Conto

Um Para O Outro

1879
Este conto foi originalmente publicado em A Estação, em julho, agosto, setembro e outubro de 1879, assinado por Machado de Assis. Os exemplares digitalizados do periódico na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro encontram-se mutilados, neles faltando, precisamente, a seção de Literatura. Embora José Galante de Sousa registre o conto na sua Bibliografia de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955. p. 514), a peça não foi incluída em nenhum dos volumes da editora Jackson (década de 1930), nem tampouco nos volumes de contos avulsos reunidos e publicados por Raimundo Magalhães Jr. na década de 1950. O texto-fonte aqui utilizado é o da edição Nova Aguilar, de 2008.

IV

- Sabes quem chegou hoje? - perguntou Julião a Henriqueta, um dia ao jantar.

- Quem?

- O Dr. Pimentel.

Henriqueta teve uma impressão leve, e não duradoura; o ex-promotor estava esquecido. Contudo, não pôde reprimir o sentimento da curiosidade. Julião, que nada percebera até ali, continuou a falar do bacharel, com um entusiasmo, facilmente comunicativo. Henriqueta ouvia-o com interesse; perguntou-lhe se não viera também o ex-inspetor da Alfândega, e, dizendo-lhe ele que não, hesitou se devia indagar da demora do Pimentel; mas cedeu, e perguntou:

- O Pimentel demora-se ou volta já para o Norte?

- Não sei; é provável que volte.

- Estiveste com ele?

- Não, mas hei de ir lá amanhã.

Tinham acabado de jantar; Henriqueta sentiu que estava muito calor, mas em vez de ir para o portão da chácara, como lhe propusera Julião, foi tocar piano; tocou meia valsa, depois meia sinfonia, enfim, meio romance; não acabou nada.

- Que tens tu hoje? - disse-lhe a tia.

- Nada; aborrece-me o piano.

- Queres ir ao teatro? - perguntou Julião.

Henriqueta ia a dizer sim, mas recuou.

- É tarde; iremos noutro dia.

- Um passeio?

- Estou cansada.

- Não é porque tocasses com os pés - disse rindo o irmão.

Ouvindo esta palavra, Henriqueta ficou amuada, como se a frase em si, e, quando não a frase, como se a intenção pudesse ser-lhe ofensiva. Ficou amuada, sem que lho percebesse a família; e porque a família não lho percebeu, recolheu-se à alcova dentro de poucos minutos. Quando Julião não a viu, e soube que se recolhera, não pôde dissimular o espanto.

- Que tem Henriqueta? - disse à tia.

- Não sei; depois do jantar ficou assim. Talvez esteja doente; vou ver o que é.

Dona Lúcia (era este o seu nome), foi achar a sobrinha enterrada numa poltrona, com um livro nas mãos, a ler, ou fingir que lia; foi o que a tia pensou; mas a verdade é que Henriqueta iludia-se a si mesma, supondo que lia alguma coisa; tinha os olhos na página, e até corriam de palavra em palavra, e de linha em linha. Corriam somente; não apreendiam o sentido do escrito, que lá ficava, mudo, e quedo, e impenetrado.

Não tinha D. Lúcia a sagacidade que fareja as comoções morais; para ela tudo era dores, ânsias, calafrios, ou quaisquer outros fenômenos de comoção física. Conseguintemente, não mentiu, não dissimulou nada quando perguntou à sobrinha se lhe doía a cabeça.

- Bastante - disse esta.

- Mas então por que lês?

- Para distrair-me.

- Que ideia! Isso é pior; dá cá o livro.

Tirou-lhe o livro das mãos; depois propôs-lhe fazer alguma mezinha, ao que Henriqueta se recusou, dizendo que era melhor não fazer nada; havia de passar por si.

-Tens febre?

- Ora, febre! - disse Henriqueta rindo.

E rindo estendeu o pulso à tia, que lho tomou com o ar mais doutoral que pode ter uma senhora; e foi rindo também que a tia lhe declarou:

- Tens febre para amanhã. Anda cá fora; aqui está muito abafado. O ar livre há de fazer-te bem.

Não resistiu a moça; nem sequer cedeu de má vontade. Ao contrário, era aquilo mesmo o que queria, porque, tendo obedecido a um impulso de mal cabido ressentimento, doía-lhe agora o que fizera, e ardia por ler nos olhos do irmão ou a ignorância ou desculpa do que se passara. Julião, que não percebera nada, acolheu a irmã com a maior naturalidade do mundo - um pouco ansioso, é certo, por saber se estava doente, mas quando ela lhe disse que era uma simples dor de cabeça, já agora quase extinta, abraçou-a radiante, e a noite acabou numa palestra de família.

