Conto

Um Esqueleto

1875
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em outubro e novembro de 1875, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

III

O Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva, e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou passar seis semanas, e repetiu o pedido.

- Aceitou? - disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.

- Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?

- Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...

O doutor deu uma gargalhada, das que ele guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma cousa. Naquela ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o doutor imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:

- Oh! Meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?

A ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée (vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso), que era a sua fala característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.

O doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a ideia que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha ideias de vir à Corte, logo depois do casamento; aventurou a ideia de seguir para a Europa; mas apenas parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia ele, entre as suas montanhas.

- Já vejo que está perfeitamente noivo - disse eu -; tem todos os traços característicos de um homem nas vésperas de casar.

- Parece-lhe?

- E é.

- De fato, gosto da noiva - disse ele com ar sério -; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.

A ideia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras, cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.

O casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.

Sacrifício não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O tenente Soares não lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia todas as cousas que em tais circunstâncias se podem dizer.

O casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível; afinal, passou a novidade, como todas as cousas deste mundo, e ninguém mais tratou dos noivos.

Fui jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a influir nele, sendo já uma das primeiras consequências a supressão da singular casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.

- Veste-me como quiseres - dizia ele à mulher -; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca.

- Nem quero.

- Nem podes.

Parecia que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês fui lá, e achei-a triste.

"Oh!", disse eu comigo, "cedo começam os arrufos."

O doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca. Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com Mefistófeles.

Aqui confesso que não pude deixar de rir.

- Doutor - disse eu -, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar comigo.

- Sim?

- Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o Diabo...

Ouvindo esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido. Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada, e disse:

- Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante ideia, do mesmo modo que se engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.

- Essa agora!...

- Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.

- Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda algum tempo aqui lendo o seu Fausto.

O doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala de jantar. Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.

Caminhei por um corredor fora que ia ter à sala de jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados.

"O arrufo continua", pensei eu.

Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela, sentado numa cadeira, vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjecturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr pela rua fora.

Em casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.

Durante três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doudo. Todavia, ardia por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. Dona Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?

No terceiro dia apareceu-me em casa o doutor Belém.

- Três dias! - disse ele -. Há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?

- Tenho andado doente - respondi eu sem saber o que dizia.

- E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.

A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e ideias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.

Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela, se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.

IV

No meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.

- Agora há de jantar conosco - disse ele.

- Não posso - balbuciei eu - devo ir...

- Não deve ir a nenhuma parte - atalhou o doutor -; parece-me que quer fugir de mim. Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.

Dona Marcelina repetiu o pedido do marido, mas com um ar de constrangimento visível. Ia recusar de novo, mas o doutor teve a precaução de me agarrar no braço e foi impossível recusar.

- Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora - disse eu.

- Pois não.

Dei o braço a D. Marcelina, que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:

- Que mistério há?

Dona Marcelina estremeceu outra vez e com um sinal impôs-me silêncio.

Chegamos à sala de jantar.

Apesar de já ter presenciado a cena do outro dia, não pude resistir à impressão que me causou a vista do esqueleto, que lá estava na cadeira em que o vira com os braços sobre a mesa.

Era horrível.

- Já lhe apresentei minha primeira mulher - disse o doutor para mim -; são conhecidos antigos.

Sentamo-nos à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta. Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu espanto.

- Doutor - disse eu -, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?

- Este qual? - disse ele.

Com um gesto indiquei-lhe o esqueleto.

- Ah!... - respondeu o doutor -; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.

- Confesse ao menos que é um uso original.

- Queria que eu copiasse os outros?

- Não, mas a piedade com os mortos...

Atrevi-me a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse trazê-lo a melhor caminho.

O doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e, estendendo-me o prato de sopa, replicou:

- O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de morta?

Não respondi cousa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa, e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas ideias a respeito dos mortos.

- O medo dos mortos - disse ele - não é só uma fraqueza, é um insulto, uma perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que com os vivos.

