueta ainda insistiu, mas Julião disse-lhe que já agora melhor era realizar o passeio. A tia, que assistiu ao debate dos dois, concluiu rindo:

- Sabe o que é, Henriqueta?

- Não.

- O Julião tem ciúmes de você; não quer que você se dê com suas amigas.

- Sim? - disse Henriqueta.

- Que ideia!

VII

Henriqueta ficou um pouco abalada com as palavras da tia. Esta saiu; ela dirigiu-se ao irmão:

- Ciúmes? - perguntou.

Julião sorriu, e levantou os ombros.

- Não vê que titia está brincando? - disse ele -. É uma maneira de explicar a minha hesitação em ir a esse passeio da Tijuca. Pois eu havia de ter ciúmes de você? Dê-se com quem quiser; você sabe que nunca lhe pus obstáculo.

- Jura? - disse Henriqueta depois de um instante de silêncio. Julião abanou a cabeça.

- Patetinha! - exclamou ele a rir.

A outra riu também, e tudo acabou do melhor modo, aliás do único, pois bem singular seria que de tal incidente saísse outra coisa, além de muito riso. Saiu mais: saiu também o passeio à Tijuca, que se efetuou no domingo próximo, indo Julião, Henriqueta, a amiga desta, uma prima e o marido da prima.

- O urso vai?

- Vai.

A amiga de Henriqueta, que assim lhe falou, à porta da casa, quando viu aparecer Julião, era uma moça de vinte anos, alegre e inquieta como uma andorinha. Chamava-se Fernanda, era filha do comendador Silva, que fora empregado antigo e conceituado, em um dos bancos da Corte, e morrera dois anos antes. O comendador deixou alguma coisa à família, que podia assim viver a coberto de necessidades; e, porque a mãe tinha economia e prudência, era difícil que tais necessidades sobreviessem nunca.

Fernandinha, que assim lhe chamavam a família e as amigas, era mui graciosa e elegante. Não tinha a beleza que impõe, nem a que eleva, nem a que faz cismar: o tipo era o da comum gentileza - um pouco de beauté du diable. Mas, além desta vantagem, que não era pouca, tinha as qualidades morais, que eram boas e sãs. Era dessas criaturas lépidas, ágeis, que gostam de rir muito, e de picar também, mas picar sem veneno nem ódio, só para ter ocasião de agitar as asas de andorinha e dar três giros no ar. De aparência galhofeira e frívola, escondia um coração bom, compassivo, e até alguma coisa mais, porque lance houve em que ela deu mostras de muita constância e resolução.

Era solteira, e dizia-se que um primo, prestes a formar-se em São Paulo, seria o marido dela. Não se sabia bem disso; mas dizia-se a coisa, e acreditava-se como todas as coisas que ninguém sabe se verdadeiramente existem; basta que cheire a mistério, e se murmure ao ouvido.

- O Juca? - disse ela um dia em que alguém lhe fez uma alusão a isso -; pode ser.

- Então é?

- Pode ser.

Imagina-se o que foi o passeio à Tijuca, com semelhante companheira, e facilmente se acreditará que a excursão se repetisse daí a um mês ou seis semanas. Fernandinha usara de todas as liberdades concedidas às pessoas estouvadas: embirrou com o ar sério de Julião e não o deixou tranquilo muito tempo; dava-lhe o braço, seguia com ele, tornava atrás, deixava-o, chamava-lhe urso. Julião sorria, e para não justificar muito o dito da moça, buscava também ser estouvado e alegre. Alegre pode ser, mas estouvado é que não: tinha uma agitação afetada e sem graça.

- Deixe-se disso - murmurou ela ao ouvido de Julião -; é melhor ficar sendo urso. Eu gosto dos ursos.

- Já viu algum? - perguntou ele.

- Sonho às vezes com um... Não é com o senhor - acrescentou a moça vivamente.

Henriqueta saboreou muito o passeio; pareceu-lhe que conciliara Julião e Fernandinha. Disse-o em casa à tia, e a ele mesmo.

- Conciliar? - replicou o irmão-. Creio que não é impossível.

- Mas difícil...

- Talvez difícil, porque a tua amiga é simplesmente doida.

- Tem uns modos acriançados - concordou a tia.

