Conto

Um Ambicioso

1877

II

José Cândido, logo que saiu de casa, dirigiu-se à rua da Imperatriz, e entrou no corredor de um sobrado.

- O Sr. capitão está em casa?

- Quem é? - perguntou de dentro uma voz irritada.

- Um seu criado - disse José Cândido.

Entrou.

O dono da casa veio recebê-lo à porta da sala, com um ar que contrastava com a voz de há pouco, mas não com a voz que empregou então, a qual era doce a mais não poder.

- Venha cá, venha cá - disse ele -; cuidei que já nos tinha esquecido.

- Estive cá anteontem.

- Pois então! Dois dias parece-lhe pouco?

José Cândido sentiu-se satisfeito; entrou; sentou-se em uma cadeira de balanço que o dono da casa lhe ofereceu. Era este o capitão Fabrício, um homem alto e cheio, grisalho, de olhos velhacos e pretos.

- Quer tomar alguma cousa?

- Não, senhor; obrigado.

Fabrício sentou-se também, esfregou as mãos, bateu com elas nos joelhos, exclamando:

- Então parece que a cousa vai!

- Ora, se vai!

- Há de ir! Desta vez, ou vencemos...

- Ou tudo leva a breca! - concluiu José Cândido com ar marcial.

- Apoiado!

Seguiu-se um silêncio. Fabrício foi o primeiro que falou:

- Tem feito alguma das suas?

- Tenho. Um barbeiro lá da minha rua, e dois oficiais da mesma loja, que já estavam apalavrados com os outros, declararam-me ontem que votam conosco.

- Assim! Assim!... É preciso não esmorecer. Hoje dois, amanhã três, no fim das contas faz-se um rombo no inimigo.

E o capitão riu com um riso franco, amigável, paternal, enquanto José Cândido, com os olhos nos bicos dos botins, tinha o mesmo ar com que o pai o fora achar nessa manhã.

- Eu, Sr. capitão... - disse ele ao cabo de alguns segundos - queria falar-lhe numa cousa.

- Diga, diga.

- Talvez... pode ser... mas...

- Mas?

- Não me atrevo...

- Atreva-se.

- Queria dizer... sim... posso contar com sua proteção?

- Toda, toda, Sr. José Cândido; pode contar comigo para tudo o que for de seu agrado. Tinha que ver, que não pudesse contar com a boa vontade dos correligionários, um homem que tem feito o que o senhor tem feito. Diga, o que é?

José Cândido mostrou-se animado com esse tom, pôs toda a alma nas mãos e preparou-se para desembuchar o seu segredo, enquanto Fabrício, com o ar mais afetuoso e serviçal que possuía, esperava que ele começasse a falar.

José Cândido falou.

Nunca a voz trêmula da donzela que pela primeira vez confessa que ama, nunca foi mais doce, mais tímida. Os olhos, ora no chão, ora no teto, pareciam envergonhados da audácia do dono. A face, ordinariamente amarela como as gravatas, fez-se vermelha como os botões de vidro do colete. A mão tremia, o lábio tremia, todo ele tremia.

- Eu, Sr. capitão - disse ele -, eu desejava... ambicionava... supunha... sim... queria ser eleitor...

O capitão entrelaçou um riso e uma careta, fez um gesto de cabeça e piscou os olhos.

- Ambição legítima - disse ele -; ambição muito legítima, a mais legítima possível.

- Parece a V.Sa. ...

- Pois não há de parecer! Um homem digno, fiel ao partido, trabalhador...

- Por ora não tenho pedido nada.

- É verdade; não tem pedido nada.

- Então, posso contar? - perguntou José Cândido no cúmulo da alegria.

O capitão deitou-lhe um pouco de água na fervura.

- Por mim, decerto; mas sabe que não depende só de mim; os correligionários, os candidatos, as influências...

- Mas, se é certo que eu possa ambicionar...

- Pode e deve. Mas, como sabe, tudo neste mundo está sujeito a contingências. O que eu posso afirmar-lhe é que pode contar comigo.

- Oh! Interesse-se por mim!

Fabrício estendeu-lhe a mão.

- Conte com isso.

- Quanto a recursos, se é preciso entrar com alguns, creio que posso dispor de quatro ou seis contos de réis...

- Isso depois. Vamos primeiramente ao essencial; amanhã lhe darei a resposta. Amanhã, não, domingo é mais certo.