E depois de um silêncio:

- Confesse, confesse que está com medo.

Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça.

- É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são dous maricas. Que há entretanto neste esqueleto que possa meter medo? Não lhes digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de carne.

- Só? - perguntei eu intencionalmente.

O doutor sorriu-se e respondeu:

- Só.

Parece que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:

- Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só, demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos retê-la; guardemos isto ao menos, que é uma parte da pessoa amada.

Ao terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto. Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.

Estávamos à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez minutos, perguntou:

- E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero dizer a história de minha mulher?

- Não me lembra - murmurei.

- E a ti? - disse ele voltando-se para a mulher.

- Já.

- Foi um crime - continuou ele.

- Um crime?

- Cometido por mim.

- Pelo senhor?

- É verdade.

O doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo, e repetiu:

- É verdade, um crime de que fui autor. Minha mulher era muito amada de seu marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia, porém, suspeitei que me houvesse traído; vieram dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante. Algumas aparências me enganaram. Um dia declarei-lhe que sabia tudo, e que ia puni-la do que me havia feito. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a.

Imagina-se, não se descreve a impressão de horror que estas palavras me causaram. Os cabelos ficaram-me em pé. Olhei para aquele homem, para o esqueleto, para a senhora, e passava a mão pela testa, para ver se efetivamente estava acordado, ou se aquilo era apenas um sonho.

O doutor tinha os olhos fitos no esqueleto e uma lágrima lhe caía lentamente pela face. Estivemos todos calados durante cerca de dez minutos.

O doutor rompeu o silêncio.

- Tempos depois, quando o crime estava de há muito cometido, sem que a justiça o soubesse, descobri que Luísa era inocente. A dor que então sofri foi indescritível; eu tinha sido o algoz de um anjo.

Estas palavras foram ditas com tal amargura que me comoveram profundamente. Era claro que ainda então, após longos anos do terrível acontecimento, o doutor sentia o remorso do que praticara e a mágoa de ter perdido a esposa.

A própria Marcelina parecia comovida. Mas a comoção dela era também medo; segundo vim a saber depois, ela receava que no marido não estivessem íntegras as faculdades mentais.

Era um engano.

O doutor era, sim, um homem singular e excêntrico; doudo lhe chamavam os que, por se pretenderem mais espertos que o vulgo, repeliam os contos da superstição.

Estivemos calados algum tempo e dessa vez foi ainda ele que interrompeu o silêncio.

- Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o conservarei até à minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o trago para a mesa depois que me casei?

Não respondi com os lábios, mas os meus olhos disseram-lhe que efetivamente desejava saber a explicação daquele mistério.

- É simples - continuou ele -; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos.

Esta última revelação do doutor pôs termo à minha paciência. Não sei o que lhe disse, mas lembra-me que ele ouviu-me com o sorriso benévolo que tinha às vezes, e respondeu-me com esta simples palavra:

- Criança!

Saí pouco depois do jantar, resolvido a lá não voltar nunca.

V

A promessa não foi cumprida.

Mais de uma vez o doutor Belém mandou à casa chamar-me; não fui. Veio duas ou três vezes instar comigo que lá fosse jantar com ele.

- Ou, pelo menos, conversar - concluiu.

Pretextei alguma cousa e não fui.

Um dia, porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse.

Fui.

Eram então passados quinze dias depois do célebre jantar em que o doutor me referiu a história do esqueleto. A situação entre os dois era a mesma; aparente afabilidade da parte dela, mas na realidade medo. O doutor mostrava-se afável e terno, como sempre o vira com ela.

Justamente nesse dia, anunciou-me ele que pretendia ir a uma jornada dali a algumas léguas.

- Mas vou só - disse ele -, e desejo que o senhor me faça companhia a minha mulher vindo aqui algumas vezes.

Recusei.

- Por quê?