- Não acha? - disse Julião.

- Pode ser que tenha os modos - interveio Henriqueta -, mas só os modos; é muito boa moça, muito afetuosa, muito sincera e bonita, e eu gosto de ver uma cara bonita.

No vidro da janela, a que se encostara, Julião rufava com os dedos, olhando para fora, assim como que distraído ou pensativo; de maneira que Henriqueta acabou o elogio sem contestação e sem ouvintes. A tia retirara-se antes que ela acabasse de falar; e Julião não atendeu ao resto.

VIII

Um dia, em casa de Julião, estando já estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.

- Importante? - disse ele.

- Im-por-tan-tís-si-ma - confirmou a moça com o seu ar mais sonso.

- Que é?

- Descobri uma coisa que o senhor sente a meu respeito.

E dizendo isto, Fernandinha chegou os olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e calou-se um instante.

- Que sinto eu? Vá lá, diga.

- O senhor odeia-me - concluiu a moça.

Julião riu-se, e pareceu desabafado de uma opressão.

- Não é verdade? - perguntou ela.

- Pura verdade.

- Agora o que eu não sei é o motivo do ódio - continuou a moça -; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.

- Nem eu, mas deve ter-me feito alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.

- Não será de morte, mas é ódio...

Julião ouviu-a, mas sem comoção. Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:

- Por que me vens tu tentar, anjo rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!

Fernandinha, que se afastara lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas.

- Creio que me ama - dizia ela consigo -; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas estou certa... creio... afirmo... espero que me ame...

A impetuosidade de Fernandinha era só nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida, Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante: deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.

Julião manteve-se no terreno que escolhera - o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família, mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.

- Mas deveras, não gostará de mim? - dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.

Um dia, estando todos na chácara, Fernandinha parecia estouvada e alegre como nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela estremeceu, mas dominou-se logo.

- Seu primo, não é? - disse Henriqueta.

- Não sei, um noivo - repetiu a moça com um gesto nervoso e impaciente.

Julião encaminhou-se para o portão. Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:

- Uma notícia - disse ele -; daqui a quinze dias temos cá o Pimentel.

Dessa vez foi Henriqueta quem estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.

IX

A chegada do Pimentel veio complicar a situação. Complicar não é a expressão exata; veio obscurecê-la ainda mais. Havia entre aquelas quatro pessoas um drama interior, que se desenrolava todo na consciência e no coração de cada um, sem nenhuma manifestação externa, sem contraste visível nem palpável, e, a certos respeitos, sem notícia recíproca. Tal era a dificuldade.

Henriqueta sentiu uma extraordinária impressão ao saber da volta do Pimentel; mas se era principalmente de gosto, era também de medo, de enfado, de alguma coisa que ela mal chegava a entender; e ninguém lha descobriu. Ao contrário, graças à arte que possuía de se dominar, nem Fernandinha pôde perceber nenhuma mudança; aliás, Henriqueta não confiava à outra os seus mais recônditos pensamentos.

Poder-se-ia notar, isso sim, que Henriqueta se tornou durante aqueles quinze dias muito vigilante em relação à amiga; buscava as ocasiões de a ter em casa, iniciara alguns passatempos em que tomava parte o irmão; e até, quando era possível, deixava-os a sós. Fernandinha estimava esses lances sugeridos pela amiga; mas saía deles mais desanimada.

- Qual! Não me ama - pensava ela consigo -. Bem diz mamãe que não gosta de homens matemáticos.

Henriqueta, pela sua parte, quando não tinha presente a outra, tinha-lhe o nome e repetia-o muita vez, espreitando no rosto de Julião, o sinal de uma comoção qualquer; mas o rosto dele era de mármore - frio e duro -, e Henriqueta perdia o tempo, e ficava como quem, além do tempo, perdesse as esperanças.

A chegada do Pimentel, vindo complicar a situação, foi também uma diversão nos primeiros dias. Julião foi vê-lo imediatamente; levou-o no dia seguinte a jantar. Henriqueta recebeu-o com muita afabilidade e nada mais. De véspera ensaiara-se a resistir à impressão do primeiro encontro - um ensaio de imaginação que lhe não valeu de coisa nenhuma no dia seguinte. O que lhe valeu muito foi a presença do irmão; diante dele, Henriqueta venceu-se.

