Conto

Um Almoço

1877
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em março, abril e maio de 1877, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

A manhã era das mais puras, frescas e transparentes manhãs do nosso inverno. Não havia sequer um retalho de neblina; o céu estava azul e nu, o sol, pacato, a temperatura, deliciosa. O Passeio Público convidava a ir gozar ali um pouco de ar e meia hora de silêncio, por isso mesmo estava deserto. Deserto, não. Havia ali um passeador matinal, um só, mas justamente o único de que precisamos para este caso vulgaríssimo.

Chamava-se este passeador Germano Seixas, homem de quarenta e dois anos, mal trajado, pálido e abatido. A passo lento ia ele, cabisbaixo e triste, por uma das alamedas fora, desandando o caminho logo que chegava ao fim, parando a espaços, fitando uma cousa no ar, uma cousa invisível que podia ser um problema ou um consoante, e era nada menos que esse dilema nu e cru: comer ou morrer.

Sim, leitor amigo, Germano Seixas não come há vinte e quatro horas, e acha-se atualmente entre um almoço problemático e um suicídio certo. O estômago e a eternidade o solicitam com igual persistência. Ele cogita, indaga, esmerilha a possibilidade de acudir às urgências do estômago; mas nada vê, nada sequer o ilude.

Numa das vezes que voltava a andar o andado, viu surgir-lhe em frente um sujeito conhecido; quis esconder o rosto, mas não pôde. Era tarde.

- Oh, Germano! - disse o novo passeante -. Que fazes aqui a esta hora?

- Eu?... eu...

- Eu quê?

- Ando tomando fresco...

- Pois está calor?

- Talvez... creio que sim...

- Ora essa! Eu ia agora passando pela rua, vi-te a filosofar e entrei. Há quantos meses não nos vemos?

- Uns oito, talvez...

- Upa! Há mais. Mas enfim, oito ou dez, não importa.

O novo personagem era um sujeito cheio, trajado com limpeza ainda que sem gosto, corado, satisfeito, em paz com a natureza. Apesar de ser ainda muito cedo, trazia ele um palito na boca, sinal de que almoçara.

Seu nome era José Marques.

Germano olhava para o palito, com que José Marques brincava - olhar de inveja e desespero. Mas o dono do palito não dava por isso; extraía a boceta do bolso e tomava uma pitada.

- Queres?

Uma pitada a um homem que deseja um bife é certamente a mais pungente ironia do mundo. Germano nem teve ânimo de falar; recusou com um gesto.

- Que tens, homem? - disse José Marques -. Acho-te assim um pouco...

Parou.

Seixas olhou para ele, para o chão, para as grades, para os bambus, e só depois destes círculos e retas murmurou a medo:

- Marques, eu estou... estou...

- Estás? Acaba.

- Adeus!

E deu alguns passos.

- Onde vais? - clamou José Marques acompanhando-o.

- Para a eternidade!

José Marques alcançou o infeliz deitando-lhe a mão à aba da sobrecasaca. Germano não resistiu, mas não pôde encará-lo.

- Que é isso, homem? - disse José Marques com ar de amigável repreensão -. Morrer! Pois és tão fraco, tão covarde...

- Não é covardia, é miséria, é fome. Ouve-me. Desde ontem não como nada. Sou chegado a uma terrível situação, desesperada e mortal. Minha vida tem sido uma luta impossível com a fatalidade; já não posso lutar; sucumbo. Você pode impedir que hoje me atire à morte, mas amanhã, mas depois, um dia há de vir em que o meu destino tem de cumprir-se.

José Marques ouviu enfiado a narrativa de Germano. Olhou para ele, e leu no rosto o comentário das palavras. A fome e o suicídio davam-se as mãos naqueles olhos encovados e desvairados. José Marques achou em si um bom sentimento, que exprimiu em tom rude:

- Ora vamos! Não sejas tolo! Um homem deve ser superior à fortuna, sem o quê não pode ser homem. É preciso contar com a Providência...

- A Providência! - interrompeu Germano.

- Sim, porque foi ela que me mandou aqui. Um almoço! Pois a gente mata-se por um almoço! Anda comigo; eu lutarei com a tua sorte e vencê-la-emos.

Seixas sentiu-se enternecido ao ouvir aquelas palavras de José Marques. Aceitou a mão que este lhe estendeu e apertou-a entre as suas. Na pálpebra fatigada fulgiu uma lágrima de gratidão.