Vulgar é o episódio, simples é o sentimento; nada aí há que mereça uma página de novela, nem que se imprima fortemente no espírito; mas simples, mas vulgar, a vida dessas poucas horas entre o jantar e o sono deu a Henriqueta uma série de reflexões graves. A ideia de se ter mostrado ofendida com o irmão roeu-lhe cruelmente a consciência. Não esqueçamos que Henriqueta possuía a docilidade entre as suas mais excelentes virtudes. Por que motivo aquele arremesso e aquela injustiça, onde não houvera ofensa nenhuma? A esta pergunta, que a si mesma fazia, Henriqueta não achou que responder - ou antes não quis achá-lo, porque uma vaga recordação lhe alvejou o pensamento, e ela repeliu-a irritada e envergonhada.

Já então era tarde; toda a família dormia. Sentada ao pé de uma janela aberta, com os olhos ao longe, no eterno impenetrável, Henriqueta relembrava, não só as últimas horas, como os últimos dias, como as últimas semanas; fazia uma espécie de exame de consciência, sem arguições nem desculpas, mas friamente, como quem julga a outrem. Talvez a imagem do pai lhe aparecesse nessa ocasião; pode ser também que lhe ouvisse a voz; mas se lhe respondeu, não falou com os lábios, mas com o coração, e foram de paz as palavras, porque de paz lhe foi o sono.

- Passou a dor de cabeça? - perguntou-lhe a tia no dia seguinte de manhã, quando Henriqueta lhe foi falar.

- Para sempre - foi a sua resposta.

V

"Para sempre?" dirá consigo a leitora, que decerto entendeu a dor de cabeça de Henriqueta, e provavelmente duvidara da cura. Velhas dores, eternas dores, que tu sentiste, ou sentes, ou virás a sentir um dia - o que já mostravam aqueles dois versinhos que Voltaire aplicou ao amor. Quem quer que sejas - dizia - teu senhor é este. II l'est, le fut ou le doit être. É o teu caso, morena ou loura que me lês, foi o caso da tua avó, era o da nossa Henriqueta; e é por isso que a leitora tem muita razão de duvidar que tão cedo lhe morresse a dor - ou ao menos, que morresse para sempre.

Não obstante, foi o que ela disse, e mostrou galhardamente em todo esse dia e nos outros. Voltara a alegria habitual - a princípio nímio ruidosa, como se a assoprasse um pouco de oculto propósito, mas logo depois natural e sincera. Uma nuvem apenas - pesada, mas nuvem, e já agora extinta.

Um dia, seis ou sete depois daquele incidente, foi convidado o Pimentel a jantar em casa de Julião; lá foi, lá o receberam com as mais sensíveis mostras de afeto, e não houve outro caminho de intimidade. A intimidade que vem só do costume é frouxa e facilmente suspeitosa; a que se funda na afeição recíproca é menos precária. Era o caso dos dois rapazes: não tardou muito que se mostrassem quais eram e quais desejariam que fossem.

Entretanto, o Pimentel devia voltar para o Norte; transferiu muitas vezes a viagem, mas afinal era preciso realizá-la, e não teve outro remédio se não ir - "sabe Deus com que saudade!" - disse ele a Julião.

- Por que não fica mais tempo?

- Não posso; há razões de família; em todo o caso, voltarei.

- Quando?

- Depois de alguns meses.

- Vinte ou trinta, não?

- Oh! Não! Três ou quatro.

- Promete?

- Prometo.

Henriqueta recebeu a notícia de outro modo - uma grande tranquilidade, quase indiferença; e realmente seria bem curioso quem pretendesse saber as causas do ar sombrio com que Pimentel viu a impressão que deixava à moça o motivo de sua partida. O mais que se pode saber é que não disse nada: buliu com a corrente do relógio, concertou a gravata, depois olhou para a ponta da botina; depois quis dizer alguma coisa, mas provavelmente esquecera as palavras, e achou melhor sair, e foi o que fez daí a dois minutos.

Ora, é bem difícil que um homem se contente com a indiferença alheia em coisas que parecem importar-lhe grandemente; por esse ou por outro motivo, o Pimentel tornou à conversação, na véspera da partida, acrescentando que ia acabrunhado.

- Por quê? - disse Henriqueta.

- A Corte sempre deixa saudades - ponderou ele.

- Isso é verdade; mas o senhor voltará daqui a algum tempo; creio que já me falou em quatro meses.

