Conto

Rui de Leão

1872

Rui de Leão *

Capítulo primeiro

Consta de crônicas inéditas e secretas que, ali pelos anos de 1630, vivia no interior do Brasil um fidalgo chamado Rui de Leão, varão de boas prendas, extremado na língua do país e aparentado com uma família tamaia, por ter casado com uma das suas mais belas filhas.

Rui de Leão contava nesse tempo cerca de quarenta anos. Era robusto, corado, ativo, tão enérgico na alma como no corpo. Tinha no rosto uns longes de melancolia que se dissipavam muita vez sem que de todo se extinguissem. Parece que a causa dessa desconhecida tristeza prendia com os infortúnios que sofrera em Portugal, e que o trouxeram ao Brasil em um dos régios galeões. O certo é que o nosso fidalgo, esquecendo totalmente a grandeza da sua raça, não duvidou em unir-se pelos laços do matrimônio à filha de um velho pajé.

Matrimônio, digo eu, unicamente para usar de um termo corrente; mas a verdade é que não se deve ligar a esta palavra a ideia cristã que lhe damos. O matrimônio do fidalgo consistiu nas cerimônias indígenas. Debalde o padre Pires tentou converter a esposa do fidalgo e santificar a união. Rui de Leão respondia que, de ora em diante, era tamaio, pois que sua mulher o era, e mandou embora o padre.

Tamaio ficou o nosso fidalgo, menos no traje, que o conservou civilizado e português. Mas até isso veio a perder daí a poucos anos, por conselho do pajé, que um dia lhe disse:

- Carão branco, tu és a nossa lua, tu és o nosso irmão, mas só uma cousa te falta. O caju é igual ao caju; o coco é igual ao coco; só tu, carão branco, em vez de seres igual a todos nós, usas de umas roupas semelhantes às dos nossos inimigos. Por que recusas vestir como nós as plumas da arara e as cores do jenipapo?

- Pajé - respondeu Rui de Leão -, a pele do carão branco não está afeita ao clima do teu país.

O pajé sorriu, contemplou o céu, inseriu o dedo mínimo no canto do olho esquerdo e ejaculou resposta filosófica:

- A água bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza.

Rui de Leão estremeceu ouvindo estas palavras na boca do pajé; não lhe parecia que ele as tirasse do seu cérebro. O sogro entristeceu, insistiu no pedido, e Rui de Leão depois de meia hora de conferência cedeu, e despediu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.

Grande foi a festa que seguiu à encarnação do fidalgo no vestuário do deserto.

Nanavi, sua esposa, fez um esplêndido cocar de plumas com que ele se adornou garridamente.

Entre Rui de Leão e Júlio César nenhum ponto de contato havia; mas uma circunstância ligava estes dous grandes homens: eram ambos calvos como a ocasião.

Imaginem o prazer com que o fidalgo recebeu o cocar; foi por assim dizer a sua coroa de louros cesariana. Na tarde desse famoso dia houve reunião na cabana do pajé.

Peitos de papagaio, costeletas de tatu, e outras viandas saborosas serviram de pasto aos convivas. Quando o sol começou a ficar triste, todos os convivas entraram a bailar, e bailaram até que o cansaço e o vinho os prostraram no mais profundo sono.

Extrema era a confiança da tribo no fidalgo, que logo se habituou aos mais duros exercícios.

Não havia guerra em que não colhesse imarcescíveis louros, nem matança de vítima a que não levasse um par de famintos queixos.

A primeira vez que figurou numa destas festas, era a vítima um galhardo mancebo indígena, que, segundo o uso, fora engordado previamente por uma velha de seus oitenta janeiros bem puxados.

Convocou-se toda a gente da vizinhança, e Rui de Leão teve a glória de ser escolhido para dar o golpe mortal no rapaz.

Não se pode descrever a alegria do fidalgo, quando lhe foi conferida essa honra suprema.

Quando ele apareceu à porta da cabana com a maça mortífera em punho, e o colar de dentes humanos ao pescoço (ordem honorífica daqueles povos bárbaros), houve um geral murmúrio de admiração.

A única cousa com que os filhos do deserto embirraram foi com o nariz de Rui de Leão, nariz cristianíssimo, verdadeiro contraste com os narizes da gentilidade.