- Marques! - exclamou ele com a voz trêmula -. Ainda tenho um amigo.

- Um amigo que vale por dez homens. Anda daí!

Marques puxou-o pelo braço e os dois saíram do Passeio Público. Em caminho, Germano referiu a José Marques todos os seus infortúnios daqueles dez ou doze meses. Era um fio interminável de desgraças e contratempos; ele tentara todos os meios de vida ao alcance de suas habilitações, havendo-se em todos com mais fervor que fortuna; ultimamente servira de guarda-livros em uma loja de São Cristóvão, que faliu quinze dias depois de lá entrar. Vivia afinal de empréstimos e fiados. Mas isso mesmo cessou; a ponto de achar-se entre a vida e a morte naquela funesta manhã.

José Marques ouviu a narração do amigo sinceramente comovido. Interrompia-o para lhe dar ânimo e confiança.

- Agora as cousas mudam - dizia ele -; eu vou corrigir tudo isso.

Entraram num hotel, onde Germano almoçou razoavelmente, combinando quanto possível a discrição com as exigências do estômago. Os empregados deste notaram a intimidade de Marques com o maltrapilho, e acharam singular que se tuteassem dois homens, um dos quais parecia não ter o preconceito do lenço de assoar. Mas, ao cabo de tudo, como o almoço era farto e a paga certa, serviram a Germano com a mesma solicitude com que o fariam a outro freguês mais apurado.

No corredor do hotel, Germano disse a José Marques:

- Deste-me a vida; sinto agora que era uma loucura o que ia fazer. Com que expressões te agradecerei tamanho benefício?

- Ora, adeus! - redarguiu José Marques -. Vou daqui à praça. Aparece daqui a duas horas no armazém.

- Sim.

- Onde moras?

- No beco do Cotovelo.

- Bem; vai ao armazém daqui a duas horas.

II

Duas horas depois Germano entrava no armazém de José Marques. A esperança iluminava os olhos, até pouco antes sombreados de suicídio. Não obstante, entrou constrangido e envergonhado.

José Marques manteve a palavra e desempenhou o papel que a Providência lhe confiara naquela manhã. Chamou Germano ao escritório, e aí lhe ofereceu um lugar de guarda-livros em casa de um seu amigo.

- Aceitas?

- Se aceito!

- Pois estás arranjado.

- Mas... como...

- Não digas nada! Não quero ouvir observações nem dar explicações. Achei-te hoje à beira da morte por falta de um almoço; dei-te o almoço. Mas como a situação pode repetir-se amanhã ou depois, ou em outro qualquer dia ofereço-te, dou-te agora uma coleção de almoços, que te hão de livrar da morte!

José Marques disse isto batendo-lhe com a mão no ombro, e rindo do ar acanhado de Germano, que não sabia se havia de olhar para ele, se para o chão.

- Sou amigo, não? - perguntou Marques rindo.

- Imenso!

- Um bom amigo, não é?

- Excelente.

- Amigo para as ocasiões, porque isto de fazer obséquios em circunstâncias ordinárias não é grande mérito. O mérito é fazê-los nas ocasiões graves e solenes.

- Justamente.

- Por exemplo, esta. Vi-te de longe triste e cabisbaixo; entrei; soube que a causa da tua tristeza era não teres comido ontem. Imediatamente acudi às duas precisões que tinhas; comer logo alguma cousa, e obter um emprego...

- É verdade, meu bom Marques - disse Germano -; vejo que ainda te lembras de mim, que apesar da minha miséria...

- Qual, miséria!

- Vejo que, embora maltrapilho...

- Maltrapilho! - exclamou José Marques inspecionando a roupa do amigo. Não estás finamente vestido, mas... mas precisas de mudar isso... é verdade, precisas...

- Irei ganhar o meu primeiro mês.

- Oh! Não te apresentes assim em casa do Madureira. Chama-se Madureira o dono da casa para ondes vais. Não te apresentes assim que não te há de acreditar.

- Entretanto...

- Arranjaremos roupa; não se há de perder a viagem por falta de uma vela latina...

José Marques riu-se da graça que achou em si próprio, empregando aquela imagem náutica, e levou o amigo a uma casa de roupa, à rua do Hospício, onde lhe abriu um razoável crédito. Não se sabe o quantum; mas o novo guarda-livros não ousou ir além de uma andaina de roupa, não só porque tinha vergonha de abusar dos obséquios de José Marques, como porque, examinando casualmente um segundo paletó, viu o dono da casa menos solícito do que quando ele escolheu o primeiro. Que importa? Um paletó bastava para trinta dias; rigorosamente, sobrava.

