Contos na Imprensa - Fase 9
Esta que se denominou aqui "nona fase" dos contos avulsos de Machado de Assis reúne treze peças, publicadas entre 1885 e 1892 na imprensa carioca.
Já há algum tempo, por iniciativa de editoras como a Jackson e a Nova Aguilar, e de indivíduos como Raimundo Magalhães Jr. (que nos anos 1950 publicou cinco volumes reunindo contos machadianos), o leitor dos séculos XX e XXI teve acesso a muitas dessas histórias. Nas edições anteriores à de 2008, a Nova Aguilar reuniu, sob o título de "Outros contos", 46 títulos. Os contos "completos" de Machado de Assis, no entanto, eram (e são) acessíveis eletronicamente, desde 2002, em www2.uol.com.br/machadodeassis, graças a uma iniciativa pioneira de Cláudio Abramo.
Em 2008, como parte das comemorações do primeiro centenário da morte do escritor, a Nova Aguilar reuniu a obra completa de Machado de Assis em quatro volumes e ofereceu ao leitor, em suporte material, todos os contos machadianos. Aqueles que não foram selecionados pelo autor para figurarem nos sete volumes de contos que publicou durante sua vida compõem o segundo e o terceiro volume dessa edição, num total de mais de mil páginas, sob o título de Contos avulsos. São 114 contos ao todo, na grande maioria, bastante extensos.
A imensidão e as dificuldades do corpus exigiram da nossa equipe uma espécie de reinvenção metodológica: distribuímos os contos por períodos, mais ou menos curtos, de modo que, a cada etapa, lidássemos com, no máximo, 15 contos. O que se publica aqui é o que chamamos "Contos avulsos - fase 9", reunindo peças publicadas em sua maioria na Gazeta de Notícias (oito), algumas em A Estação (três), uma em A Quinzena e outra em Almanaque das Fluminenses (para o ano de 1890). Todos os treze contos são assinados por Machado de Assis, que a essa altura já era autor bastante consagrado. Vale notar que, como assinala J. Galante de Sousa a respeito do conto "Terpsícore", ele fora publicado no 4º Suplemento Literário da Gazeta de Notícias, em 25 de março de 1886, assinado por Machado de Assis. Segundo o estudioso, esse número falta na coleção da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas no mesmo jornal, a 24 de março, noticia-se o suplemento seguinte e seu conteúdo. Além disso, confirmam a publicação do conto, nesse local e data, notícias de A Semana, de 27 de março de 1886, e de A Quinzena, (Vassouras, RJ), de 1º de abril de 1886.
Assim como em outras coletâneas, inclusive nas organizadas pelo próprio autor, não há aqui unidade temática, nem mesmo unidade estilística. Mas é como se pairasse sobre eles certa intratextualidade, conceito desenvolvido no livro Paródia, paráfrase e Cia, de Affonso Romano Sant'Anna. A intratextualidade é uma intertextualidade dentro da própria obra de um escritor. Dessa forma, temas como o contraste entre ficção e realidade ("Curta história"), a distância entre ambição e talento ("Sales" e "Habilidoso"), o efeito da retórica na persuasão para teorias filosóficas estapafúrdias ("Só"), entre outros, aparecerão aqui nesta reunião, mas, certamente, já aparecerem em outros momentos na ficção machadiana.
Neste grupo, não só temas se retomam, mas retomam-se, sobretudo, certos tipos. O conto "Dona Jucunda", por exemplo, apresenta uma personagem forte, vaidosa e ambiciosa, a ponto de sacrificar as relações familiares para conseguir o status desejado: "Jucunda tornou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance.". Lembra outros tipos femininos como a Sofia de Quincas Borba, romance que é publicado em livro no ano de 1891, mas que começa a sair primeiro na forma de folhetim em A Estação, no ano de 1886. A altivez resultante da ascensão social faz com que ambas rejeitem todas as lembranças das origens humildes. O que Jucunda faz com sua irmã é semelhante ao que a outra fizera, quatro anos antes, no romance:
Foi assim que a nossa amiga [Sofia], pouco a pouco, espanou a atmosfera. Cortou as relações antigas, familiares,[...]; e uma por uma se foram indo as pobres criaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de pagodes caseiros, de hábitos singelos e sem elevação.
