Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em agosto e em setembro de 1873, assinado por Job. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
Capítulo primeiro
Após uma noite de insônia, saiu Clemente Soares da casa em que morava, à rua da Misericórdia, e entrou a caminhar à toa pelas ruas da cidade.
Eram quatro horas da manhã.
Os homens do gás começavam a apagar os lampiões, e as ruas, ainda não bem alumiadas pela aurora, que apontava apenas, apresentavam um aspecto lúgubre. Clemente caminhava lento e pensativo. De quando em quando abalroava nele uma quitandeira que se dirigia para as praças do mercado com o cesto ou o tabuleiro à cabeça, acompanhada de um preto que levava outro cesto e a barraca. Clemente parecia despertar dos seus devaneios, mas recaía logo neles até nova interrupção.
À proporção que o céu clareava, abriam-se as portas dos botequins, para fazer concorrência aos vendedores de café ambulantes que desde a meia-noite percorriam a cidade em todos os sentidos. Ao mesmo tempo começavam a passar os trabalhadores dos arsenais atroando as ruas com os seus grossos tamancos. Não poucos entravam nos botequins e aqueciam o estômago.
Os entregadores dos jornais concluíam a sua tarefa com aquela precisão de memória que sempre invejei a esses funcionários da imprensa. As tavernas abriam as suas portas e ornavam os portais com as amostras do uso. Daí a pouco era completamente dia; já a cidade começava a levantar-se toda; numerosas pessoas transitavam a rua; as lojas de todo gênero abriam as suas portas... Era dia.
Clemente Soares não deu fé de toda esta gradual mudança; continuou a andar à toa, até que, cansado, foi ter à praia de Santa Luzia e aí ficou a olhar para o mar.
Em qualquer outra circunstância é muito provável que Clemente Soares admirasse o quadro que se lhe apresentava ante os olhos. Mas naquela ocasião o pobre rapaz olhava para dentro. Tudo à roda dele lhe era indiferente; um grande pensamento o preocupava.
Que pensamento?
Não era novo; era um pensamento quase tão velho como o mundo, um pensamento que só há de acabar quando acabarem os séculos.
Não era bonito; era um pensamento feio, repelente, terrível, capaz de trazer à mais bela alma a mais completa demência, e fazer de um gênio um idiota.
Não era obscuro; era um pensamento claro, evidente, incontestável, diáfano, um pensamento simples, que dispensava toda e qualquer demonstração.
Clemente Soares não tinha dinheiro.
Só o muito amor que tenho aos leitores me dispensa de fazer aqui a longa dissertação que este assunto está pedindo. Demais, para alguns deles seria inútil a dissertação. A maior parte dos homens há de ter compreendido, ao menos uma vez na vida, o que é não ter dinheiro. A moça que vê o namorado distraído, o amigo que vê o amigo passar por ele sem lhe tirar o chapéu, antes de fazer qualquer juízo temerário, deve perguntar consigo: estará ele sem dinheiro?
Clemente Soares, pois, estava nessa precária situação. Não tinha dinheiro, nem esperanças de o ter, posto fosse um rapaz engenhoso e cheio de recursos.
Não era contudo tão grande a falta que não pudesse almoçar. Introduzindo na algibeira do colete o indicador e o polegar, como quem tira uma pitada, arrancou de lá dous cartões da barca Ferry; e era quanto bastava para um almoço no Carceller.
Desceu pela rua da Misericórdia, entrou em casa para pesquisar as gavetas a ver se encontrava um charuto esquecido; teve a fortuna de encontrar dous cigarros, e foi almoçar. Duas horas depois estava em casa almoçado e fumado. Tirou de uma velha estante um volume de Balzac e dispôs-se a esperar o jantar.
E de onde viria o jantar?
O jantar não preocupava muito a Clemente Soares. Costumava obter esse elemento da vida na casa comercial de um amigo, aonde não ia almoçar, a fim de não parecer que não tinha com quê. Não se diria o mesmo do jantar, porque o dito amigo lhe dissera uma vez que lhe faria grande obséquio em ir lá jantar todos os dias. Do almoço não disse o mesmo; por isso Clemente Soares não se atrevia a lá ir.
Clemente era orgulhoso.
