Este conto foi originalmente publicado na Gazeta de Notícias em 30 de maio de 1887, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Ao certo, não se pode saber em que data teve Sales a sua primeira ideia. Sabe-se que, aos dezenove anos, em 1854, planeou transferir a capital do Brasil para o interior, e formulou alguma cousa a tal respeito; mas não se pode afirmar, com segurança, que tal fosse a primeira nem a segunda ideia do nosso homem. Atribuíram-lhe meia dúzia antes dessa, algumas evidentemente apócrifas, por desmentirem dos anos em flor, mas outras possíveis e engenhosas. Geralmente eram concepções vastas, brilhantes, inopináveis ou só complicadas. Cortava largo, sem poupar pano nem tesoura; e, quaisquer que fossem as objeções práticas, a imaginação estendia-lhe sempre um véu magnífico sobre o áspero e o aspérrimo. Ousaria tudo: pegaria de uma enxada ou de um cetro, se preciso fosse, para pôr qualquer ideia a caminho. Não digo cumpri-la, que é outra cousa.

Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais da ideia.

- Havemos de falar nisso outra vez - disse Melchior -; por que não vai ao nosso engenho?

Sales foi ao engenho, conversou, escreveu, calculou, fascinou o homem. Uma vez acordados na ideia, saiu o moço a propagá-la por toda a comarca; achou tímidos, achou recalcitrantes, mas foi animando a uns e persuadindo a outros. Estudou a produção da zona, comparou a real à provável, e mostrou a diferença. Vivia no meio de mapas, cotações de preços, estatísticas, livros, cartas, muitas cartas. Ao cabo de quatro meses, adoeceu; o médico achou que a moléstia era filha do excesso de trabalho cerebral, e prescreveu-lhe grandes cautelas.

Foi por esse tempo que a filha do senhor do engenho e uma irmã deste regressaram da Europa, aonde tinham ido nos meados de 1858. Es liegen einige gute Ideen in diesem Rock, dizia uma vez o alfaiate de Heine, mirando-lhe a sobrecasaca. Sales não desceria a achar semelhantes cousas numa sobrecasaca; mas, numa linda moça, por que não? Há nesta pequena algumas ideias boas, pensou ele olhando para Olegária - ou Legazinha, como se dizia no engenho. A moça era baixota, delgada, rosto alegre e bom. A influição foi recíproca e súbita. Melchior, não menos namorado do rapaz que a filha, não hesitou em casá-los; ligá-lo à família era assegurar a persistência de Sales na execução do plano.

O casamento fez-se em agosto, indo os noivos passar a lua de mel no Recife. No fim de dous meses, não voltando eles ao engenho, e acumulando-se ali uma infinidade de respostas ao questionário que Sales organizara, e muitos outros papéis e opúsculos, Melchior escreveu ao genro que viesse; Sales respondeu que sim, mas que antes disso precisava dar uma chegadinha ao Rio de Janeiro, cousa de poucas semanas, dous meses, no máximo. Melchior correu ao Recife para impedir a viagem; em último caso, prometeu que, se esperassem até maio, ele viria também. Tudo foi inútil; Sales não podia esperar; tinha isto, tinha aquilo, era indispensável.

- Se houver necessidade de apressar a volta, escreva-me; mas descanse, a boa semente frutificará. Caiu em boa terra - concluiu enfaticamente.

Ênfase não exclui sinceridade. Sales era sincero, mas uma cousa é sê-lo de espírito, outra, de vontade. A vontade estava agora na jovem consorte. Entrando no mar, esqueceu-lhe a terra; descendo à terra, olvidou as águas. A ocupação única do seu ser era amar esta moça, que ele nem sabia que existisse quando foi para o engenho do sogro cuidar do açúcar. Meteram-se na Tijuca, em casa que era juntamente ninho e fortaleza; - ninho para eles, fortaleza para os estranhos, aliás inimigos. Vinham abaixo algumas vezes - ou a passeio, ou ao teatro; visitas raras e de cartão. Durou essa reclusão oito meses. Melchior escrevia ao genro que voltasse, que era tempo; ele respondia que sim, e ia ficando; começou a responder tarde, e acabou falando de outras cousas. Um dia, o sogro mandou-lhe dizer que todos os apalavrados tinham desistido da empresa. Sales leu a carta ao pé de Legazinha, e ficou longo tempo a olhar para ela.