Despedidos os dois, encaminhou-se Seixas para o beco do Cotovelo, com a roupa debaixo do braço, e a alma nadando em gratidão.

- Oh! - dizia ele consigo -. Há ainda almas generosas neste mundo! A caridade, a afeição, os bons sentimentos não fugiram dele. Nobre Marques! Não se envergonhou de apertar a mão e ajudar a um antigo companheiro de balcão, menos feliz que ele! Menos feliz, muito menos! Ele está bem; pode liquidar, se quiser, ao passo que eu não tenho para comer. O que são destinos! Deus queira que isto agora não seja simples aragem de fortuna. Farei o que puder, e é a última experiência; se falhar...

O pensamento não ousou concluir a frase.

No dia seguinte apresentou-se Seixas em casa de Madureira e tomou posse do cargo. O patrão simpatizou desde logo com o guarda-livros, ou foi talvez prevenido pela narração que José Marques lhe fizera de seus infortúnios. O certo é que o tratou com excepcional benevolência, correspondendo Seixas desde logo, e estabelecendo-se entre ambos uma amizade, que devia aproveitar mais tarde ao ex-suicida do Passeio Público.

- Então, que tal te parece o Seixas? - perguntava José Marques três dias depois a Madureira.

- Um excelente homem!

- Não é verdade?

- Excelente; ao menos por ora a impressão é esta.

- E continuará a sê-lo.

- Zeloso, cortês, inteligente...

- Verás; é uma pérola. Se não fosse eu, talvez a esta hora...

- Pobre rapaz!

- Já te contei que o salvei da morte?

- Já, já.

- Pois é verdade, se passo ali meia hora depois, era homem morto.

- Praticaste uma boa ação, Marques.

- Oh!... Não falemos nisso.

- E podes crer que ele te é grato. Ainda hoje, perguntando-lhe eu, à mesa do almoço, se te conhecia há muitos anos, falou de ti com um entusiasmo! Um ardor!...

- Sim?

- Não imaginas.

José Marques não escondeu, nem procurou fazê-lo, a boa impressão que lhe causara a notícia de Madureira. Afagou as barbas, abotoou e desabotoou o paletó, enfim expectorou este aforismo:

- A verdadeira paga do benefício é a gratidão do beneficiado.

- Não há outra - opinou Madureira -. Infelizmente, são raros os agradecidos.

- Raríssimos - confirmou José Marques -. Eu, pela minha parte, tenho visto poucos. Mas não me engano com aquele. O Seixas nunca há de esquecer de mim. Nem é fácil. Tu eras capaz de esquecer um homem que te desse a vida e o pão?

- Nunca.

- Pois!

No fim do mês Seixas foi ter com José Marques para lhe dizer que amortizara parte da dívida contraída na loja de roupa. Havendo algumas pessoas presentes, não quis ele dizer logo ao que vinha; José Marques apressou-se a chamá-lo de parte, onde lhe ouviu a boa notícia.

- Não havia pressa - observou ele.

- Convém pagar quanto antes. Todas as dívidas devem ser pagas; esta mais depressa que as outras, porque é preciso desempenhar a tua honrada palavra, e ao mesmo tempo mostrar que não lançaste a semente do benefício em terra estéril...

- Quem te diz isso, homem?

- Ainda uma vez, Marques, obrigado.

- Estás contente com o Madureira?

- Estou.

- Também ele contigo.

- Sim? Tanto melhor.

- Agora é fazeres por ser bom cavalheiro. Eu digo de ti o que devo e mereces, porque não entendo que a prova de amizade consista somente em certos benefícios. Nem só de pão vive o homem. Vive de pão e de crédito. O Madureira sabe o que és e o que vales.

- Obrigado, Marques! - disse Seixas estendendo-lhe a mão.

- Onde vais?

- Vou a casa.

- Espera um pouco...

- Se puderes dispensar-me era favor.

- Tens algum negócio urgente?

- Urgentíssimo.

Seixas saiu e dirigiu-se para o beco do Cotovelo, entrou em casa e lá ficou até o dia seguinte. Era noite; ocupou-se em apurar um assunto de que trataremos no capítulo seguinte.

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