José Cândido saiu da casa do capitão com a alma a nadar-lhe em um mar de júbilo. Eleitor! José Cândido sentira nascer-lhe essa ambição algumas semanas antes; se é que ela nasceu, se é que suas ambições podiam nascer. Existia desde o princípio dos tempos; coexistiu com o caos. Desagregando-se da confusão das cousas, ficou no espaço à espera que nascesse José Cândido. José Cândido nasceu, ela penetrou-lhe no cérebro, onde residiu escondida até quase trinta anos. Um dia rebentou como um aneurisma.

José Cândido tinha a paixão eleitoral, mas só a paixão eleitoral, não a política. Era um cabalista de primeira força. Ele vivia no tempo das eleições três vezes mais do que no resto dos tempos. Por isso amava as dissoluções da Câmara. Era a sua única ocupação, mas valia por trinta.

Tinha roda, dispunha de votos; era exímio no meio de angariar votos contrários, em trocar cédulas, preparar fósforos, reunir invisíveis...

Não lhe perguntassem qual era o seu partido; ele era do partido do capitão. Houve um tempo em que o capitão entendeu conveniente fazer uma viravolta; José Cândido não se alterou; ficou no mesmo lugar; ficou fiel ao capitão. Este era a sua bandeira, programa, sistema. Suas ideias, princípios, simpatias eram as simpatias, princípios e ideias do capitão; fora dele era tudo abominável. E o capitão sabia de que força era o correligionário. Quis um dia arranjar-lhe uma patente de alferes, na Guarda Nacional, e ele recusou, com uma abnegação romana. José Cândido era desinteressado, puro, incorruptível.

Um dia, porém (fatal dia!), a ambição eleitoral deitou a ponta do nariz de fora. José Cândido sentiu bater-lhe o coração fortemente, mais fortemente do que batia quando ele ia falar a Emília, sua prima, filha da Sra. Inácia. Que seria? Consultou-se; recuou aterrado. Uma feiticeira de Macbeth bradava-lhe aos ouvidos: Tu serás eleitor, José Cândido! Eleitor! Sim; por que não? Ele os fazia, podia manipular-se a si próprio. Que seria preciso? Apoio? Contava com o capitão. Dinheiro? O pai lhe daria algum quando soubesse que o filho ia ser eleitor. Esta ideia é o que o trazia desde tanto tempo distraído, absorto, acima do tempo e do espaço.

Não eram muitas nem decisivas as esperanças que Fabrício lhe dera; mas as primeiras ambições são fáceis de iludir. José Cândido saiu da casa do capitão certo de ver já o seu nome proclamado aos quatro ventos do universo. Ele próprio sentia em si um ar mais seguro, alguma cousa menos ínfima. Seus olhos pareciam dizer às esquinas, aos prédios, às calçadas da rua: "Vede; este é um dos bem-aventurados da terra!".

Ia neste sonho, quando ao passar a última esquina, perto de casa, sentiu alguém que lhe puxava pela aba do paletó.

III

A pessoa era uma mulher; a mulher era a Sra. Inácia.

- Onde vai você, Juca? - disse ela.

José Cândido sentira alguma cousa semelhante a um trambolhão moral; sua alma caiu no chão. Sorriu, contudo, apertou a mão à Sra. Inácia, perguntou como iam todos.

- Todos vão bem; a Emília é que...

- Que tem? Doente?

- Não; mas anda aborrecida. Você onde vai?

- Para casa.

- Vamos lá a casa primeiro.

- Vamos.

A Sra. Inácia morava perto; seguiram os dois, a falar de cousas indiferentes, ela atenta, ele distraído.

- Que é que você tem, Juca? - disse repentinamente a Sra. Inácia.

- Eu?

- Sim; você.

- Nada.

- É impossível. Noto que você anda há algum tempo distraído, meio aluado, falando pouco, assim não sei como...

- Reparou nisso? - disse José Cândido com um ar de magnífica superioridade.

- Reparei. Que é?

José Cândido parou.

- Há cousas - disse ele -, superiores ao entendimento de uma senhora. Em geral, as senhoras não pensam nos negócios públicos... Eu penso nos negócios públicos.

A Sra. Inácia não entendeu; ficou a olhar para ele, alguns instantes. Depois, disse:

- Mas você anda distraído.

- Por isso mesmo.

- Isso mesmo o quê?

José Cândido levantou os ombros.

- Falemos de outra cousa - disse ele -; falemos de linhas e alfinetes. Onde comprou o seu xale?