- Que mais? - perguntou Legazinha.

Sales afirmou a vista; acabava de descobrir-lhe um cabelinho branco. Cãs aos vinte anos! Inclinou-se, e deu no cabelo um beijo de boas-vindas. Não cuidou de outra cousa em todo o dia. Chamava-lhe "minha velha". Falava em comprar uma medalhinha de prata para guardar o cabelo, com a data, e só a abririam quando fizessem vinte e cinco anos de casados. Era uma ideia nova esse cabelo. Bem dizia ele que a moça tinha em si algumas ideias boas, como a sobrecasaca de Heine; não só as tinha boas, mas inesperadas.

Um dia, reparou Legazinha que os olhos do marido andavam dispersos no ar, ou recolhidos em si. Nos dias seguintes observou a mesma cousa. Note-se que não eram olhos de qualquer. Tinham a cor indefinível, entre castanho e ouro - grandes, luminosos e até quentes. Viviam em geral como os de toda a gente; e, para ela, como os de nenhuma pessoa, mas o fenômeno daqueles dias era novo e singular. Iam da profunda imobilidade à mobilidade súbita e quase demente. Legazinha falava-lhe, sem que ele a ouvisse; pegava-lhe dos ombros ou das mãos, e ele acordava.

- Hem? Que foi?

Legazinha a princípio ria-se.

- Este meu marido! Este meu marido! Onde anda você?

Sales ria também, levantava-se, acendia um charuto, e entrava a andar e a pensar; daí a pouco mergulhava outra vez em si. O fenômeno foi-se agravando. Sales passou a escrever horas e horas; às vezes, deixava a cama, alta noite, para ir tomar alguma nota. Legazinha supôs que era o negócio dos engenhos, e disse-lho, pendurando-se graciosamente do ombro:

- Os engenhos? - repetiu ele. E voltando a si: - Ah! Os engenhos...

Legazinha temia algum transtorno mental, e procurava distraí-lo. Já saíam a visitas, recebiam outras; Sales consentiu em ir a um baile, na praia do Flamengo. Foi aí que ele teve um princípio de reputação epigramática, por uma resposta que deu distraidamente:

- Que idade terá aquela feiosa, que vai casar? - perguntou-lhe uma senhora com malignidade.

- Perto de duzentos contos - respondeu Sales.

Era um cálculo que estava fazendo; mas o dito foi tomado à má parte, andou de boca em boca, e muita gente redobrou os carinhos com um homem capaz de dizer cousas tão perversas.

Um dia, o estado dos olhos foi cedendo inteiramente da imobilidade para a mobilidade; entraram a rir, a derramarem-se-lhe pelo corpo todo, e a boca ria, as mãos riam, todo ele ria a espáduas despregadas. Não tardou, porém, o equilíbrio: Sales voltou ao ponto central, mas - ai dela! - trazia uma ideia nova.

Consistia esta em obter de cada habitante da capital uma contribuição de quarenta réis por mês - ou, anualmente, quatrocentos e oitenta réis. Em troca desta pensão tão módica, receberia o contribuinte durante a Semana Santa uma cousa que não posso dizer sem grandes refolhos de linguagem. Que ele há pessoas neste mundo que acham mais delicado comer peixe cozido, que lê-lo impresso. Pois era o pescado necessário à abstinência, que cada contribuinte receberia em casa durante a Semana Santa, a troco de quatrocentos e oitenta réis por ano. O corretor, a quem Sales confiou o plano, não o entendeu logo; mas o inventor explicou-lho.

- Nem todos pagarão só os quarenta réis; uma terça parte, para receber maior porção e melhor peixe, pagará cem réis. Quantos habitantes haverá no Rio de Janeiro? Descontando os judeus, os protestantes, os mendigos, os vagabundos, etc., contemos trezentos mil. Dous terços, ou duzentos mil, a quarenta réis, são noventa e seis contos anuais. Os cem mil restantes, a cem réis, dão cento e vinte. Total: duzentos e dezesseis contos de réis. Compreendeu agora?

- Sim, mas...