E não são incompatíveis a necessidade e o orgulho! O desditoso mortal a quem a natureza e a fortuna deram estes dous flagelos, pode dizer que é a mais triste de todas as criaturas.
II
A casa de Clemente Soares não tinha o aspecto miserável que a algibeira do rapaz fazia crer. Via-se que era casa onde já houvera alguma cousa, embora pouca. Era casa de rapaz solteiro, adornada com certo gosto, no tempo em que o dono gozava de sofrível ordenado.
Alguma cousa lhe faltava, mas não era do necessário; senão do supérfluo. Clemente vendera, apenas, alguns livros, dous ou três vasos, uma estatueta, uma charuteira e poucas cousas mais, que não faziam grande falta. E quem o visse ali, estendido no sofá, metido em um chambre, lendo um volume encadernado em Paris, diria que o bom rapaz era um estudante rico, que havia falhado a aula e enchia com alguma distração as horas, até receber uma carta da namorada.
Namorada! Havia efetivamente na vida de Clemente Soares uma namorada, mas já pertencia aos exercícios findos. Era uma menina galante como uma das Graças, mas que na opinião de Clemente ficou tão feia como uma das Fúrias, desde que soube que o pai apenas teria umas cinco apólices.
Clemente Soares não tinha coração tão mesquinho que se deixasse vencer por cinco apólices. Demais, não a namorava muito disposto ao casamento; foi uma espécie de aposta com outros rapazes. Trocou algumas cartinhas com a moça e precipitou o desenlace da comédia fazendo uma retirada airosa.
Carlotinha não era felizmente moça de grandes enlevos. Deu dous murros no ar quando adquiriu certeza da retirada do rapaz, e travou namoro com outro que lhe andava a rondar a porta.
Fora esse o único amor, ou cousa que o valha, do nosso Clemente, que daí em diante não procurou outras aventuras.
E como o faria agora, que se achava desempregado, sem vintém, cheio de ambições, vazio de meios?
Nem pensava nisso.
Era perto das três horas da tarde, quando recebeu um bilhetinho do amigo em cuja casa costumava jantar.
Dizia assim:
Clemente
Não deixes de vir hoje. Temos um negócio.
Teu
Castrioto.
A recomendação era inútil; Clemente não deixaria de lá ir, mas a segunda parte do bilhete era rutilante de promessas.
Daí a pouco estava em casa de Castrioto, honrado negociante de fazendas, que o recebeu com duas ou três graças de boa intimidade e o levou para o fundo da loja onde lhe propôs um emprego.
- O Medeiros - disse ele -, está sem guarda-livros. Quer você ir para lá?
Isso era um raio de sol que alumiava a alma do mísero Clemente; todavia, como na gratidão entra sempre um tanto de diplomacia, recebeu Clemente a notícia e a oferta com ar de calculada indiferença.
- Não duvido ir - disse ele -, mas...
- Mas o quê?
- Você bem sabe que eu já estive em casas que...
- Já sei - interrompeu Castrioto -, fala do ordenado.
- Justo.
- Três contos e seiscentos, serve?
Clemente estremeceu dentro de si; mas achou conveniente fazer uma pergunta:
- Com comida?
- E casa se quiser - respondeu Castrioto.
- Serve. Obrigado.
E dizendo isto, apertou Clemente Soares as mãos do amigo, desta vez com todas as mostras de entusiasmo, o que alegrou muito a Castrioto, que o estimava deveras.
- Eu já tinha alguma cousa em vista - disse Clemente depois de alguns instantes -; mas era precário e inferior ao que você me oferece.
- Pois vá lá amanhã - disse Castrioto -; ou, melhor, iremos logo depois do jantar.
Assim se fez.
Logo depois do jantar conduziu Castrioto o amigo à casa do Medeiros, que recebeu com extremo prazer o novo guarda-livros. E no dia seguinte entrou Clemente Soares no exercício das suas novas funções.
III
Em dous simples capítulos vimos um rapaz desarranjado e arranjado, pescando um cartão de barca no bolso do colete e ganhando três contos e seiscentos mil-réis por ano.
Não se pode andar mais depressa.
Mas por que fui eu tão longe, quando podia apresentar Clemente Soares já empregado, poupando à piedade dos leitores o espetáculo de um rapaz sem almoço certo?