- Já não esperava por mim, aposto? - disse Pimentel, apertando a mão da moça, que estava um pouco fria.

Este modo jovial deu-lhe forças; ela respondeu rindo que contava e muito; e acrescentou:

- Os senhores morrem pela Corte, não é assim?

- Também não digo que não - concordou ele -; e posso afiançar-lhe que agora, se a Corte é a vida, viverei cem anos.

- Não vais mais? - perguntou Julião.

- De visita; venho estabelecer-me aqui.

Pimentel estabeleceu-se efetivamente na Corte; mobiliou uma casa no Rio Comprido, meteu-se dentro; e as relações com a família de Julião prosseguiram como dantes, e até um pouco mais frequentes, se não mais íntimas. Esta situação pareceu mortificar Henriqueta e tornar-lhe quase importunas as visitas do Pimentel. Isto mesmo lhe notou Fernandinha.

- Que tem você contra este moço? - perguntou-lhe um dia.

- Nada. Por quê?

- Parece que tem alguma coisa.

- Eu? - disse Henriqueta rindo.

- Você, é verdade; noto que fica, às vezes, um pouco aborrecida quando ele está conosco. Será porque eu estou presente?

- Ora!

Fernandinha viu-a levantar os ombros com tão natural desdém, que acreditou na sinceridade da resposta.

- Se não é isso - continuou ela -, é porque ele lhe parece aborrecido.

Henriqueta hesitou um instante.

- Não digo que não - respondeu ela enfim.

E depois de um instante.

- O que me parece também é que você...

- Acabe! - disse Fernandinha ameaçando-a graciosamente com a mão.

- Acabo: gosta dele.

- Acertou.

O tom era de chasco, mas a ideia acordou-lhe outra - uma ideia má, pueril, de comédia - uma ideia de simulação, para o fim de obter pela inveja o que não obtivera pela sugestão de um afeto melhor. Como a esperança é um alimento eterno, Henriqueta viu luzir no rosto da amiga uma certa expressão, que lhe pareceu de júbilo; viu, e perguntou a si mesma se deveras Fernandinha amava o outro; mas lembrou-lhe os dias passados e abanou a cabeça.

Isto passava-se de noite, pouco depois de oito horas. Às nove retirou-se Fernandinha. Henriqueta ficando só com o irmão, pôs-lhe as mãos nos ombros, olhou longo tempo para ele, e disse rindo.

- Urso!

Julião olhou para ela espantado.

- Urso! - repetiu a irmã, e retirou-se apressada.

X

Julião ficou muito impressionado com a palavra da irmã. Suspeitou que Fernandinha lhe houvesse feito alguma confidência, e que a repetição daquele nome fosse uma espécie de declaração indireta. Era esta justamente a intenção de Henriqueta; e as coisas levariam outro rumo, se fosse diferente o gênio de ambos.

No dia seguinte, ao encontrarem-se os dois irmãos, trocaram um olhar interrogativo, mas nenhum deles ousou responder nada. Henriqueta lançou mão de um recurso; mandou dizer a Fernandinha que fosse jantar com ela. Tinha ideia de os lançar nos braços um do outro, não literalmente, mas de um modo que chegariam, ao cabo de algum tempo, a esse resultado. Infelizmente, o Julião não apareceu em casa; jantou na cidade com Pimentel.

O Pimentel acompanhou-o depois à casa, à noite, seriam oito horas. Fernandinha estava picada, com a ausência de Julião, e recebeu-o de um modo arrufado e quase triste. Ao contrário, em relação a Pimentel, suas maneiras foram outras, outras, as palavras, outros, o gesto e o tom. Nessa mesma diferença podia Julião ler alguma coisa que lhe seria propícia; mas ele não conhecia o coração das mulheres, não praticara jamais essa espécie de luta das afeições; viu naquilo uma preterição.

O caso abalou-o; durante aquelas poucas horas dissimulou como pôde, mas a nova fase das coisas parecia feri-lo cruamente. Talvez Fernandinha lhe notou a impressão, porque recrudesceu de afabilidade com o Pimentel - fez-se o que era, graciosa, estouvada, alegre; - e se a nota intencional era um pouco mais forte do que seria a natural, não deu por isso o irmão de Henriqueta; ele próprio padecia muito.