- Na rua do Carmo, - explicou a Sra. Inácia -; não custou muito caro.

- Não?

- Dez mil-réis.

- Está bom! - murmurou José Cândido com os olhos e o pensamento no eleitorado.

A Sra. Inácia mordia-se de zanga; não tinha alcançado nada e queria saber tudo ou alguma cousa: 1º porque podia ser namoro, e ela afagava a ideia de casá-lo com a filha; 2º porque não queria perder a fama de sagacidade e jeito, que adquirira no bairro; 3º finalmente, porque tinha o olho em uma dúzia de xícaras que havia em casa do primo Mateus.

Três boas razões.

Estavam perto da casa dela; a Sra. Inácia parou.

- Juca, vou pedir a você uma cousa.

- Diga.

- Você há de me dizer o que é que tem.

- Mas por quê? Que tenho eu?

- Alguma cousa; você não anda bom.

José Cândido já não podia esconder o desdém que lhe causava o triste vulgo, e a pergunta da Sra. Inácia encheu a medida de seu infinito desprezo. Contudo era preciso explicar-se.

- Se eu lhe dissesse o que tenho, a senhora não me entendia...

- Isso agora!

- Não entendia; mas só lhe peço que acredite numa cousa; eu nunca hei de desprezar os meus; posso fazer até muito benefício, porque... enfim... a posição... a importância... Sim, um eleitor tem importância.

- Eleitor?

- Lá me escapou; sim, eleitor... não diga nada. Adeus!

E José Cândido estendeu-lhe a mão.

- Não vens ver as pequenas? - perguntou a Sra. Inácia.

- Vou, vamos.

Foram; as meninas fizeram muita festa ao primo; ele pôde falar a sós, um minuto, com Emília, que era uma rochonchuda como a mãe, e saiu daí a meia hora.

A Sra. Inácia ficara consternada. Não chegara a entender o que José Cândido lhe dissera. A Sra. Inácia era pouco mais inteligente do que os seus sapatos. Para entender as cousas era preciso que lhas dissessem com todas as letras, palavras, verbos e advérbios, tudo explicadinho, repetido, claro, transparente. As palavras de José Cândido não tinham para ela nem ligação nem explicação.

- Há alguma cousa - pensou ela -; é preciso voltar à carga.

Não foi preciso. José Cândido contou-lhe tudo naquela mesma noite, sem pedido dela, mas de própria inspiração. Ele pensara na conveniência de ter alguém que, ao pé do pai, abrisse caminho ao pedido dos quatro ou seis contos de réis precisos para o cofre dos candidatos. Lembrou-se da Sra. Inácia. Contou-lhe tudo, com muitas e repetidas explicações; depois disse o que queria.

- Cinco ou seis contos! - exclamou a Sra. Inácia pondo as mãos na cintura -. Pois é preciso tanto dinheiro para isso?

- A senhora não entende de negócios públicos - disse José Cândido com certa bonomia e magnanimidade -. Não me peça explicações; aceite o que lhe digo e ajude-me, ajude-me, que é ajudar os seus, é a glória da família.

- Lá isso é! - concordou a Sra. Inácia para fazer crer que entendia uma cousa tão difícil que José Cândido dizia ser superior ao entendimento das mulheres.

E depois de um instante:

- Está certo de que seu pai ceda?

- Há de ceder.

- Só de pensar nisso, tremo!

- Não trema! Não lhe peça nada. Diga-lhe só que eu estou quase eleitor e preciso de cinco contos; que não me atrevo a pedi-los; que vivo aflito; que a glória da família está ameaçada...

- Espere - interrompeu velhacamente a Sra. Inácia -; para obrigá-lo mais, direi que a Emília ficou toda chorosa...

- A Emília... - balbuciou José Cândido -; mas...

- Anda lá! Pensa que eu sou alguma tola? - disse a Sra. Inácia piscando os olhos.

José Cândido baixou os olhos pudicamente. A Sra Inácia afiançou-lhe que não levava a mal seus sentimentos; chegava a aprová-los; talvez mesmo a aplaudi-los. José Cândido apertou-lhe as mãos, com certo ar, piscou um olho, e confirmou as suspeitas da Sra. Inácia, de modo que ela viu luzir-lhe nas prateleiras toda a louça da casa do velho Mateus.

O velho Mateus teve dois sobressaltos quando a prima lhe falou do caso; um de alegria, porque a ideia de ver o filho eleitor sempre lhe lisonjeava a vaidade; outro de terror, quando ela lhe fez ver que seriam precisos alguns quatro ou seis contos de réis.