Rezam as crônicas que esta diferença nasal esteve a ponto de provocar um levantamento no povo; mas a influência do pajé e a presença da graciosa Nanavi mataram em flor todo o projeto de insurreição.

Bizarro entrou na praça o nosso Rui de Leão, e logo se encaminhou para a espécie de palanque onde a vítima devia ser imolada.

Imediatamente apareceu o condenado tirado por dois robustos rapazes, e rodeado por uma meia dúzia de velhos tocando nos seus alguidares, ao passo que uma orquestra executava em tíbias humanas ásperas variações dos Rossinis do tempo.

Rui de Leão levantou a maça e começou a atordoar a vítima levemente, no meio dos aplausos da multidão, até que, com um golpe em cheio, lhe reduziu o crânio a migalhas.

Houve então a repartição da carne da vítima.

Rui de Leão obteve larga parte e é fama que lhe achou melhor gosto do que outrora nos guisados da civilização.

Tais foram as grandes estreias antropófagas de Rui de Leão, que nos outros exercícios desbancava ao mais pintado.

Apanhar um papagaio no ar com a flecha ou um peixe no rio; atirar ao arco com pés e mãos, tudo isso nada era para o nosso fidalgo.

Como os tamaios eram amigos de vagamundear, depressa o nosso Rui de Leão perdeu o gosto de fazer ninho, tão pronunciado nos povos civilizados, e era de ver a presteza com que ele construía e desfazia sua cabana.

A tudo se afez o esposo de Nanavi. Entretanto é difícil que um homem civilizado perca de todo a sua tendência propagandista.

Rui de Leão, posto que achasse bons os costumes do deserto, teve ideia de introduzir neles alguns usos da Europa.

Inúteis foram os seus esforços.

Os índios recusaram toda inovação política ou social nos seus hábitos.

Rui de Leão ficou com a sua vontade.

Aqui temos pois o nosso herói, na época em que começa esta história, provada em documentos de incontestável autenticidade.

Justamente no ano de 1630, dous séculos antes da revolução do campo da Aclamação, estava Rui de Leão conversando com o pajé, a respeito das últimas águas, quando Nanavi apareceu à porta da cabana, e comunicou ao esposo a agradável notícia de que dentro de pouco tempo seria pai.

Rui de Leão ardia por ver algum fruto da sua união com a tamaia.

Levantou-se e exclamou:

- Ainda bem, Nanavi: a mangueira não ficou estéril.

- Não - respondeu a índia.

- Bem-vinda seja essa criança, que há de receber a herança de seu pai e a bênção de seu avô.

- Ai, não! - exclamou o pajé -. Quando teu filho aparecer no mundo, já eu estarei morto.

O pajé disse estas palavras com tom profético.

Rui de Leão estremeceu e involuntariamente procurou as algibeiras dos calções, que já não usava, para meter-lhe as mãos dentro. Nanavi entrou a chorar.

O pajé consolou a família com uma dissertação filosófica a respeito da morte; comparou a vida à luz fugaz do pirilampo: comparação de que os poetas começaram a usar mais tarde; e concluiu pedindo alguma cousa que comer.

Adivinhara o pajé. Dous meses antes de vir à luz o rebentão da ilustre raça dos Ruis de Leão, o pajé adoeceu gravemente.

Chamaram-se os físicos da localidade. Era um deles o ilustre Urumbeba, profundo conhecedor do corpo humano e seus achaques; e o outro o não menos ilustre Mandijbiyuruçu, versado no conhecimento das plantas e raízes.

Entraram estas duas glórias da Academia do sertão com a gravidade própria do caso.

Examinaram o enfermo, e declararam que era necessária uma conferência entre si, pelo que se retiraram as mais pessoas.

Quando os dous físicos ficaram sós, rompeu o silêncio Urumbeba:

- O rio está crescendo muito - disse ele.

- Já reparei nisso; parece que alagará tudo como na lua passada.

- Além disso eu tive um sonho.

- Ah!

- Sonhei que uma cobra imensa, desenvolvendo-se pela terra, enrolara a tribo toda.

- Uma cobra?

Urumbeba percebeu que o colega não atinava com o sentido do sonho.

- Sim, uma cobra - disse Urumbeba -; e essa cobra é a imagem do rio que nos cercará a todos nós.