Sales explicou o resto. O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das ações, entradas, dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado, somado. Os algarismos caíam-lhe da boca, lúcidos e grossos, como uma chuva de diamantes; outros saltavam-lhe dos olhos, à guisa de lágrimas, mas lágrimas de gozo único. Eram centenas de contos, que ele sacolejava nas algibeiras, passava às mãos e atirava ao teto. Contos sobre contos; dava com eles na cara do corretor, em cheio; repelia-os de si, a pontapés; depois recolhia-os com amor. Já não eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de algarismos, que torcia todas as ideias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem.

- E as despesas? - disse este.

Estavam previstas as despesas. As do primeiro ano é que seriam grandes. A companhia teria virtualmente o privilégio da pescaria, com pessoal seu, canoas suas, estações de paróquias, carroças de distribuição, impressos, licenças, escritório, diretoria, tudo. Deduzia as despesas, e mostrava lucro positivo, claro, numeroso. Vasto negócio, vasto e humano: arrancava a população aos preços fabulosos daqueles dias de preceito.

Trataram do negócio; apalavraram algumas pessoas. Sales não olhava a despesa para pôr a ideia a caminho. Não tinha mais que o dote da mulher, uns oitenta contos, já muito cerceados; mas não olhava a nada. "São despesas produtivas", dizia a si mesmo. Era preciso escritório; alugou casa na rua da Alfândega, dando grossas luvas, e meteu lá um empregado de escrita e um porteiro fardado. Os botões da farda do porteiro eram de metal branco, e tinham, em relevo, um anzol e uma rede, emblema da companhia; na frente do boné via-se o mesmo emblema, feito de galão de prata. Essa particularidade, tão estranha ao comércio, causou algum pasmo, e recolheu boa soma de acionistas.

- Lá vai o negócio a caminho! - dizia ele à mulher, esfregando as mãos.

Legazinha padecia calada. A orelha da necessidade começava a aparecer por trás da porta; não tardaria a ver-lhe o carão chupado e lívido, e o corpo em frangalhos. O dote, capital único, ia-se indo com o necessário e o hipotético. Sales, entretanto, não parava, acudia a tudo, à praça e à imprensa, onde escreveu alguns artigos longos, muito longos, pecuniariamente longos, recheados de Cobden e Bastiat, para demonstrar que a companhia trazia nas mãos "o lábaro da liberdade".

A doença de um conselheiro de Estado fez demorar os estatutos. Sales, impaciente nos primeiros dias, entrou a conformar-se com as circunstâncias, e até a sair menos. Às vezes vestia-se para dar uma vista ao escritório; mas, apertado o colete, ruminava outra cousa e deixava-se ficar. Crendice do amor, a mulher também esperava os estatutos; rezava uma ave-maria, todas as noites, para que eles viessem, que se não demorassem muito. Vieram; ela leu, um dia de manhã, o despacho de indeferimento. Correu atônita ao marido.

- Não entendem disto - respondeu Sales, tranquilamente -. Descansa; não me abato assim com duas razões.

Legazinha enxugou os olhos.

- Vais requerer outra vez? - perguntou-lhe.

- Qual requerer!

Sales atirou a folha ao chão, levantou-se da rede em que estava, e foi à mulher; pegou-lhe nas mãos, disse-lhe que nem cem governos o fariam desfalecer. A mulher, abanando a cabeça:

- Você não acaba nada. Cansa-se à toa... No princípio tudo são prodígios; depois... Olha o negócio dos engenhos que papai me contou...

- Mas fui eu que me indeferi?

- Não foi; mas há que tempos anda você pensando em outra cousa!

- Pois sim, e digo-te...

- Não diga nada, não quero saber nada - atalhou ela.

Sales, rindo, disse-lhe que ainda havia de arrepender-se, mas que ele lhe daria um perdão "de rendas", nova espécie de perdão, mais eficaz que nenhum outro. Desfez-se do escritório e dos empregados, sem tristeza; chegou a esquecer-se de pedir luvas ao novo inquilino da casa. Pensava em cousa diferente. Cálculos passados, esperanças ainda recentes eram cousas em que parecia não haver cuidado nunca. Debruçava-se-lhe do olho luminoso uma ideia nova. Uma noite, estando em passeio com a mulher, confiou-lhe que era indispensável ir à Europa, viagem de seis meses apenas. Iriam ambos, com economia... Legazinha ficou fulminada. Em casa respondeu-lhe que nem ela iria, nem consentiria que ele fosse. Para quê? Algum novo sonho. Sales afirmou-lhe que era uma simples viagem de estudo, França, Inglaterra, Bélgica, a indústria das rendas. Uma grande fábrica de rendas; o Brasil dando malinas e bruxelas.