- Quatro ou três.

- Quase que era melhor não ir.

- Se pudesse ficar, ficava - disse vivamente o Pimentel -; mas há razões fortes...

- Quatro meses passam-se depressa.

- Conforme - disse o Pimentel olhando para ela...

Henriqueta não respondeu nada, nem com a boca, nem com os olhos; falou do último espetáculo, depois do enjoo do mar, do calor, e de Petrópolis. O Pimentel acompanhou-a por esse caminho; quis depois tornar ao primeiro, que era para ele a estrada real; ela porém fugiu-lhe. Não insistiu o Pimentel; tratou de coisas estranhas, e procurou até coisas alegres; mas só as achou de uma alegria violenta, como o cômico dos atores sem graça. De noite, entrando no hotel, tirou essa máscara do rosto, e a sós consigo recapitulou as últimas horas, os últimos dias e as últimas semanas. Digo que recapitulou, sem dizer primeiro que se despiu, porque assim mesmo como estava, assim se atirou a um sofá, com o chapéu na cabeça, e os olhos em nenhuma parte, ou longe dali. A expressão do rosto era de abatimento, de despeito, de ânsia; coisa que ainda mais se acentuou, quando ele, lançando fora o chapéu, disse em voz alta e rude:

- Perco o meu tempo! Não me ama.

Julião foi acompanhá-lo a bordo no dia seguinte; pediu-lhe muito que voltasse e o mais cedo possível.

- Lembre-se que já me prometeu.

- Já.

- E cumpre?

- Cumpro.

- Palavra?

- Para quê, se lhe digo que sim? - balbuciou o Pimentel.

Despediram-se; o vapor seguiu; Julião veio para terra. Quando o vapor perdeu a vista da cidade, ninguém ouviu, mas é certo que o Pimentel olhando para a água que batia no costado do navio, repetia lá no fundo do pensamento:

- Nem quatro meses, nem quatro anos.

VI

Henriqueta deixou-se estar, nem triste nem alegre; indiferente. A vida da família tornou a ser o que era antes: patriarcal e quieta. Alguns recreios íntimos, poucos externos, e nenhum que excedesse da mediania discreta e honrada. Nessa parte, como em tudo mais, eram harmônicos os caracteres dos dois irmãos: não tinham mais nem menos exigências.

- Seu irmão parece um urso - disse um dia a Henriqueta uma moça da vizinhança, relacionada há pouco com eles.

- Por quê?

- Porque parece.

- Você está enganada - disse Henriqueta -. É talvez um pouco assim, calado, metido consigo, mas havendo intimidade...

No outro dia, Henriqueta contou a Julião o reparo da vizinha. Julião riu, sacudiu os ombros e não comentou de outro modo o reparo.

- O que é certo que você é assim mesmo.

- Assim como?

- Bicho do mato.

- Pode ser.

- Sabe você o que se faz com um bicho?

- Que é?

- Foge-se.

- Então, você quer fugir-me?

- E já.

Henriqueta disse esta última palavra, dando um passo para a porta; Julião foi ter com ela, pegou-lhe na mão, e deu-lhe um bolo. Riram-se muito: sentaram-se depois; falaram de mil várias coisas. A tia foi achá-los ali e abanou a cabeça, rindo.

- Vocês parecem dois namorados - disse ela.

- E somos, não é? - perguntou Julião.

- Apoiado - concordou Henriqueta.

Dois namorados - eis a verdadeira definição; não havia outra melhor. Tinham as saudades, os arrufos, as criancices dos namorados. A afeição que os ligava, tocante e profunda, era já um vínculo bastante; mas outros vieram reforçá-lo mais. Assim, o costume da vida comum, a índole própria, e afinal a memória do pai. "Vivam um para o outro" foram as últimas palavras do velho moribundo; eles não esqueceram essa recomendação derradeira; ouviram-na como se fora um preceito da eternidade. Viviam exatamente um para o outro; não tinham desejos diferentes, e quando os tinham, chegavam facilmente a combiná-los. Pode-se dizer que as impressões de um eram as de outro, e que um mesmo cérebro e um mesmo coração pensava e batia por ambos. Não seria isto exatamente; não era; alguma vez arrufavam-se, mas essas divergências não eram mais do que o perrexil do afeto, uma coisa que lhe dava melhor sabor.

Já vimos um desses arrufos. Poucos dias depois da conversa da vizinha, Henriqueta lembrou a esta para irem a passeio à Tijuca, um domingo de manhã. Assentaram que sim. Henriqueta disse-o depois ao irmão.

