II
Rui de Leão voltou ao lugar onde se achava enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o, tirou-lhe a tampa e examinou atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo, com seus reflexos azuis quando recebia os raios do sol.
A porção não era muita, nem para o fim proposto era preciso mais.
O cheiro do líquido era uma mistura de almíscar e canela.
O esposo de Nanavi enterrou o vaso e sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.
Não se pode saber que tempo gastou Rui de Leão nas profundas reflexões em que se mergulhou o seu espírito. Apenas sabemos que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
- Ilusão! - exclamou ele -; isto é impossível. Por que motivo não vi logo que o pajé era vítima de um sonho, ou desejava impor a sua privança com Tupã? Imortalidade! Só Deus poderia dá-la, mas esse não a dá com certeza: a verdade é esta. Eia, Rui de Leão, evoca o teu bom senso; não sejas tamaio em tudo. O pajé podia iludir aos outros, mas a mim!...
Levantou-se, deu dous passos e parou contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso vaso.
- E contudo - disse ele - era tão bom possuir a imortalidade! Ver correr os séculos uns após outros; ver passar as gerações; ver o nascimento e a queda dos impérios, e ficar sobranceiro a tudo; zombar do tempo e dos homens!... Oh! Seria uma grande ventura, e se realmente o elixir do pajé...
Ouviu uns passos. Era Nanavi.
- Pensas no teu país? - perguntou a indígena.
- O meu país é o teu, Nanavi; a minha pátria é o teu amor. Que teria eu lá mais do que tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se a mesma terra; respira-se o mesmo ar. Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma morte.
Nanavi lançou os braços à roda do pescoço de Rui de Leão; este beijou-a ternamente na testa.
- Andas pensativo... Que tens?
- Nada; saudades do pajé.
- Pobre pai!
Rui de Leão sentou-se sobre uma pedra.
- Era um grande homem teu pai - disse ele.
- Era um sábio.
- Sim, era.
- Ninguém melhor do que ele - continuou Nanavi - sabia ler no céu, nem combinar as raízes da terra.
Rui estremeceu.
- Que tens?
- Nada. Teu pai conhecia as virtudes das raízes?
- Quem as não conhece entre os filhos de Tupã?
- Tens razão.
- Meu pai era mais sábio que todos os outros; mas não o dizia a ninguém.
Rui de Leão ficou pensativo.
"Quem sabe", dizia ele consigo, "quem sabe se o pajé não combinou este elixir por meios secretos, e modestamente o atribuiu a origem divina?"
Não sem admirar a modéstia do pajé, Rui de Leão demorou-se nesta ideia e concluiu que, em todo o caso, não sendo provável que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se não lhe desse a imortalidade, também lhe não daria a morte.
Dous meses depois veio à luz um amável pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.
Segundo o uso, Rui de Leão meteu-se na cama, tomou os caldos, recebeu as visitas, ao passo que a mulher foi cuidar dos arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Rui, não porque ele carecesse dos seus serviços médicos, mas porque era conversador e alegre nas horas de bom humor.
Numa das ocasiões, disse-lhe que havia chegado àquela região um padre da nação de Rui, homem apessoado e de falas de mel.
- Onde está? - perguntou Rui.
- Anda perto; foi visto na foz do rio.
Daí a dias apareceu efetivamente o padre Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que havia ali um homem seu compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.
O frade Norberto falou de Portugal e da família de Rui. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de um primo que fora meter uma lança em África.
- Pouco me importa saber, frade Norberto, do que vai lá pela minha família, nem se são vivos ou mortos. Hoje a minha família é Nanavi e meu filho.
Justamente nessa ocasião acordou o pecurrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da indígena com o europeu; e disse ao fidalgo:
- Vamos batizá-lo?
- Não.
- Pois quê! Não quer?
- Não.
- Meu Deus! - continuou o frade Norberto - Será isso possível! Dir-se-á que estes gentios, nascidos e criados sem a luz da fé, são mais fáceis de converter que V. Mercê, nascido e criado no seio da Igreja.