Fi-lo para que o leitor, depois de presenciar as finezas do negociante Castrioto, se admirasse, como lhe vai acontecer, de que Clemente Soares ao cabo de dous meses esquecesse de tirar o chapéu ao ex-anfitrião.
Por quê?
Pela razão simples de que o excelente Castrioto teve a infelicidade de falir, e alguns amigos começaram a desconfiar de que falira fraudulentamente.
Castrioto ficou assaz magoado quando lhe aconteceu esta aventura; mas era homem filósofo e tinha quarenta anos feitos, idade em que só um homem de singular simplicidade pode ter ilusões a respeito da gratidão humana.
Clemente Soares tinha o seu emprego e o desempenhava com extrema solicitude. Alcançou não ter hora certa para entrar no escritório e, com esta, outras mais facilidades que lhe deu o dono da casa.
Já nesse tempo não havia aquele rigor antigo, que não permitia aos empregados de uma casa comercial certos usos da vida gamenha. Usava pois o nosso Clemente Soares tudo quanto a moda prescrevia. No fim de um ano, Medeiros elevou-lhe o ordenado a quatro contos e seiscentos mil-réis, com a esperança de interesse na casa.
Clemente Soares ganhou depressa a estima do dono da casa. Era solícito, zeloso, e sabia levar os homens. Dotado de inteligência aguda, e instruído, resolvia todas as dúvidas que estavam acima do entendimento de Medeiros.
Não tardou, pois, que fosse considerado pessoa necessária no estabelecimento, verdadeiro alvo de seus esforços.
Ao mesmo tempo tratou de se descartar de certos conhecimentos do tempo em que tinha o almoço casual e a ceia incerta. Clemente Soares professava o princípio de que a um pobre não se tira chapéu em nenhuma hipótese, salvo se se encontram num beco deserto, e ainda assim sem grandes mostras de intimidade, a fim de não dar confiança.
Desejoso de subir, não faltou Clemente Soares ao primeiro convite que lhe fez Medeiros para um jantar que dava em casa a um diplomata estrangeiro. O diplomata simpatizou com o guarda-livros, que daí a oito dias lhe fez uma visita.
Com estas e outras traças foi o nosso Clemente penetrando na sociedade que convinha ao seu gosto, e não tardou que lhe chovessem em casa os convites de bailes e jantares. Cumpre dizer que já nesse tempo o guarda-livros tinha um interesse na casa de Medeiros, que o apresentava orgulhosamente como seu sócio.
Nesta situação só lhe faltava uma noiva elegante e rica.
Não lhe faltava onde escolher; mas não era isso tão fácil como o resto.
As noivas ou eram ricas demais ou pobres demais para ele. Mas Clemente confiava na sua estrela, e esperava.
Saber esperar é tudo.
Uma tarde, passando pela rua da Quitanda, viu apear-se de um carro um velho e pouco depois uma linda rapariga, que ele conheceu imediatamente.
Era Carlotinha.
A moça trajava como quem possuía, e o velho tinha um ar que cheirava a riqueza a cem léguas de distância.
Era marido? Padrinho? Tio? Protetor?
Clemente Soares não pôde resolver este ponto. O que lhe pareceu foi que o velho era homem de serra-acima.
Tudo isto pensou ele enquanto tinha os olhos cravados em Carlotinha, que estava esplêndida de beleza.
Entrou o par numa loja conhecida de Clemente, que também lá entrou para ver se a moça o reconhceia.
Carlota reconheceu o antigo namorado, mas nenhuma fibra do rosto se lhe contraiu; comprou o que ia buscar, e entrou com o velho no carro.
Clemente ainda teve idéia de chamar um tilbury, mas desistiu da idéia, e seguiu direção oposta.
Durante toda a noite pensou na gentil menina que ele havia deixado em outro tempo. Entrou a perguntar a si mesmo se aquele velho seria marido dela, e se ela havia enriquecido com o casamento. Ou seria um padrinho rico, que resolvera deixá-la por herdeira de tudo? Todas estas idéias galoparam na cabeça de Clemente Soares, até que o sono se apoderou dele.
De manhã tudo estava esquecido.