Não houve força que o detivesse, nem súplicas, nem lágrimas, nem ameaças de separação. As ameaças eram de boca. Melchior estava, desde muito, brigado com ambos; ela não abandonaria o marido. Sales embarcou, e não sem custo, porque amava deveras a mulher; mas era preciso, e embarcou. Em vez de seis meses, demorou-se sete; mas, em compensação, quando chegou, trazia o olhar seguro e radiante. A saudade, grande misericordiosa, fez com que a mulher esquecesse tantas desconsolações, e lhe perdoasse - tudo.

Poucos dias depois alcançou ele uma audiência do ministro do Império. Levou-lhe um plano soberbo, nada menos que arrasar os prédios do campo da Aclamação e substituí-los por edifícios públicos, de mármore. Onde está o quartel, ficaria o palácio da Assembleia Geral; na face oposta, em toda a extensão, o palácio do imperador. David cum Sibylla. Nas outras duas faces laterais ficariam os palácios dos sete ministérios, um para a Câmara Municipal e outro para o Diocesano.

- Repare V. Exa. que é toda a Constituição reunida - dizia ele rindo, para fazer rir o ministro -; falta só o Ato Adicional. As províncias que façam o mesmo.

Mas o ministro não se ria. Olhava para os planos desenrolados na mesa, feitos por um engenheiro belga, pedia explicações para dizer alguma cousa, e mais nada. Afinal disse-lhe que o governo não tinha recursos para obras tão gigantescas.

- Nem eu lhos peço - acudiu Sales -. Não preciso mais que de algumas concessões importantes. E o que não concederá o governo para ver executar este primor?

Durou seis meses esta ideia. Veio outra, que durou oito; foi um colégio, em que pôs à prova certo plano de estudos. Depois vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava alguma cousa, e o dote da mulher desapareceu. Legazinha suportou com alma as necessidades; fazia balas e compotas para manter a casa. Entre duas ideias, Sales comovia-se, pedia perdão à consorte, e tentava ajudá-la na indústria doméstica. Chegou a arranjar um emprego ínfimo, no comércio; mas a imaginação vinha muita vez arrancá-lo ao solo triste e nu para as regiões magníficas, ao som dos guizos de algarismos e do tambor da celebridade.

Assim correram os primeiros seis anos de casamento. Começando o sétimo, foi o nosso amigo acometido de uma lesão cardíaca e de uma ideia. Cuidou logo desta, que era uma máquina de guerra para destruir Humaitá; mas a doença, máquina eterna, destruiu-o primeiro a ele. Sales caiu de cama, a morte veio vindo; a mulher, desenganada, tratou de o persuadir a que se sacramentasse.

- Faço o que quiseres - respondeu ele ofegante.

Confessou-se, recebeu o viático e foi ungido. Para o fim, o aparelho eclesiástico, as cerimônias, as pessoas ajoelhadas ainda lhe deram rebate à imaginação. A ideia de fundar uma igreja, quando sarasse, encheu-lhe o semblante de uma luz extraordinária. Os olhos reviveram. Vagamente, inventou um culto, sacerdote, milhares de fiéis. Teve reminiscências de Robespierre; faria um culto deísta, com cerimônias e festas originais, risonhas como o nosso céu... Murmurava palavras pias.

- Que é? - dizia Legazinha, ao pé da cama, com uma das mãos dele presa entre as suas, exaustas de trabalho.

Sales não via nem ouvia a mulher. Via um campo vastíssimo, um grande altar ao longe, de mármore, coberto de folhagens e flores. O sol batia em cheio na congregação religiosa. Ao pé do altar via-se a si mesmo, magno sacerdote, com uma túnica de linho e cabeção de púrpura. Diante dele, ajoelhadas, milhares e milhares de criaturas humanas, com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia... distribuir...

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