O argumento não tinha resposta; por isso mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno frade ouviu-o silencioso.
Quando o fidalgo acabou disse o frade:
- Peço a Deus que não faça cair sobre V. Mercê a justa pena deste ato...
E saiu.
Logo nessa noite, teve Rui de Leão uma intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma raiz, nenhuma folha pôde abrandar o mal do pobre Rui. Esgotou-se a farmacopéia do deserto; a doença tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta luta entre a natureza e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o último remédio não produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.
Rui não sabia que já estava condenado, mas suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto; contemplou o filho, apenas nascido, a mulher ainda no viço dos anos. Todas estas cousas juntas fizeram com que Rui reunisse todas as suas forças (que bem poucas eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.
Fê-lo a muito custo; logo à porta da cabana teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem despertar ninguém. Caminhou lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.
No dia seguinte amanheceu melhor. Os parentes de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro ilustre, ficaram agradavelmente surpresos quando viram a rápida melhora que naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.
Restabeleceu-se Rui de Leão da moléstia, e grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era realmente a luz daquela gente e o melhor conselho dos casos difíceis.
Certeza de que estava imortal, não a tinha ainda Rui de Leão; mas certeza de que o elixir curasse febres teimosas, essa adquiriu logo. "Esperemos o resto", dizia ele consigo.
E esperou.
Não tardou que se admirasse toda a gente daquelas paragens da robustez crescente de Rui de Leão; era o segundo efeito do elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, cousa que sumamente agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.
Com os anos cresceram as esperanças de Rui. O tempo nenhuma ação tinha nele; não só os poucos cabelos que tinha continuaram a ficar pretos, senão que lhe nasceram outros, e dentro em pouco tempo tinha o homem uma verdadeira floresta na cabeça, a qual floresta, atenta a falta de pentes no sertão, era uma verdadeira floresta virgem. Nenhuma ruga lhe afeiou o rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.
Tinha Rui sessenta anos e era o mesmo homem dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Rui adquiriu a plena certeza de que tinha vencido a morte.
Não aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que, andando um dia a colher frutas no mato, recebeu em cima da cabeça um tronco que a levou desta para a melhor. Ficou a criança, rapazote de largas esperanças, único fruto dos amores de Rui e Nanavi.
Como o frade Norberto continuasse em missão, encontrou-o um dia o nosso neotamaio e travou conversa com ele.
Sem descobrir o segredo do pajé, disse-lhe que tinha meios de fazer uma conversão em larga escala durante longos decorreres de anos; que para isso ajudaria com dedicação os frades da companhia não somente com as luzes que tinha da língua do Brasil como também pela autoridade moral que adquirira entre os índios; finalmente que por prova de que servia sinceramente a Igreja, dava a batizar o filho de Nanavi.
- De boa razão é vosso procedimento, Sr. Rui de Leão, e eu estou que a fé colherá grande proveito com o auxílio de vossa pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora, além de injustiça, erro grosseiro, porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao inocente filho que nos dais para batizar e iniciar na fé. Onde está a mãe?
- A mãe morreu.
- Culpa vossa, Sr. Rui de Leão; perdeu-se uma alma pela obstinação com que V. Mcê se houve...
- Estou arrependido, padre Norberto - disse Rui ajoelhando aos pés do frade.
Foi batizado o pequeno e iniciado nos preceitos da fé cristã, ao passo que o pai, incumbido de arrebanhar a gentilidade, saiu pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e outro.
Longo tempo andou nessa missão. Colheu a Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram todos três para o asilo dos frades houve grande e piedosa festa em honra de todos e principalmente de Rui. Os frades asseveraram à porfia que a piedade do fidalgo fora exemplar e os seus esforços incessantes.
Notaram todos, porém, que, se os frades voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos, Rui estava tão sadio e robusto como fora. Maior admiração houve quando o fidalgo confessou ter mais de sessenta anos.