- Fizeste mal - disse este.

- Mal?

Julião conformou o dito com o gesto.

- Mas por quê?

- Ora, um passeio à Tijuca!

- Já o temos feito noutras ocasiões.

- É verdade, mas somos nós e titia. Agora, uma pessoa estranha...

- Sim, uma vizinha, que sé dá comigo. Que tem?

Julião não respondeu.

- Pois bem - disse Henriqueta; vou mandar dizer que não podemos ir. Deu um passo para a porta da sala; Julião, que a viu um pouco séria, deteve-a.

- Não - disse ele -; não mandes dizer nada; iremos.

- Por quê? Se te incomoda?

- Iremos.

Henriqueta ainda insistiu, mas Julião disse-lhe que já agora melhor era realizar o passeio. A tia, que assistiu ao debate dos dois, concluiu rindo:

- Sabe o que é, Henriqueta?

- Não.

- O Julião tem ciúmes de você; não quer que você se dê com suas amigas.

- Sim? - disse Henriqueta.

- Que ideia!

VII

Henriqueta ficou um pouco abalada com as palavras da tia. Esta saiu; ela dirigiu-se ao irmão:

- Ciúmes? - perguntou.

Julião sorriu, e levantou os ombros.

- Não vê que titia está brincando? - disse ele -. É uma maneira de explicar a minha hesitação em ir a esse passeio da Tijuca. Pois eu havia de ter ciúmes de você? Dê-se com quem quiser; você sabe que nunca lhe pus obstáculo.

- Jura? - disse Henriqueta depois de um instante de silêncio. Julião abanou a cabeça.

- Patetinha! - exclamou ele a rir.

A outra riu também, e tudo acabou do melhor modo, aliás do único, pois bem singular seria que de tal incidente saísse outra coisa, além de muito riso. Saiu mais: saiu também o passeio à Tijuca, que se efetuou no domingo próximo, indo Julião, Henriqueta, a amiga desta, uma prima e o marido da prima.

- O urso vai?

- Vai.

A amiga de Henriqueta, que assim lhe falou, à porta da casa, quando viu aparecer Julião, era uma moça de vinte anos, alegre e inquieta como uma andorinha. Chamava-se Fernanda, era filha do comendador Silva, que fora empregado antigo e conceituado, em um dos bancos da Corte, e morrera dois anos antes. O comendador deixou alguma coisa à família, que podia assim viver a coberto de necessidades; e, porque a mãe tinha economia e prudência, era difícil que tais necessidades sobreviessem nunca.

Fernandinha, que assim lhe chamavam a família e as amigas, era mui graciosa e elegante. Não tinha a beleza que impõe, nem a que eleva, nem a que faz cismar: o tipo era o da comum gentileza - um pouco de beauté du diable. Mas, além desta vantagem, que não era pouca, tinha as qualidades morais, que eram boas e sãs. Era dessas criaturas lépidas, ágeis, que gostam de rir muito, e de picar também, mas picar sem veneno nem ódio, só para ter ocasião de agitar as asas de andorinha e dar três giros no ar. De aparência galhofeira e frívola, escondia um coração bom, compassivo, e até alguma coisa mais, porque lance houve em que ela deu mostras de muita constância e resolução.

Era solteira, e dizia-se que um primo, prestes a formar-se em São Paulo, seria o marido dela. Não se sabia bem disso; mas dizia-se a coisa, e acreditava-se como todas as coisas que ninguém sabe se verdadeiramente existem; basta que cheire a mistério, e se murmure ao ouvido.

- O Juca? - disse ela um dia em que alguém lhe fez uma alusão a isso -; pode ser.

- Então é?

- Pode ser.

Imagina-se o que foi o passeio à Tijuca, com semelhante companheira, e facilmente se acreditará que a excursão se repetisse daí a um mês ou seis semanas. Fernandinha usara de todas as liberdades concedidas às pessoas estouvadas: embirrou com o ar sério de Julião e não o deixou tranquilo muito tempo; dava-lhe o braço, seguia com ele, tornava atrás, deixava-o, chamava-lhe urso. Julião sorria, e para não justificar muito o dito da moça, buscava também ser estouvado e alegre. Alegre pode ser, mas estouvado é que não: tinha uma agitação afetada e sem graça.

- Deixe-se disso - murmurou ela ao ouvido de Julião -; é melhor ficar sendo urso. Eu gosto dos ursos.

- Já viu algum? - perguntou ele.

- Sonho às vezes com um... Não é com o senhor - acrescentou a moça vivamente.