- Nunca! - exclamou ele dando um murro no balcão.

Daí a um quarto de hora, tendo ouvido as palavras e rogativas da Sra. Inácia, limitou-se a dizer, mas já sem murro:

- É muito dinheiro!

Foi nessa ocasião que José Cândido, que tudo escutava, entrou na loja. Estava pálido naturalmente; e artificialmente com o ar desvairado e as pernas bambas. Instou por sua vez; disse que era a glória da família, a honra própria; que os mais altos destinos podiam estar no fim da campanha eleitoral.

O velho Mateus resistiu.

Mas resiste-se um dia, não se resiste em outro; e cada sol traz uma mudança à alma do homem. O Sr. Mateus não era avesso à ambição, ainda que fosse homem pacato. Verdadeiramente, ele não acreditava no eleitorado de José Cândido; mas este asseverou tanto, e ficou tão acabrunhado, falou de morrer, fez vários trejeitos mais, uns sinceros, outros exagerados, que afinal o Sr. Mateus prometeu um conto, depois dois, finalmente os quatro e somente os quatro.

José Cândido cantou um Te Deum laudamus.

IV

Logo que obteve resposta favorável, José Cândido foi ter com o capitão Fabrício, que havia já adiado a resposta três vezes, dizendo não ter podido chegar a acordo.

Oh! Que não sei de nojo como conte a declaração feita pelo capitão ao digno e ativo correligionário! José Cândido subiu as escadas a quatro e quatro. O eleitorado dava-lhe asas. Subiu; entrou na sala do capitão, falou-lhe trêmulo.

- Então?

Fabrício tinha preparado uma cara análoga ao ato, e suspirou uma vez, bateu duas vezes com a mão no joelho, até que rompeu a fatal palavra.

- O número está completo; nossos amigos pedem que você espere para a eleição seguinte. Na eleição seguinte o seu lugar é certo. Eu mesmo o defenderei, como o defendi agora, como o defenderei sempre.

José Cândido ouviu tudo aquilo mais pálido que um defunto.

- Mas, Sr. capitão, eu...

- Não diga nada - interrompeu o capitão -; não pode dizer mais do que eu próprio disse a todos eles...

- Contudo...

- Sei! Sei! Não há abnegação! Não há unidade de pensamento...

José Cândido quis ainda intercalar algumas frases, mas era impossível; o capitão interrompia-o furioso para asseverar que a abnegação estava morta, que não havia fraternidade política. José Cândido estava fulminado, não ouviu as primeiras palavras do chefe. Quando voltou a si, insinuou ao capitão que podia dispor dos meios necessários para obtenção do diploma.

- A coisa está feita - disse melancolicamente o capitão.

José Cândido torcia os braços.

- Cheguei a dizer que cedia o meu lugar em seu proveito...

- E então?

- Recusaram.

- Ah! Trata-se então de uma guerra pessoal...

- Não! Sou obrigado a dizer que, nesse ponto, o pensamento dos nossos amigos foi não se desfazerem do meu nome, que eles supõem (sem razão) cercado de certo prestígio.

José Cândido ainda insistiu, bradou, implorou; o capitão animou-o com as mais brilhante promessas, chegando a dizer que ele se retiraria da arena política, para todo o sempre, se porventura o seu nobre amigo não fosse incluído na lista dos candidatos futuros. Era muito, mas eram promessas somente, e José Cândido vivia já de uma suposta realidade.

Durante três dias o mancebo andou desatinado, até que no quarto dia, por uma dessas resoluções que levam os Césares a atravessar o Rubicão, José Cândido galgou a muralha das considerações políticas: retirou o seu concurso ao capitão; em vez de lutar contra um partido, dispôs-se a lutar contra dois; determinou enfim apresentar-se candidato.

O Sr. Mateus não era homem de dar os quatro contos, mediante a garantia única da influência do filho, sem o concurso de um partido. José Cândido, que o sabia, empregou uma perfídia; nada disse ao pai do que se passara com o capitão. Pelo contrário, deu-se como aceito e aplaudido; figurou que ia ter com ele muitas vezes; falava de conciliábulos, circulares, entrevistas, uma agitação comum. Oito dias depois, o pai aventava os quatro contos e entregava-os ao jovem candidato. Importa dizer que, na mente do Sr. Mateus, os quatro contos não eram deitados à rua; ele meditava já obter umas empreitadas, por intermédio do futuro eleitor. Não! Ele não era homem de dar dinheiro por nada. Nada por dinheiro ainda era possível.