- Não admira - respondeu o fidalgo rindo -; eu adquiri o privilégio desta gente, que vive geralmente até os cem anos.
Ficou o nosso Rui no convento acompanhando os frades. Uma noite veio do sertão uma horda de índios, e atacou o asilo monástico com desusado vigor. A defesa foi quase nula contra os ferozes índios. Após uma luta porfiada, Rui conseguiu fazer ouvir a sua voz e acalmar os ânimos. Os índios foram embora deixando dois cadáveres dos seus. Dos frades tinham morrido dois às envenenadas flechas do inimigo. A todos admirou, porém, que Rui recebesse uma flecha nas costas, que a arrancasse, e não morresse como acontecera aos outros.
- Que mistério é esse, irmão? - perguntou-lhe um frade.
- Nenhum - respondeu Rui -; provavelmente a flecha não vinha ervada.
Correram os anos; os frades estavam substituídos à proporção que iam morrendo; e assim se chegou aos anos de 1730, sem que Rui perdesse sequer um dos traços de sua vigorosa pessoa.
Toda a gente ficava pasmada diante de semelhante prodígio. Prodígio havia decerto porque de cem anos por cima é impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Rui deixou de ter a mesma cara.
Foi em 1730 que um oficial régio, tendo sabido da maravilhosa mocidade de Rui, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a fim de apresentá-lo ao rei, que era então D. João V. Partiram.
III
É incrível que nenhuma história publicada daquele tempo mencione a chegada deste prodigioso sujeito à corte de Lisboa e dos casos que aí houve.
Rui não foi apresentado ao rei, não se sabe bem por que razão; mas andou por toda a parte; figurou nos solares da fidalguia como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de cousas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o célebre conde de São Germano em Paris ainda que este misterioso personagem não possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
Sabido é que às mulheres agrada o misterioso e o raro. Uma D. Beatriz, formosíssima fidalga daquele tempo, veio a enamorar-se do nosso Rui, que também se enamorou dela. Como a moça estivesse para casar com D. Álvaro, marquês de P..., saiu este paladino a campo e desafiou Rui por um combate singular.
Não era homem de recusar duelo o nosso Rui; aceitou o repto do fidalgo, que o não era mais que ele, e bateram-se à espada nas imediações de Lisboa.
Infelizmente o uso da flecha desabituara o viúvo de Nanavi do uso da espada. O marquês era experto jogador desta arma. O combate era desigual. Todavia, não aceitou Rui o conselho dos que lhe diziam que fizesse um estudo prévio.
Durou o duelo uns vinte minutos de angústia para os padrinhos de Rui; ao cabo desse tempo, D. Álvaro varou o nosso homem de meio a meio. Correram todos ao ferido, que imediatamente caiu no chão lavado em sangue.
- Está morto! - exclamaram todos.
- Ainda não - disse Rui -; não estou morto.
E com a própria mão estancou o sangue, enquanto um físico, adrede convidado, lhe administrou os primeiros socorros.
- Morre daqui a duas horas - disse tristemente o cirurgião aos padrinhos de Rui.
Duas horas depois, Rui aparecia nas ruas de Lisboa, com grande espanto do povo, que ouvira falar no duelo e nos resultados dele.
- Sabem que mais? - dizia o cirurgião - Aquele homem é o diabo...
Naqueles tempos de fé uma descoberta desta ordem equivalia ao exílio perpétuo do homem. Rui viu fecharem-se-lhe as portas dos palácios, as hospedarias, as casas todas enfim; e compreendeu que estava abandonado.
Ajuntou algum dinheiro que tinha, guardou na algibeira um frasco contendo o resto do elixir de imortalidade, e partiu para Espanha.
Ali deixou de dizer quem era, nem a idade que tinha; viveu desconhecido. Mas não deixou de lhe ser proveitoso o incógnito. Jogou a sorte nas casas em que isso se fazia e ganhou somas fabulosas.
- Que farei agora? - perguntava Rui a si mesmo.
