Capítulo primeiro
- Mas, Juca, tu estás doente ou que é?
Esta pergunta era feita pelo Sr. Mateus, com casa de louças à rua da Saúde, a um filho seu, que ele foi encontrar, sentado numa mesa, com os pés sobre um mocho e os olhos cravados na parede.
Não era a primeira vez que José Cândido, filho do Sr. Mateus, apresentava sintomas de melancolia ou forte preocupação. Havia duas semanas que o pai reparava na mudança do rapaz; e duas vezes lhe falou nisso, a primeira com ar indiferente, mas afetado; a segunda com algum interesse. A terceira vez, que foi agora, falou-lhe com a alma nas palavras, porque o Sr. Mateus, viúvo e sem parentes, salvo uma prima, concentrara todo seu coração em José Cândido, seu filho único.
José Cândido andava já perto dos trinta anos; faltavam-lhe um ou dois meses. Era um rapaz de feições irregulares e de uma expressão alvar, sobretudo estando quieto. Não era magro nem gordo, alto nem baixo; mediano em tudo, exceto na inteligência, que era ínfima. Tinha uma particularidade José Cândido; gostava de gravatas amarelas. Em compensação detestava o trabalho. Vivia do que lhe dava o pai, que possuía a casa de louças, e uns cinco prédios: trinta contos ao todo.
O Sr. Mateus repetiu as palavras com que esta narração começa, e não obteve melhor resposta do que um silêncio sinistro e doloroso.
- Juca, responde!
- Não é nada, papai - disse José Cândido, acordando da contemplação em que estava -; não é nada; estou pensando na minha vida.
- Mas que tem a tua vida?
- Nada - suspirou o filho.
- Que é? Que foi? Conta-me tudo. Tens alguma dívida?
- Oh! Não! - protestou José Cândido com um gesto de pudor.
O Sr. Mateus respirou; escapara ao maior perigo. Ele professava o princípio de não dever nem fiar. José Cândido, vendo-o caminhar para a porta, cravou outra vez os olhos na parede e mergulhou na contemplação.
O Sr. Mateus voltara à loja, onde o caixeirinho, um menino, vindo de Iguaçu dois meses antes, impingia a um freguês, por dois mil-réis, uma jarra de mil e quinhentos.
Esta circunstância prendeu a atenção do Sr. Mateus, que antes de ser pai, já era negociante, e tinha, além disso, o entusiasmo da profissão. A jarra custara-lhe novecentos réis; ele marcara o preço de mil e quinhentos, a fim de ganhar seis tostões; mas o caixeiro, que tinha a flama sagrada, achou meio de lhe fazer ganhar quase o duplo.
A alma do Sr. Mateus sorriu.
Quando, dez minutos depois, tornou a pensar no filho, este apresentou-se-lhe na loja com o chapéu na mão. Tinha enfiado um paletó preto, porque até então estivera de colete e em mangas de camisa, e ia sair.
O Sr. Mateus não lhe pôs obstáculo; estimou que ele se distraísse.
- Queres dinheiro? - perguntou ao filho.
- Não, senhor, obrigado.
Saiu José Cândido, e o Sr. Mateus sentou-se numa cadeira que ficava por trás de um balcãozinho, ao fundo da loja. Sobre esse balcão havia duas rumas de pratos, por entre as quais o Sr. Mateus usava enfiar os olhos para ver o que se passava na rua, ou vigiar a fidelidade e o tino do caixeiro.
Sentou-se, abriu a caixa de tabaco, fungou uma pitada e reflexionou:
- Aquele rapaz, parece-me que anda apaixonado... Aquilo há de ser volta de mulher. Não vá ser aí alguma cabecinha tonta, alguma avoada...
Ele a dizer isso, e a Sra. D. Inácia a penetrar na loja.
- Seu amo está? - perguntou ela.
- Estou aqui, prima - disse o Sr. Mateus fazendo-se visível -. Que anda fazendo?
- Eu, primo, ando na lida!
- Sempre a trabalhar?
- É verdade.
- Sente-se. Traga um mocho.
O caixeiro obedeceu. A Sra. D. Inácia sentou-se, tirou um lenço do bolso do vestido, enxugou a testa e a cara, e ofegou durante cinco minutos.
A Sra. D. Inácia, quarentona rochonchuda, pesada, mourejava no trabalho desde manhã até à noite, por culpa do Sr. Mateus, que, se quisesse, podia ter - ainda mesmo agora - o coração da prima. Mas o Sr. Mateus, que olhava muita vez para a Sra. Inácia com olhos pouco angélicos, tinha tal aferro ao dinheiro, que não queria arriscar um passo no fim do qual havia, ou podia haver, casamento ou despesa. A Sra. Inácia tinha três filhas.
- Como está o Juca? - perguntou a Sra. Inácia, depois de descansada.