Mas Henriqueta não padecia menos. Certo, ela via no rosto de Pimentel, ao lado de Fernandinha, alguma coisa parecida com a benevolência superior que se tem com as crianças - um certo ar que excluía qualquer interesse de natureza mais íntima; além disso, via os olhos do provinciano dirigirem-se muita vez para ela, com a expressão que tinham alguns meses antes, e ela então fugia com os seus. Não obstante, padecia; tinha o ciúme exclusivo que treme até dos mais pueris afagos.

- Urso! - pensava ela olhando para o irmão.

E, ao vê-lo tão severo, tão grave, ao contemplar nele o chefe amante e amado da família, sempre tão desvelado e bom, lembrava-lhe a recomendação do pai: - Vivam um para o outro; - e ia ter com ele, e como que o consolava e se consolava daquele voluntário abandono.

Uma palavra bastava para dar à situação um desenlace feliz e breve; ambos, porém, se obstinavam no silêncio; nenhum deles adivinhara o outro.

Essa primeira noite foi amarga para os dois; as seguintes não o foram menos; logo depois o foram de todo. No fim de oito dias, Henriqueta tentou sondar ainda uma vez o irmão; via-o triste, e suspeitou a verdade; este, que não suspeitara nada, furtou-se à curiosidade da irmã.

Henriqueta abanou a cabeça, e depois de um instante de reflexão, disse resolutamente:

- Você gosta de Fernandinha!

Julião fez uma careta de desdém; foi a sua única resposta; Henriqueta contentou-se com ela. Mas se se contentou com a resposta, não se contentou com a solução; era-lhe preciso, à fina força, levá-los ao amor e ao casamento.

Passaram mais oito dias. Uma noite, indo Henriqueta à casa de Fernandinha, achou lá o Pimentel, que já ali tinha estado uma vez ou duas. Achou-os bem; pareceu-lhe sentir que era demais.

- Demais? - pensou ela com um gesto de orgulho.

Era demais. Pimentel e Fernandinha tinham aceitado, por despeito, uma situação dúbia e dissimulada; mas o coração, que nem sempre é bom calculista, trocara as intenções, e eles começaram a sentir-se bem ao pé um do outro, e a descobrir que eram bonitos, capazes de amar, e capazes de ser amados. Daí ao amor não distava um oceano, talvez um rio estreito; e esse rio eles o transpuseram, numa noite de luar, ao pé da janela - tal qual numa balada romântica.

Henriqueta e Julião não gastaram muito tempo a compreender o verdadeiro estado das coisas; e quando compreenderam tiveram um instante de despeito, arrependeram-se da abstenção, da resistência, da dissimulação imposta aos sentimentos que havia neles; mas lembravam-se um do outro, e aprovavam-se.

Um dia tiveram notícia oficial de que ia efetuar-se o casamento de Pimentel e Fernandinha. Julião recebeu-a com impassibilidade; Henriqueta chorou muito durante a noite. No dia seguinte viu-lhe Julião os olhos vermelhos.

- Você chorou?

- Não - murmurou a moça.

- Chorou, sim; porque foi?

Henriqueta calou-se.

- Porque foi, Henriqueta? - insistiu Julião assustado.

A resposta de Henriqueta foi lançar-lhe os braços ao pescoço, e pousar-lhe a fronte no ombro. Julião levantou-lhe brandamente a cabeça; olhou para ela; teve uma súbita intuição da realidade.

- Henriqueta! - disse ele -. Você... você o amava?

A moça baixou os olhos; Julião entendeu tudo; deixou-se cair numa cadeira, com o rosto nas mãos. Foi a vez de Henriqueta, que se chegou a ele, arredou-lhe as mãos, viu-lhe a expressão abatida do rosto; não lhe perguntou nada. Com as mãos cingidas, os olhos para o azul do céu, ficaram assim longo tempo a saborear a dor de seu voluntário e ocioso sacrifício. Compreenderam que nenhum deles quisera ser o primeiro a deixar a família, e daí a inércia e a dissimulação. Talvez nessa hora viam, ao longe, a figura lívida do pai; talvez lhe escutassem a palavra última: - Vivam um para o outro.

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