Partiu para a Alemanha e dispôs-se a estudar. Com o dinheiro que tinha ganho nas tavolagens de Castela, pôde o nosso célebre Rui de Leão ocorrer às despesas do estudo.
Ao cabo de longos anos, era ele doutor em teologia, filosofia, matemáticas, direito, medicina, profundo antiquário, extremado nas ciências físicas e químicas; em suma, o doutor dos doutores, a expressão mais alta da ciência humana. Aprendeu o latim, o grego, o árabe, o armênio, o turco, o hebraico. Traduziu para várias línguas as obras de Santo Agostinho e São Tomás; fundou uma academia arqueológica e um liceu de filosofia; comentou os atos dos apóstolos, escreveu uma história dos mártires, fez descobertas arqueológicas em Roma, anunciou duas cometas e espantou toda a Europa científica não menos pela profundidade e variedade dos seus conhecimentos, como pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que presenciara.
Graças à riqueza que facilmente adquiriu, casou o nosso homem em 1770 com uma fidalga de Espanha cinco vezes marquesa e rica de mais a mais. Durou pouco o casamento; a mulher faleceu dois anos depois, e foi essa a maior dor de sua vida, posto que a morta lhe deixara uma grande riqueza nas mãos.
De novo se entregou aos estudos da ciência, com redobrado ardor. Mas apesar da admiração que o mundo científico lhe votara, apesar da espécie de infalibilidade que adquirira perante as sociedades e academias, o nosso Rui entrou a sofrer de um incurável aborrecimento. Tinha quase dois séculos e a vida já lhe pesava; o mundo não lhe oferecia espetáculo novo; a ciência perdera o prestígio do princípio: o imortal começou a desejar a morte.
Mas era tarde.
Como acharia ele a morte?
Rui recorreu ao suicídio; sabia que era um crime perante Deus e os homens; mas não tinha outro recurso. Achava-se então em Lisboa, mas como já muitos dos que o conheceram antes tinham morrido, ninguém viu nele o mesmo Rui de Leão e ele teve o cuidado de trazer nome suposto.
Ali resolveu acabar os seus dias. Foi ao Tejo e atirou-se à água, em ocasião em que não podia ser socorrido. Sabia nadar, mas não quis usar do que sabia. Debalde! O corpo voltou à tona e desceu até esbarrar num galeão, de onde foi visto e pescado.
De outra vez recorreu à faca mas o mais que conseguiu foi abrir no pescoço uma ferida que se curou rapidamente.
Era impossível morrer.
Imagine quem puder o suplício deste homem condenado a ser imortal, a ver os mesmos homens, os mesmos dias, as mesmas comédias - este Tântalo da morte, ambicionando aquilo que os outros receiam, pedindo ao céu como a suprema felicidade uma cova para dormir.
A situação é de si tão patética que eu não preciso lacrimejar o estilo; basta dizer a cousa para que ela seja compreendida.
Depois de estudar tudo e tudo ver; depois de passear pelas várias partes do mundo, sem encontrar novidade que lhe divertisse o ânimo; depois de ser assíduo espectador de tudo quanto pudesse despertar a curiosidade de um homem enfadado como, por exemplo, o homem de botas de cortiça, o boneco jogador de xadrez e outros, determinou Rui de Leão voltar ao Brasil nos princípios deste século, ali pelos anos de mil oitocentos e tantos, estando ainda cá o rei.
Efetivamente aqui aportou no Rio de Janeiro o imortal Rui. A cidade não oferecia então o aspecto que hoje tem. A rua do Ouvidor não era a via elegante da capital; nem o Rossio estava transformado no jardim que aí vemos. Eram os belos tempos de Vidigal e seus granadeiros, de cujas proezas tão habilmente falou o nosso chorado Dr. Manuel de Almeida, talento como poucos.
Rui tratou de encobrir-se o mais que pôde; entrou como verdadeiro desconhecido. Contudo a presença de um homem tão sábio e tão rico não era cousa que passasse despercebida ao povo nem à corte. Não tardou que fosse convidado para as melhores casas e os vários fidalgos de respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua mesa e na sua sala. Era parceiro obrigado no whist dos velhos fidalgos, grande par no minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a flor da boa roda.