Mandijbiyuruçu ficou muito assustado com o sonho de Urumbeba, e concordou na necessidade de levantar as tendas.

Conversaram largamente nesse assunto até que, passada uma hora, um gemido do pajé veio lembrar-lhes o objeto principal da conferência.

Na opinião de Urumbeba o doente devia tomar um cozimento de aipim, dado em quatro porções de uma cuia cada uma; ao passo que Mandijbiyuruçu optou por uma aplicação de inimboia cozida e dada em duas partes com fomentações de caataia.

Divididas as opiniões, foi necessário que as discutissem.

Mas o doente piorara, e Rui de Leão veio dizer aos médicos que o pajé estava mal.

Foram os médicos ter com o enfermo e conheceram que era chegada a última hora; mas como o pajé padecia muito, resolveram que o melhor remédio era dar-lhe uma cacetada na cabeça - extrema-unção daqueles povos incultos.

O pajé compreendeu a situação e pediu para falar particularmente ao genro.

Quando se acharam sós, disse o pajé:

- Quero dar-te um presente, o melhor presente que um mortal pode dar a outro, porque o recebi eu mesmo das mãos de Tupã.

Rui de Leão arregalou os olhos.

- Eu tenho ainda vida até o sol que vem. Quando vier a noite sairemos ao terreiro; quero ir contigo a um lugar secreto.

Prometeu Rui de Leão acudir ao convite do pajé. Efetivamente, quando veio a noite, saiu o pajé encostado ao genro, e a seis ou sete passos da cabana, mandou o pajé que Rui de Leão cavasse certo montículo de terra. Cavou o fidalgo, e não tardou que aparecesse um vaso hermeticamente tapado.

- Isto - disse o pajé - é um segredo que me acompanha sempre. Quando me mudo de um lugar para outro, levo o vaso comigo e enterro-o atrás da cabana.

Rui de Leão contemplava o vaso, sem poder adivinhar o que continha.

Veio em auxílio dele o pajé.

- Era uma noite em que eu, não podendo dormir, fui sentar-me à beira do mar contemplando as estrelas. Estava ali já havia muito tempo, quando me apareceu um vulto cheio de luz e me disse: "Pajé, queres que eu te dê a imortalidade?" "Quero", respondi eu, beijando a terra. "Toma este vaso; aqui tens um licor que te dará a imortalidade; bebe-o quando quiseres, serás imortal".

Rui de Leão teve um momento generoso.

- Ah! - disse ele -. Bebe depressa.

O pajé empurrou levemente o genro.

- Não! Se eu quisesse ser imortal, não o teria já bebido? Aceitei o licor com alegria e guardei-o para beber mais tarde. Profundos desgostos me amarguraram a vida; não quero ser imortal. Tu sim; és feliz; podes ser imortal. Dou-to; é para ti. Mas agora enterra o vaso; ninguém deve saber disto.

Rui de Leão enterrou o vaso.

A noite estava escura; uma coruja piou em cima de uma árvore; o pio da coruja e o murmurar do rio eram os únicos sons que se ouviam. Quando Rui de Leão se levantou, viu que o pajé tremia, segurou-o para não cair. Era tarde; o pajé expirou.

Grande foi a dor de Nanavi, quando soube da morte do pai. A cerimônia fúnebre impressionou a todos, porque a palavra do pajé era respeitada e adorada, e todos sabiam que se perdia nele uma glória da raça tamaia.

II

Rui de Leão voltou ao lugar onde se achava enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o, tirou-lhe a tampa e examinou atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo, com seus reflexos azuis quando recebia os raios do sol.

A porção não era muita, nem para o fim proposto era preciso mais.

O cheiro do líquido era uma mistura de almíscar e canela.

O esposo de Nanavi enterrou o vaso e sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.

Não se pode saber que tempo gastou Rui de Leão nas profundas reflexões em que se mergulhou o seu espírito. Apenas sabemos que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.

- Ilusão! - exclamou ele -; isto é impossível. Por que motivo não vi logo que o pajé era vítima de um sonho, ou desejava impor a sua privança com Tupã? Imortalidade! Só Deus poderia dá-la, mas esse não a dá com certeza: a verdade é esta. Eia, Rui de Leão, evoca o teu bom senso; não sejas tamaio em tudo. O pajé podia iludir aos outros, mas a mim!...