- Vão para a caixa - disse José Cândido atando as notas.

O Sr. Mateus suspirou; mas a aludida reserva mental, e a vaidade de ver as grandezas políticas do filho de algum modo lhe minoraram as saudades.

José Cândido, ambicioso impotente mais fantástico, viu tudo cor-de-rosa, contemplava já os dois partidos de cara à banda, vendo triunfar um nome não cogitado por eles. Havia mesmo em seu íntimo certo desejo de derrotar pessoalmente o capitão, por não ter alcançado a aceitação de seu nome. Chegava-lhe aos ouvidos o eco de futuras conversações nos círculos políticos:

- José Cândido venceu!

- Eleitor José Cândido!

- É um golpe inesperado!

- É uma desforra da opinião pública!

- É isto!

- É aquilo!

Não se podia negar que José Cândido dispunha de alguns votos certos; ao todo, uns vinte e cinco. Podia ter esperança em alguns votos prováveis; uns cinquenta. Era pouco, era quase nada; mas ele contava com algumas artes particulares que tinha.

Uma vez resolvido a lutar, atirou-se José Cândido à arena, com alma e coração. Tratou primeiro que tudo de organizar umas listas excluindo o capitão e incluindo o seu nome, e fez crer aos votantes que o acompanhavam que essa decisão tinha sido tomada pelos centros políticos da capital. Ao barbeiro, acenou com a possibilidade de o incluir também; e o barbeiro, cujas ambições não iam acima da rabeca, sentiu uma espécie de vertigem, uma explosão interior, e acabou aceitando a oferta.

Os quatro contos do Sr. Mateus começaram a ter uma extração lenta, mas certa. Almoço daqui, ceia dacolá, um presente, um empréstimo, todas as formas da redução, que podem estar ao alcance de quatro contos e de um candidato desejoso de fazer a chapa, todas foram empregadas com muito método e singular tenacidade.

O dia aproximava-se a passos de gigante.

V

Um dia de manhã o Sr. Mateus teve um acesso de cólera. Abrira o Jornal do Commercio e lera a lista definitiva dos candidatos ao eleitorado da Paróquia. O nome do filho brilhava pela ausência!

Foi um Dies irae.

O Sr. Mateus, com o jornal amarrotado na mão, precipitou-se no quarto de José Cândido.

- Malandro! Pelintra, ratoneiro! Que é isto? Onde estão os meus quatro contos? - dizia ele fazendo da gazeta um chicote e ferindo com ele o ar.

- Que é? - disse o filho espantado.

O Sr. Mateus berrou ainda alguns adjetivos, primeiro que explicasse o motivo da cólera. Depois explicou. José Cândido ficou pálido, mas dominou-se logo. Simulou um grande espanto, e prometeu que ia saber o motivo daquilo. O dinheiro não estava perdido, porque só o dera com a condição do eleitorado.

- Tolo fui eu em ceder! - exclamou o Sr. Mateus.

José Cândido saiu e voltou daí a uma hora.

- Tudo está explicado - disse ele -; essa lista é apócrifa.

José Cândido tinha apreendido a palavra apócrifa, nas lutas eleitorais; o pai, que nunca entrara nelas, ignorava absolutamente o sentido da palavra e teve vergonha de o pedir. Felizmente o boticário defronte tinha um dicionário, que lhe emprestou, e ele pôde ler a definição do termo, e com certo custo aplicou-o ao caso.

Infelizmente, no dia seguinte era publicada uma circular política recomendando a lista que se dizia apócrifa; e dessa vez não era lícito duvidar, salvo se a circular fosse também apócrifa, o que José Cândido não teve ânimo de dizer. Confessou tudo; acrescentou que, por motivos políticos, ele não fora incluído na lista, mas que o partido o ajudaria por trás da cortina.

- Mas o dinheiro? - bradou o pai, que ia achando apócrifos tanto o partido como a cortina.

- O dinheiro...

- Sim, onde está?

- O dinheiro é necessário à luta - disse José Cândido com um ar ingênuo -. Quando duas facções de um mesmo grupo de interesses...

- Qual, interesses! Vai buscar o dinheiro.

Era difícil obedecer. Parte dele estava já em jantares, charutos, paletós, empréstimos, pagamento de dívidas. Demais, José Cândido não cederia nunca. Disse-lhe que o dinheiro tinha seguido o seu destino.