Mas esse recreio durou pouco. No fim de dois meses voltou Rui de Leão às suas mágoas antigas.
Foi então que lhe aconteceu um caso decisivo na sua vida.
Entre as damas que mais apreciavam o saber e os dotes do ilustre Rui, havia uma D. Madalena de Sousa e Pedroiça, criatura tão notável pela graça do semblante, quanto pelas virtudes fidalgas da vida. Rui ficara sempre com um grande pendor às mulheres, o que era naturalmente um corretivo da imortalidade, porquanto ser imortal e aborrecer as mulheres seria estar no pior de todos os infernos deste mundo e do outro.
Agradou-lhe D. Madalena, mas esta, posto que o apreciasse muito, não lhe aceitou o coração. Coração repelido é o ideal da pertinácia. Rui multiplicou as suas armas galantes, a ver se colhia a esquiva dama, e esta, sempre isenta, dava de tábua às seduções do namorado.
Durou esta luta cerca de dois anos.
Uma noite, vindo recolher-se para casa o nosso Rui, surdiu-lhe em frente um sujeito e lhe disse:
- Quer saber por que razão D. Madalena lhe recusa a mão?
- Quero.
- Ama a outro.
- Impossível.
- É verdade!
O sujeito tinha a cara meia coberta com uma das abas do capote. Descobriu-se então e Rui, pedindo a lanterna ao criado que tinha com ele, pôde reconhecer ao vulto um parente de Madalena.
Passava-se esta cena nos Cajueiros, e o nosso Rui morava perto do Valongo: convidou o parente da moça para acompanhá-lo à casa.
Quando lá chegaram, tomou palavra o parente da moça, D. Martim, e disse:
- Dona Madalena ama o licenciado Álvares e quer casar com ele; o pai opõe-se ao casamento e já a ameaçou com o convento. É essa a razão por que não aceita o seu amor.
- Mas - disse Rui -, eu não sei que diabo achou ela no licenciado...
- Nem eu, mas a verdade é esta.
Rui refletiu na dificuldade de sua posição.
- Deste modo - disse ele - perco o meu tempo...
- Como eu perdi - replicou D. Martim -: também eu a amei, mas nada pude conseguir. O licenciado transtornou-lhe a cabeça. Que lhe havemos de fazer?
- Dar uma lição ao licenciado.
Dom Martim piscou o olho, via-se-lhe no rosto que ele não vinha para outra cousa.
- Como lhe daremos a lição?
- Como?
- É verdade que ele costuma a falar com a prima às escondidas...
- A horas mortas?
- Sim. Chega ao portão e ela fala de cima da janela que dá para o jardim.
- Basta.
- Qual é o seu plano? - perguntou D. Martim arranjando o capote.
- Esganá-lo.
- Mas isso é perigoso; o intendente da polícia não é de graças...
- Qual intendente - exclamou Rui -; pois eu cá vou consultar intendente para esganar um patife!
Saiu D. Martim exultando de contente, e Rui deitou-se meditando na vingança que devia tomar do rival.
Na subsequente noite não apareceu Rui de Leão em casa da família de D. Madalena, e foi esperar o licenciado no sítio indicado por D. Martim. A noite era escura, e ameaçava temporal. Rui saíra de casa sem criado nem lampião. Armou-se com uma faca, encostou-se à parede e esperou que batesse a hora da vingança.
Ao cabo de longo tempo, que é sempre longo para quem espera, Rui de Leão ouviu passos ao longe na direção do ponto em que se achava. Ao mesmo tempo abriu-se a janela de Madalena e o vulto da moça apareceu como Julieta quando esperava Romeu e a escada.
Era a hora suprema.