- Assim, assim... Vamos andando como Deus é servido. Sua obrigação?
- Rolando a vida... A Chiquinha é que teve ontem um incômodo, uma dor no peito; mas felizmente passou.
- São macacoas... Eu também, às vezes, aparece-me isto ou aquilo, mas no dia seguinte passa. Agora mesmo, tenho aqui uma dor nas cadeiras...
- Veja um banho de malvas; isso vai embora. Primo, sabe o que é que me trouxe aqui?
O Sr. Mateus ficou com o coração pequenino.
- Era ver - continuou a Sra. D. Inácia -, era ver se me fiava um açucareiro, porque o meu quebrou-se na semana passada...
O Sr. Mateus, que para resistir ao golpe, tirara a boceta de tabaco, tomou uma pitada, dando tempo ao cérebro de redigir uma resposta. E foi bom isso; porque lembrou-lhe a tristeza misteriosa de José Cândido e teve a ideia de pedir o auxílio da prima.
- Fiar, não fio - disse ele -; mas dou-lhe um açucareiro e um bule que aí tenho, de muito gosto.
E foi buscar os dois objetos em um canto de uma das prateleiras.
- O bule tem um pequeno defeito na asa - disse ele -; e é pena, porque é bonito; este friso azul dá muita graça. Aceita?
- Ora, com muito gosto! Bem bonitos!
- Embrulhe isso - ordenou o Sr. Mateus ao caixeiro.
E sem mais demora, enquanto o caixeiro embrulhava a louça, o Sr. Mateus expunha à prima a causa de suas preocupações e pedia-lhe auxílio.
- Aquilo pode ser negócio de namoro... Um pai sempre deve dar-se ao respeito...
A Sra. D. Inácia, que acompanhara a confidência com gestos afirmativos de cabeça, em chegando àquele ponto compreendeu logo o que o Sr. Mateus lhe queria dizer. Compreendeu e aceitou.
- Eu lhe falo, não tem dúvida. Eu pergunto assim como cousa minha... Descanse.
- Quando me poderá dizer alguma cousa?
- Hoje é quinta, não? Talvez no sábado.
- Pois sim; veja-me isso... Veja se ele lhe conta alguma cousa.
- Deixe comigo - disse a Sra. D. Inácia, erguendo-se e sobraçando o embrulho de louça, por baixo do grande xale de ramagens.
E saiu a Sra. D. Inácia.
II
José Cândido, logo que saiu de casa, dirigiu-se à rua da Imperatriz, e entrou no corredor de um sobrado.
- O Sr. capitão está em casa?
- Quem é? - perguntou de dentro uma voz irritada.
- Um seu criado - disse José Cândido.
Entrou.
O dono da casa veio recebê-lo à porta da sala, com um ar que contrastava com a voz de há pouco, mas não com a voz que empregou então, a qual era doce a mais não poder.
- Venha cá, venha cá - disse ele -; cuidei que já nos tinha esquecido.
- Estive cá anteontem.
- Pois então! Dois dias parece-lhe pouco?
José Cândido sentiu-se satisfeito; entrou; sentou-se em uma cadeira de balanço que o dono da casa lhe ofereceu. Era este o capitão Fabrício, um homem alto e cheio, grisalho, de olhos velhacos e pretos.
- Quer tomar alguma cousa?
- Não, senhor; obrigado.
Fabrício sentou-se também, esfregou as mãos, bateu com elas nos joelhos, exclamando:
- Então parece que a cousa vai!
- Ora, se vai!
- Há de ir! Desta vez, ou vencemos...
- Ou tudo leva a breca! - concluiu José Cândido com ar marcial.
- Apoiado!
Seguiu-se um silêncio. Fabrício foi o primeiro que falou:
- Tem feito alguma das suas?
- Tenho. Um barbeiro lá da minha rua, e dois oficiais da mesma loja, que já estavam apalavrados com os outros, declararam-me ontem que votam conosco.
- Assim! Assim!... É preciso não esmorecer. Hoje dois, amanhã três, no fim das contas faz-se um rombo no inimigo.
E o capitão riu com um riso franco, amigável, paternal, enquanto José Cândido, com os olhos nos bicos dos botins, tinha o mesmo ar com que o pai o fora achar nessa manhã.
- Eu, Sr. capitão... - disse ele ao cabo de alguns segundos - queria falar-lhe numa cousa.
- Diga, diga.
- Talvez... pode ser... mas...
- Mas?
- Não me atrevo...
- Atreva-se.
- Queria dizer... sim... posso contar com sua proteção?
- Toda, toda, Sr. José Cândido; pode contar comigo para tudo o que for de seu agrado. Tinha que ver, que não pudesse contar com a boa vontade dos correligionários, um homem que tem feito o que o senhor tem feito. Diga, o que é?