A intratextualidade se estabelece também entre os contos deste grupo. Pode-se aproximar "Sales" a "Habilidoso". Ambos têm personagens que se consideram talentosos, com ideias brilhantes (no caso de "Sales") e aptidão artística (no caso de "Habilidoso"), e tentam provar isso ao mundo de maneira pouco humilde. O primeiro, gastando todo o dinheiro da mulher em planos mirabolantes, de pouca duração e muito investimento: "Durou seis meses esta ideia. Veio outra, que durou oito; foi um colégio, em que pôs à prova certo plano de estudos. Depois vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava alguma cousa, e o dote da mulher desapareceu". O segundo tinha verdadeira habilidade para a pintura; dispensava, porém, as lições da academia, acreditando na pureza e na naturalidade de seu talento, o que acaba resultando em anonimato, não lhe restando mais que a admiração de alguns meninos num beco carioca: "Ele, o eterno João Maria, não volta o rosto para os pequenos, finge que os não vê, mas sente-os ali, percebe e saboreia a admiração. Uma ou outra palavra que lhe chega aos ouvidos faz-lhe bem, muito bem."
Há neste grupo um conto ambientado na civilização egípcia antiga, "Identidade", que conta a história de dois homens idênticos, que trocam de lugar para viver um a vida do outro. O enredo lembra uma história de sucesso, publicada alguns anos antes na América do Norte por Mark Twain, O príncipe e o pobre, lançado em 1881 no Canadá, e em 1882 nos Estados Unidos da América. A peça de Machado data de 1887, o que nos leva a especular se, por acaso, teria ele conhecido a história de Twain, ou se, por uma dessas coincidências que frequentemente ocorrem em arte, o nosso autor apenas nos oferece, pouco depois do norte-americano, a sua versão de um dos topoi recorrentes da literatura universal.
A leveza irônica de Machado permeia boa parte dos contos do grupo. O autor nos proporciona histórias deliciosas, baseadas na esperteza de certas personagens, é quase uma coletânea sobre o "jeitinho brasileiro". Não chega a apresentar essa esperteza como louvável, mas também não a condena de modo explícito e moralizador, deixando ao leitor a opção do riso e até do autoquestionamento do quanto esse riso é aceitável moralmente. Como um bom moralista, à La Rochefoucauld ou à La Bruyère.
A quem se deleita nas citações e alusões literárias, há pelo menos dois contos encharcados dessa característica machadiana: "Só", que já nas primeiras linhas faz referência a Edgar Allan Poe, Dante, Verdi, Bellini e à Bíblia; em "Viagem à roda de mim mesmo", Machado é tão intertextual, que chega a confundir a origem de uma das citações, atribuindo versos de Bernardim Ribeiro, a Luís de Camões, ambos clássicos renascentistas.
Uma das particularidades deste corpus é a presença de "Casa velha", um conto maior que todos os do autor, que poderia até ser chamado de novela. Essa peça, publicada em A Estação entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886 havia passado despercebida até a década de 1930, quando Lúcia Miguel Pereira a resgatou do esquecimento a que a relegara o próprio autor, que jamais a incluiu em suas publicações em livro. Décadas mais tarde, John Gledson escreveu seus primeiros textos sobre a obra de Machado, dando atenção especial a essa peça, chamada pelo crítico de "romancinho". Para Gledson, "Casa velha" é um marco na obra do escritor e aborda questões sociais, tratadas em outros romances considerados mais importantes, como as relações de favor, a paixão dos jovens ricos por um "agregado" da família e a possibilidade de ascensão social através desse consórcio, e como isso representaria disfarçadamente questões políticas importantes, referentes à sociedade brasileira: "Casa Velha é um drama de família, mas que Machado utilizou com o objetivo claro de refletir realidades sociais, e também políticas [...]".