Levantou-se, deu dous passos e parou contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso vaso.

- E contudo - disse ele - era tão bom possuir a imortalidade! Ver correr os séculos uns após outros; ver passar as gerações; ver o nascimento e a queda dos impérios, e ficar sobranceiro a tudo; zombar do tempo e dos homens!... Oh! Seria uma grande ventura, e se realmente o elixir do pajé...

Ouviu uns passos. Era Nanavi.

- Pensas no teu país? - perguntou a indígena.

- O meu país é o teu, Nanavi; a minha pátria é o teu amor. Que teria eu lá mais do que tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se a mesma terra; respira-se o mesmo ar. Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma morte.

Nanavi lançou os braços à roda do pescoço de Rui de Leão; este beijou-a ternamente na testa.

- Andas pensativo... Que tens?

- Nada; saudades do pajé.

- Pobre pai!

Rui de Leão sentou-se sobre uma pedra.

- Era um grande homem teu pai - disse ele.

- Era um sábio.

- Sim, era.

- Ninguém melhor do que ele - continuou Nanavi - sabia ler no céu, nem combinar as raízes da terra.

Rui estremeceu.

- Que tens?

- Nada. Teu pai conhecia as virtudes das raízes?

- Quem as não conhece entre os filhos de Tupã?

- Tens razão.

- Meu pai era mais sábio que todos os outros; mas não o dizia a ninguém.

Rui de Leão ficou pensativo.

"Quem sabe", dizia ele consigo, "quem sabe se o pajé não combinou este elixir por meios secretos, e modestamente o atribuiu a origem divina?"

Não sem admirar a modéstia do pajé, Rui de Leão demorou-se nesta ideia e concluiu que, em todo o caso, não sendo provável que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se não lhe desse a imortalidade, também lhe não daria a morte.

Dous meses depois veio à luz um amável pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.

Segundo o uso, Rui de Leão meteu-se na cama, tomou os caldos, recebeu as visitas, ao passo que a mulher foi cuidar dos arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Rui, não porque ele carecesse dos seus serviços médicos, mas porque era conversador e alegre nas horas de bom humor.

Numa das ocasiões, disse-lhe que havia chegado àquela região um padre da nação de Rui, homem apessoado e de falas de mel.

- Onde está? - perguntou Rui.

- Anda perto; foi visto na foz do rio.

Daí a dias apareceu efetivamente o padre Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que havia ali um homem seu compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.

O frade Norberto falou de Portugal e da família de Rui. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de um primo que fora meter uma lança em África.

- Pouco me importa saber, frade Norberto, do que vai lá pela minha família, nem se são vivos ou mortos. Hoje a minha família é Nanavi e meu filho.

Justamente nessa ocasião acordou o pecurrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da indígena com o europeu; e disse ao fidalgo:

- Vamos batizá-lo?

- Não.

- Pois quê! Não quer?

- Não.

- Meu Deus! - continuou o frade Norberto - Será isso possível! Dir-se-á que estes gentios, nascidos e criados sem a luz da fé, são mais fáceis de converter que V. Mercê, nascido e criado no seio da Igreja.

O argumento não tinha resposta; por isso mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno frade ouviu-o silencioso.

Quando o fidalgo acabou disse o frade:

- Peço a Deus que não faça cair sobre V. Mercê a justa pena deste ato...

E saiu.

Logo nessa noite, teve Rui de Leão uma intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma raiz, nenhuma folha pôde abrandar o mal do pobre Rui. Esgotou-se a farmacopéia do deserto; a doença tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta luta entre a natureza e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o último remédio não produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.

Rui não sabia que já estava condenado, mas suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto; contemplou o filho, apenas nascido, a mulher ainda no viço dos anos. Todas estas cousas juntas fizeram com que Rui reunisse todas as suas forças (que bem poucas eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.

Fê-lo a muito custo; logo à porta da cabana teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem despertar ninguém. Caminhou lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.

No dia seguinte amanheceu melhor. Os parentes de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro ilustre, ficaram agradavelmente surpresos quando viram a rápida melhora que naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.