Henriqueta saboreou muito o passeio; pareceu-lhe que conciliara Julião e Fernandinha. Disse-o em casa à tia, e a ele mesmo.

- Conciliar? - replicou o irmão-. Creio que não é impossível.

- Mas difícil...

- Talvez difícil, porque a tua amiga é simplesmente doida.

- Tem uns modos acriançados - concordou a tia.

- Não acha? - disse Julião.

- Pode ser que tenha os modos - interveio Henriqueta -, mas só os modos; é muito boa moça, muito afetuosa, muito sincera e bonita, e eu gosto de ver uma cara bonita.

No vidro da janela, a que se encostara, Julião rufava com os dedos, olhando para fora, assim como que distraído ou pensativo; de maneira que Henriqueta acabou o elogio sem contestação e sem ouvintes. A tia retirara-se antes que ela acabasse de falar; e Julião não atendeu ao resto.

VIII

Um dia, em casa de Julião, estando já estreitadas as relações entre as duas famílias, Fernandinha declarou ao irmão de Henriqueta que descobrira uma coisa importante e ia revelar-lhe.

- Importante? - disse ele.

- Im-por-tan-tís-si-ma - confirmou a moça com o seu ar mais sonso.

- Que é?

- Descobri uma coisa que o senhor sente a meu respeito.

E dizendo isto, Fernandinha chegou os olhos ao rosto de Julião, que empalideceu. Ela não empalideceu, corou muito, e calou-se um instante.

- Que sinto eu? Vá lá, diga.

- O senhor odeia-me - concluiu a moça.

Julião riu-se, e pareceu desabafado de uma opressão.

- Não é verdade? - perguntou ela.

- Pura verdade.

- Agora o que eu não sei é o motivo do ódio - continuou a moça -; ao menos não me lembra que lhe tivesse feito nada.

- Nem eu, mas deve ter-me feito alguma coisa, visto que lhe tenho ódio, e ódio de morte.

- Não será de morte, mas é ódio...

Julião ouviu-a, mas sem comoção. Fernandinha falou ainda largo tempo, mas o assunto tinha o defeito de ser monótono. Quando se separaram, Julião acompanhou-a com os olhos, calado e pensativo; ao cabo de alguns minutos, murmurou:

- Por que me vens tu tentar, anjo rebelde? Deixa-me só comigo, ou espera-me; guarda contigo essa chama que te sinto luzir nos olhos, e talvez seja amor... talvez!

Fernandinha, que se afastara lentamente, ia a revolver as palavras escutadas e a cavar o pensamento delas.

- Creio que me ama - dizia ela consigo -; pode ser que não, mas eu creio que me ama... Aquela palidez, aquele tremor da voz... Ama-me; diga o que quiser, mas estou certa... creio... afirmo... espero que me ame...

A impetuosidade de Fernandinha era só nas coisas de pouca monta; tratando-se da maior questão da sua vida, Fernandinha fez-se acanhada e medrosa. Não mudou de todo, mas mudou bastante: deixou de ser a moça frívola de costume, para se tornar às vezes séria e meditativa. Notava-o Henriqueta, e logo que o notava, dizia-o; mas então ela voltava logo a ser o que era, e nenhuma suspeita penetrou no espírito da outra.

Julião manteve-se no terreno que escolhera - o de uma impassibilidade branda e amável. Tratava a moça com as atenções do princípio, sorria com ela, e acompanhava-a nos recreios da família, mas nada mais. Às vezes Fernandinha deixava pousar nele uns olhos maviosos, que o rapaz não via, ou não entendia, e então a moça os recuava, e com eles um suspiro, que chegava à flor dos lábios, e voltava depois ao coração.

- Mas deveras, não gostará de mim? - dizia ela consigo, quando mais visível lhe parecia a indiferença de Julião.

Um dia, estando todos na chácara, Fernandinha parecia estouvada e alegre como nos seus melhores tempos. Julião disse-lhe, e ela respondeu que a razão era simples: esperava um namorado, um noivo. Ela estremeceu, mas dominou-se logo.

- Seu primo, não é? - disse Henriqueta.

- Não sei, um noivo - repetiu a moça com um gesto nervoso e impaciente.

Julião encaminhou-se para o portão. Nesse momento chegava o carteiro com uma carta do Norte. Julião abriu-a e leu:

- Uma notícia - disse ele -; daqui a quinze dias temos cá o Pimentel.

Dessa vez foi Henriqueta quem estremeceu, mas ninguém a viu, e o efeito passou.

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A-