Coseu-se o doutor dos doutores com a parede e esperou o feliz rival que se aproximava cautelosamente. Mal o pobre namorado soltava as primeiras palavras, saltou-lhe acima o fidalgo e enterrou-lhe no estômago uma comprida faca. O licenciado apenas deu um gemido e tentou murmurar o nome de Madalena. Caiu. Rui afastou-se rapidamente do teatro do crime.
No dia seguinte de manhã apareceu a polícia, levantou o cadáver, fez-lhe os exames precisos, e começou as indagações para ver donde partia o crime.
A primeira suspeita recaiu sobre o pai de Madalena, cuja oposição ao licenciado era conhecida; mas o pai, vendo contra si a espada da lei, declarou que talvez fosse antes o crime praticado por um indivíduo que igualmente pretendia Madalena, homem de boa presença, formado em várias matérias e conhecido em toda a cidade.
Houve da parte do intendente tão virtuosa repulsa ao ouvir tão negra suspeita, que o nosso Rui se lha visse, devia votar-lhe eterna gratidão.
Todavia, como a justiça não podia deixar de averiguar tudo, mandou-se chamar Rui de Leão, que apenas chegou negou o crime. Entretanto deu-se-lhe busca em casa, e achou-se-lhe a faca ensanguentada, que por um incrível descuido Rui esquecera de lavar ou deitar fora. Interrogada a criadagem, confessou que o amo saíra de casa à noite, sem escudeiro, embuçado num capote e escondendo alguma cousa.
Todos os indícios eram contra o assassino.
A justiça d'el-rei tomou conta do réu; abriu-se processo em regra e ao cabo de algum tempo foi condenado Rui de Leão a morrer de morte natural na forca.
Madalena, que até então estimara a prisão e o processo do réu, teve pena dele quando soube que ia morrer enforcado.
Não deixara de lembrar-se que a causa daquele crime era ela. Rui aparecia aos olhos da moça com um aspecto tão interessante que ela lhe daria a mão de esposa se tanto fosse preciso para livrá-lo da forca.
Pobre licenciado!...
Marcado o dia para a execução, levantou-se no largo de Moura a forca, e o cortejo saiu da cadeia com o juiz, o padre, o carrasco e o pregoeiro. Troava a campa à frente, lia o pregoeiro a sentença da Relação em cada esquina, e lá ia o nosso Rui recebendo do sacerdote as consolações que o carrasco lhe não podia dar.
Grande número de povo enchia o largo da execução, mas quem pensa o leitor que estava entre os espectadores? Dom Martim, mais pálido que a morte, vítima do remorso e da curiosidade, causa indireta do crime e da desgraça. Queria ele ouvir as últimas palavras do condenado, de que receava alguma revelação relativa à sua pessoa.
Subiu Rui as escadas da forca, colocou-se em posição conveniente, abriu a boca para fazer um discurso, mas os tambores cobriram a voz do orador.
Imediatamente entrou o carrasco nas honrosas funções que a lei lhe conferia em nome do evangelho, e o corpo de Rui de Leão ficou pendente da forca.
A pouco e pouco foi saindo o povo aterrado com o espetáculo; e em todas as boticas e casas de barbeiro da cidade foi comentado o crime do defunto.
Quando veio a noite foi o carrasco tirar da forca o cadáver do réu acompanhado do respectivo ajudante. Cortou a corda e o corpo foi à terra.
- Ai! - disse Rui, - atordoado com a queda.
- Que foi? - perguntou o carrasco ajudante.
- Não sei; foi um gemido de cão.
Aproximaram-se do corpo; mas qual não foi o seu espanto? Rui desatava tranquilamente o laço da corda e dizia:
- Levem-me a uma hospedaria que tenho fome.
O carrasco e o ajudante não ouviram mais do que a palavra - levem-me -; viram o gesto de Rui e deitaram a correr. Toda a cidade ficou em alarma. Só se falava do enforcado que ressuscitara.
- Estava inocente! - gritavam uns.
- É um santo! - diziam outros.
Entretanto o ex-enforcado procurou tranquilamente cousa que comesse e cama em que dormisse.