Restabeleceu-se Rui de Leão da moléstia, e grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era realmente a luz daquela gente e o melhor conselho dos casos difíceis.

Certeza de que estava imortal, não a tinha ainda Rui de Leão; mas certeza de que o elixir curasse febres teimosas, essa adquiriu logo. "Esperemos o resto", dizia ele consigo.

E esperou.

Não tardou que se admirasse toda a gente daquelas paragens da robustez crescente de Rui de Leão; era o segundo efeito do elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, cousa que sumamente agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.

Com os anos cresceram as esperanças de Rui. O tempo nenhuma ação tinha nele; não só os poucos cabelos que tinha continuaram a ficar pretos, senão que lhe nasceram outros, e dentro em pouco tempo tinha o homem uma verdadeira floresta na cabeça, a qual floresta, atenta a falta de pentes no sertão, era uma verdadeira floresta virgem. Nenhuma ruga lhe afeiou o rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.

Tinha Rui sessenta anos e era o mesmo homem dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Rui adquiriu a plena certeza de que tinha vencido a morte.

Não aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que, andando um dia a colher frutas no mato, recebeu em cima da cabeça um tronco que a levou desta para a melhor. Ficou a criança, rapazote de largas esperanças, único fruto dos amores de Rui e Nanavi.

Como o frade Norberto continuasse em missão, encontrou-o um dia o nosso neotamaio e travou conversa com ele.

Sem descobrir o segredo do pajé, disse-lhe que tinha meios de fazer uma conversão em larga escala durante longos decorreres de anos; que para isso ajudaria com dedicação os frades da companhia não somente com as luzes que tinha da língua do Brasil como também pela autoridade moral que adquirira entre os índios; finalmente que por prova de que servia sinceramente a Igreja, dava a batizar o filho de Nanavi.

- De boa razão é vosso procedimento, Sr. Rui de Leão, e eu estou que a fé colherá grande proveito com o auxílio de vossa pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora, além de injustiça, erro grosseiro, porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao inocente filho que nos dais para batizar e iniciar na fé. Onde está a mãe?

- A mãe morreu.

- Culpa vossa, Sr. Rui de Leão; perdeu-se uma alma pela obstinação com que V. Mcê se houve...

- Estou arrependido, padre Norberto - disse Rui ajoelhando aos pés do frade.

Foi batizado o pequeno e iniciado nos preceitos da fé cristã, ao passo que o pai, incumbido de arrebanhar a gentilidade, saiu pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e outro.

Longo tempo andou nessa missão. Colheu a Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram todos três para o asilo dos frades houve grande e piedosa festa em honra de todos e principalmente de Rui. Os frades asseveraram à porfia que a piedade do fidalgo fora exemplar e os seus esforços incessantes.

Notaram todos, porém, que, se os frades voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos, Rui estava tão sadio e robusto como fora. Maior admiração houve quando o fidalgo confessou ter mais de sessenta anos.

- Não admira - respondeu o fidalgo rindo -; eu adquiri o privilégio desta gente, que vive geralmente até os cem anos.

Ficou o nosso Rui no convento acompanhando os frades. Uma noite veio do sertão uma horda de índios, e atacou o asilo monástico com desusado vigor. A defesa foi quase nula contra os ferozes índios. Após uma luta porfiada, Rui conseguiu fazer ouvir a sua voz e acalmar os ânimos. Os índios foram embora deixando dois cadáveres dos seus. Dos frades tinham morrido dois às envenenadas flechas do inimigo. A todos admirou, porém, que Rui recebesse uma flecha nas costas, que a arrancasse, e não morresse como acontecera aos outros.

- Que mistério é esse, irmão? - perguntou-lhe um frade.

- Nenhum - respondeu Rui -; provavelmente a flecha não vinha ervada.

Correram os anos; os frades estavam substituídos à proporção que iam morrendo; e assim se chegou aos anos de 1730, sem que Rui perdesse sequer um dos traços de sua vigorosa pessoa.

Toda a gente ficava pasmada diante de semelhante prodígio. Prodígio havia decerto porque de cem anos por cima é impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Rui deixou de ter a mesma cara.

Foi em 1730 que um oficial régio, tendo sabido da maravilhosa mocidade de Rui, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a fim de apresentá-lo ao rei, que era então D. João V. Partiram.

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