O Sr. Mateus sentiu alguma cousa semelhante a um tiro na boca do estômago. Caiu numa cadeira, bufou, espumou, declarou a José Cândido que saísse e nunca mais lhe pusesse os pés em casa. José Cândido não fez grande esforço para ficar; aceitou a solução e saiu.

- Nunca mais! - bradou o pai -. Ouviste? Nunca mais!

E vendo-o sair sem dizer palavra, sem tentar abrandá-lo, sem um remorso aparente, o Sr. Mateus sentiu uma comoção superior à da perda dos quatro contos. A paternidade falou mais alto que o dinheiro.

Meia hora depois voltou à loja com os olhos vermelhos.

Tinha chorado.

José Cândido não chorou; saiu teso, até risonho, com os olhos na estrela eleitoral, certo de que o pai lhe abriria a porta e os braços no dia em que o visse aparecer triunfante. Foi dali ao barbeiro, contou-lhe o caso e as esperanças, que não perdera, de abrandar a cólera do pai, quando fosse eleito. O barbeiro, dentro em si, reprovou o incidente; mas a esperança de um triunfo à custa do dinheiro de José Cândido fê-lo calar todos os escrúpulos. Ele aprovou de boca o procedimento de José Cândido, que achou digno sem ser desrespeitoso. Esta opinião, que o envergonhava, foi dita ao mesmo tempo que ele afinava a rabeca; meio de se não ouvir a si próprio.

A notícia da expulsão de José Cândido caiu como uma bomba em casa da Sra. Inácia. Esta deu um salto ao xale e precipitou-se para casa do primo, a saber do que havia, enquanto Emília, a namorada de José Cândido, desfez-se em lágrimas amargas.

No meio das lágrimas apareceu-lhe José Cândido.

- Será verdade? - perguntou a moça.

- O quê?

- Que você foi posto fora da casa.

José Cândido ergueu os ombros. Emília soltou um dilúvio de novas lágrimas.

- Mas por que chora você? - perguntou José Cândido exasperado.

- Por quê? - perguntou a moça indignada.

- Sim, por quê?

Emília disse que ele era um ingrato, e intimou-o a reconciliar-se com o pai; insinuou-lhe mesmo que o fato da expulsão podia demorar ou tornar impossível a aliança conjugal que os dois ambicionavam. Sou obrigado a dizer que este era o motivo secreto das lágrimas de Emília.

José Cândido respondeu com um repelão, declarou que tudo estava acabado entre eles, e saiu, sempre com os olhos na estrela eleitoral. O barbeiro teve igualmente notícia deste rompimento; e secretamente achou que era complicar a situação já melindrosa; mas de viva voz confessou que os sentimentos de segunda ordem não podem impedir a expansão dos altos interesses e das nobres paixões cívicas. Seu estilo foi menos levantado, mas a ideia foi aquela.

José Cândido concordava com tudo; animava-o a ideia de que não há arrufos diante de um candidato vencedor, e vivia com os olhos nas urnas. Uma dúzia de sujeitos trabalhava em favor dele; dois viviam dia e noite a copiar cédulas. José Cândido, vendo quinhentas, mil, duas mil cédulas manuscritas, imaginara que eram outros tantos votos, e figurava já o efeito de seu nome impresso com o algarismo dos votos adiante. Nunca mais fora à casa do capitão. Este duas ou três vezes mandou-o chamar; uma vez chegou a procurá-lo, mas não o encontrou; deixou um recado, inútil.

Os dois caudilhos estavam divorciados.

E à proporção que os quatro contos iam fugindo, a aurora esperada vinha a aproximar-se. José Cândido, o barbeiro, mais dois ou três férvidos partidários faziam esforços hercúleos. José Cândido chegou a sacrificar alguns mil-réis, nos jornais, em mofinas deste gênero:

ELEITORADO

Recomendamos o nome de um jovem cheio de serviços e de incontestável aptidão: o Sr. José Cândido.

Um do Povo

Ou assim:

AO POVO!

Notamos no Sr. José Cândido uma das esperanças da mocidade e um dos fluminenses mais dignos por seus serviços e modéstia.

Justus

Ou assim:

ÀS URNAS!

Os homens honestos, amigos do talento e reconhecidos aos verdadeiros serviços, têm um candidato certo, que sairá eleito, porque felizmente goza da mais vasta popularidade na paróquia: o Sr. José Cândido. Às urnas! Às urnas!

Um que não falta

A+
A-