José Cândido mostrou-se animado com esse tom, pôs toda a alma nas mãos e preparou-se para desembuchar o seu segredo, enquanto Fabrício, com o ar mais afetuoso e serviçal que possuía, esperava que ele começasse a falar.
José Cândido falou.
Nunca a voz trêmula da donzela que pela primeira vez confessa que ama, nunca foi mais doce, mais tímida. Os olhos, ora no chão, ora no teto, pareciam envergonhados da audácia do dono. A face, ordinariamente amarela como as gravatas, fez-se vermelha como os botões de vidro do colete. A mão tremia, o lábio tremia, todo ele tremia.
- Eu, Sr. capitão - disse ele -, eu desejava... ambicionava... supunha... sim... queria ser eleitor...
O capitão entrelaçou um riso e uma careta, fez um gesto de cabeça e piscou os olhos.
- Ambição legítima - disse ele -; ambição muito legítima, a mais legítima possível.
- Parece a V.Sa. ...
- Pois não há de parecer! Um homem digno, fiel ao partido, trabalhador...
- Por ora não tenho pedido nada.
- É verdade; não tem pedido nada.
- Então, posso contar? - perguntou José Cândido no cúmulo da alegria.
O capitão deitou-lhe um pouco de água na fervura.
- Por mim, decerto; mas sabe que não depende só de mim; os correligionários, os candidatos, as influências...
- Mas, se é certo que eu possa ambicionar...
- Pode e deve. Mas, como sabe, tudo neste mundo está sujeito a contingências. O que eu posso afirmar-lhe é que pode contar comigo.
- Oh! Interesse-se por mim!
Fabrício estendeu-lhe a mão.
- Conte com isso.
- Quanto a recursos, se é preciso entrar com alguns, creio que posso dispor de quatro ou seis contos de réis...
- Isso depois. Vamos primeiramente ao essencial; amanhã lhe darei a resposta. Amanhã, não, domingo é mais certo.
José Cândido saiu da casa do capitão com a alma a nadar-lhe em um mar de júbilo. Eleitor! José Cândido sentira nascer-lhe essa ambição algumas semanas antes; se é que ela nasceu, se é que suas ambições podiam nascer. Existia desde o princípio dos tempos; coexistiu com o caos. Desagregando-se da confusão das cousas, ficou no espaço à espera que nascesse José Cândido. José Cândido nasceu, ela penetrou-lhe no cérebro, onde residiu escondida até quase trinta anos. Um dia rebentou como um aneurisma.
José Cândido tinha a paixão eleitoral, mas só a paixão eleitoral, não a política. Era um cabalista de primeira força. Ele vivia no tempo das eleições três vezes mais do que no resto dos tempos. Por isso amava as dissoluções da Câmara. Era a sua única ocupação, mas valia por trinta.
Tinha roda, dispunha de votos; era exímio no meio de angariar votos contrários, em trocar cédulas, preparar fósforos, reunir invisíveis...
Não lhe perguntassem qual era o seu partido; ele era do partido do capitão. Houve um tempo em que o capitão entendeu conveniente fazer uma viravolta; José Cândido não se alterou; ficou no mesmo lugar; ficou fiel ao capitão. Este era a sua bandeira, programa, sistema. Suas ideias, princípios, simpatias eram as simpatias, princípios e ideias do capitão; fora dele era tudo abominável. E o capitão sabia de que força era o correligionário. Quis um dia arranjar-lhe uma patente de alferes, na Guarda Nacional, e ele recusou, com uma abnegação romana. José Cândido era desinteressado, puro, incorruptível.
Um dia, porém (fatal dia!), a ambição eleitoral deitou a ponta do nariz de fora. José Cândido sentiu bater-lhe o coração fortemente, mais fortemente do que batia quando ele ia falar a Emília, sua prima, filha da Sra. Inácia. Que seria? Consultou-se; recuou aterrado. Uma feiticeira de Macbeth bradava-lhe aos ouvidos: Tu serás eleitor, José Cândido! Eleitor! Sim; por que não? Ele os fazia, podia manipular-se a si próprio. Que seria preciso? Apoio? Contava com o capitão. Dinheiro? O pai lhe daria algum quando soubesse que o filho ia ser eleitor. Esta ideia é o que o trazia desde tanto tempo distraído, absorto, acima do tempo e do espaço.
Não eram muitas nem decisivas as esperanças que Fabrício lhe dera; mas as primeiras ambições são fáceis de iludir. José Cândido saiu da casa do capitão certo de ver já o seu nome proclamado aos quatro ventos do universo. Ele próprio sentia em si um ar mais seguro, alguma cousa menos ínfima. Seus olhos pareciam dizer às esquinas, aos prédios, às calçadas da rua: "Vede; este é um dos bem-aventurados da terra!".
Ia neste sonho, quando ao passar a última esquina, perto de casa, sentiu alguém que lhe puxava pela aba do paletó.