O conjunto de contos aqui reunidos revela ao leitor contemporâneo um autor já no pleno domínio de seu meio de expressão, algumas das peças alcançando o mesmo nível de qualidade das melhores produções do escritor.
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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas, sempre que possível, com as edições digitalizadas dos periódicos em que os contos foram publicados, disponíveis no acervo da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional.
Tal cotejo se revelou fundamental, na medida em que as edições existentes apresentam às vezes diferenças em relação à publicação original, com "atualizações" equivocadas. É o que ocorre, por exemplo, com o verbo "concertar" ("harmonizar", "ajeitar"), frequentemente modificado para "consertar" ("reparar algo quebrado, rasgado, danificado"). Disto procurou-se dar conta em links, que, nesta edição - o leitor notará - não se restringem às citações e alusões histórico-literárias e à toponímia, tratando de casos mais propriamente linguístico-filológicos.
Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "abotoar", no sentido de "começar a ser visto ou percebido; aparecer, surgir"; "cópia", referindo-se a "abundância", "grande quantidade" ou ainda "familiares", designando "pessoas próximas, não necessariamente da família". Expressões hoje em desuso foram igualmente anotadas: "Tinha proposto casamento à capucha", significando "em segredo".
Exemplo interessante de "erro" machadiano comumente corrigido em edições posteriores, a flexão nominal do advérbio foi aqui mantida: "meia punida ", "meia esquisita". Outra peculiaridade da escrita machadiana que foi mantida é o emprego do artigo em "Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos"; "tomar notas de toda a parte"; "se toda a gente a tratava de um modo afetuoso"; "em todo o caso, peço-lhe segredo" - uso ainda frequente em Portugal, mas não no Brasil.
Buscou-se sempre a maior proximidade possível com a publicação original, o que nem sempre tem sido a política de edições posteriores, que tendem a "padronizar" o texto machadiano. Aqui, respeitaram-se todas as oscilações como entre "até o" e "até ao"; "cousa" e "coisa"; "dous" e "dois". Mantiveram-se com a grafia registrada no original palavras que, embora hoje se escrevam de modo diferente, ainda existem nos melhores dicionários na grafia habitual no século XIX, como "doudo".
Foi feita uma atualização ortográfica. Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Ginásio Dramático", "Câmara dos deputados", "Capela Imperial", "Hospício de Jerusalém". Quanto às palavras estrangeiras, manteve-se a forma usada nas publicações originais: "whist", "coupé", "boudoir".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Manteve-se a vírgula antes de "e" que introduz sujeito idêntico ao da oração anterior: "Respirei afoito, e marchei,". Preservou-se a oscilação entre uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "O resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha tê-lo."; mas: "Os autos foram entregues ao conselho e nós saímos da sala." Manteve-se igualmente a alternância entre o emprego e o não emprego de vírgula antes de oração subordinada consecutiva: "mas entrei tão envergonhado que simulei uma doença, [...]"; mas "Ia tanto para a moça, que era já como se fosse minha irmã".
Nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu com vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e com falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz. Procedeu-se de igual modo nos casos de orações subordinadas reduzidas de gerúndio, e, ainda, nas orações em que há uma inversão na ordem sintática habitual da frase. Foram mantidas todas as vírgulas que, embora incorretas do ponto de vista das regras contemporâneas de pontuação, parecem ser deliberadas marcas de oralidade.
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado parágrafo e travessão, salvo quando o autor insere a fala de personagens no meio do discurso do narrador, como no conto "Identidade":
"Joias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do Egito, outras da Etiópia; mas a melhor joia de todas, a melhor alcatifa, o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr."
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, bem como na elaboração de algumas notas, a de Laíza Verçosa do Nascimento e Maira Moreira de Moura, atuais bolsistas de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.