- Doutor, por que razão, sem urgente necessidade, daremos pasto às más-línguas? Que se dirá...

- Tem razão - atalhou ele -; ao menos, faça-me uma cousa.

- O quê?

- Faça com que em casa de sua irmã possa Marcelina ir passar as poucas semanas de minha ausência.

- Isso com muito gosto.

Minha irmã concordou em receber a mulher do Dr. Belém, que daí a pouco saía da capital para o interior. Sua despedida foi terna e amigável para com ambos nós, a mulher e eu; fomos os dois, e mais minha irmã e meu cunhado, acompanhá-lo até certa distância, e voltamos para casa.

Pude então conversar com D. Marcelina, que me comunicou os seus receios a respeito da razão do marido. Dissuadi-a disso; já disse qual era a minha opinião a respeito do Dr. Belém.

Ela referiu-me então que a narração da morte da mulher, já ele lha havia feito, prometendo-lhe igual sorte no caso de faltar aos seus deveres.

- Nem as aparências te salvarão - acrescentou ele.

Disse-me mais que era seu costume beijar repetidas vezes o esqueleto da primeira mulher e dirigir-lhe muitas palavras de ternura e amor. Uma noite, estando a sonhar com ela, levantou-se da cama e foi abraçar o esqueleto pedindo-lhe perdão.

Em nossa casa todos eram de opinião que D. Marcelina não voltasse mais para a companhia do Dr. Belém. Eu era de opinião oposta.

- Ele é bom - dizia eu -, apesar de tudo; tem extravagâncias, mas é um bom coração.

No fim de um mês recebemos uma carta do doutor, em que dizia à mulher fosse ter ao lugar onde ele se achava, e que eu fizesse o favor de a acompanhar.

Recusei ir só com ela.

Minha irmã e meu cunhado ofereceram-se porém para acompanhá-la.

Fomos todos.

Havia entretanto uma recomendação na carta do doutor, recomendação essencial; ordenava ele à mulher que levasse consigo o esqueleto.

- Que esquisitice nova é essa? - disse meu cunhado.

- Há de ver - suspirou melancolicamente D. Marcelina - que o único motivo desta minha viagem são as saudades que ele tem do esqueleto.

Eu nada disse, mas pensei que assim fosse.

Saímos todos em demanda do lugar onde nos esperava o doutor.

Íamos já perto, quando ele nos apareceu e veio alegremente cumprimentar-nos. Notei que não tinha a ternura de costume com a mulher, antes me pareceu frio. Mas isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.

Passamos dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas e voltaríamos todos juntos.

Acedemos.

No dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.

- Vem também? - disse ele.

- Vou - respondi.

A mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a explicação.

Fomos ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três silenciosos.

Não tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho; o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.

Dei um grito.

- Um esqueleto! - exclamou D. Marcelina.

- Descansem - disse o doutor -, é o de minha primeira mulher.

- Mas...

- Trouxe-o esta madrugada para aqui.

Nenhum de nós compreendia nada.

O doutor sentou-se numa pedra.

- Alberto - disse ele - e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir a minha promessa...

Ia interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.

- Vocês amam-se - disse ele.

Marcelina deu um grito; eu ia protestar.

- Amam-se que eu sei - continuou friamente o doutor -; não importa! É natural. Quem amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez; foi por esta.

Dizendo isto, abraçou-se ao esqueleto.

- Doutor, pense no que está dizendo...

- Já pensei...

- Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?

- Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...

- Oh! Meu amigo - interrompi eu -, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.

Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.

- Isto é indigno! - clamei.

- Talvez - murmurou ele.

E depois de um silêncio:

- Em todo o caso, minha resolução está assentada - disse o doutor -. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!

O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.

Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.

VI

Alberto acabara a história.

- Mas é um doudo esse teu Dr. Belém! - exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.

- Ele doudo? - disse Alberto -... Um doudo seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.

É inútil dizer o efeito desta declaração.

A+
A-