Conto

Rui de Leão

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em janeiro, fevereiro e março de 1872, assinado por Max. Como ensina J. Galante de Sousa, "[o] assunto deste conto foi retomado mais tarde pelo autor, em outro conto, denominado 'O imortal', publicado em A Estação, de 15 de julho a 15 de setembro de 1882." Embora na segunda versão não aproveite muito mais do que a ideia central da primeira, o autor a finaliza assim: "Tal é o caso extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já esqueceu a ambos." (Veja-se, de J. Galante de Sousa, Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955. p. 461). O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

Consta de crônicas inéditas e secretas que, ali pelos anos de 1630, vivia no interior do Brasil um fidalgo chamado Rui de Leão, varão de boas prendas, extremado na língua do país e aparentado com uma família tamaia, por ter casado com uma das suas mais belas filhas.

Rui de Leão contava nesse tempo cerca de quarenta anos. Era robusto, corado, ativo, tão enérgico na alma como no corpo. Tinha no rosto uns longes de melancolia que se dissipavam muita vez sem que de todo se extinguissem. Parece que a causa dessa desconhecida tristeza prendia com os infortúnios que sofrera em Portugal, e que o trouxeram ao Brasil em um dos régios galeões. O certo é que o nosso fidalgo, esquecendo totalmente a grandeza da sua raça, não duvidou em unir-se pelos laços do matrimônio à filha de um velho pajé.

Matrimônio, digo eu, unicamente para usar de um termo corrente; mas a verdade é que não se deve ligar a esta palavra a ideia cristã que lhe damos. O matrimônio do fidalgo consistiu nas cerimônias indígenas. Debalde o padre Pires tentou converter a esposa do fidalgo e santificar a união. Rui de Leão respondia que, de ora em diante, era tamaio, pois que sua mulher o era, e mandou embora o padre.

Tamaio ficou o nosso fidalgo, menos no traje, que o conservou civilizado e português. Mas até isso veio a perder daí a poucos anos, por conselho do pajé, que um dia lhe disse:

- Carão branco, tu és a nossa lua, tu és o nosso irmão, mas só uma cousa te falta. O caju é igual ao caju; o coco é igual ao coco; só tu, carão branco, em vez de seres igual a todos nós, usas de umas roupas semelhantes às dos nossos inimigos. Por que recusas vestir como nós as plumas da arara e as cores do jenipapo?

- Pajé - respondeu Rui de Leão -, a pele do carão branco não está afeita ao clima do teu país.

O pajé sorriu, contemplou o céu, inseriu o dedo mínimo no canto do olho esquerdo e ejaculou resposta filosófica:

- A água bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza.

Rui de Leão estremeceu ouvindo estas palavras na boca do pajé; não lhe parecia que ele as tirasse do seu cérebro. O sogro entristeceu, insistiu no pedido, e Rui de Leão depois de meia hora de conferência cedeu, e despediu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.

Grande foi a festa que seguiu à encarnação do fidalgo no vestuário do deserto.

Nanavi, sua esposa, fez um esplêndido cocar de plumas com que ele se adornou garridamente.

Entre Rui de Leão e Júlio César nenhum ponto de contato havia; mas uma circunstância ligava estes dous grandes homens: eram ambos calvos como a ocasião.

Imaginem o prazer com que o fidalgo recebeu o cocar; foi por assim dizer a sua coroa de louros cesariana. Na tarde desse famoso dia houve reunião na cabana do pajé.

Peitos de papagaio, costeletas de tatu, e outras viandas saborosas serviram de pasto aos convivas. Quando o sol começou a ficar triste, todos os convivas entraram a bailar, e bailaram até que o cansaço e o vinho os prostraram no mais profundo sono.

Extrema era a confiança da tribo no fidalgo, que logo se habituou aos mais duros exercícios.

Não havia guerra em que não colhesse imarcescíveis louros, nem matança de vítima a que não levasse um par de famintos queixos.

A primeira vez que figurou numa destas festas, era a vítima um galhardo mancebo indígena, que, segundo o uso, fora engordado previamente por uma velha de seus oitenta janeiros bem puxados.

Convocou-se toda a gente da vizinhança, e Rui de Leão teve a glória de ser escolhido para dar o golpe mortal no rapaz.

Não se pode descrever a alegria do fidalgo, quando lhe foi conferida essa honra suprema.

Quando ele apareceu à porta da cabana com a maça mortífera em punho, e o colar de dentes humanos ao pescoço (ordem honorífica daqueles povos bárbaros), houve um geral murmúrio de admiração.

A única cousa com que os filhos do deserto embirraram foi com o nariz de Rui de Leão, nariz cristianíssimo, verdadeiro contraste com os narizes da gentilidade.

Rezam as crônicas que esta diferença nasal esteve a ponto de provocar um levantamento no povo; mas a influência do pajé e a presença da graciosa Nanavi mataram em flor todo o projeto de insurreição.

Bizarro entrou na praça o nosso Rui de Leão, e logo se encaminhou para a espécie de palanque onde a vítima devia ser imolada.

Imediatamente apareceu o condenado tirado por dois robustos rapazes, e rodeado por uma meia dúzia de velhos tocando nos seus alguidares, ao passo que uma orquestra executava em tíbias humanas ásperas variações dos Rossinis do tempo.

Rui de Leão levantou a maça e começou a atordoar a vítima levemente, no meio dos aplausos da multidão, até que, com um golpe em cheio, lhe reduziu o crânio a migalhas.

Houve então a repartição da carne da vítima.

Rui de Leão obteve larga parte e é fama que lhe achou melhor gosto do que outrora nos guisados da civilização.

Tais foram as grandes estreias antropófagas de Rui de Leão, que nos outros exercícios desbancava ao mais pintado.

Apanhar um papagaio no ar com a flecha ou um peixe no rio; atirar ao arco com pés e mãos, tudo isso nada era para o nosso fidalgo.

Como os tamaios eram amigos de vagamundear, depressa o nosso Rui de Leão perdeu o gosto de fazer ninho, tão pronunciado nos povos civilizados, e era de ver a presteza com que ele construía e desfazia sua cabana.

A tudo se afez o esposo de Nanavi. Entretanto é difícil que um homem civilizado perca de todo a sua tendência propagandista.

Rui de Leão, posto que achasse bons os costumes do deserto, teve ideia de introduzir neles alguns usos da Europa.

Inúteis foram os seus esforços.

Os índios recusaram toda inovação política ou social nos seus hábitos.

Rui de Leão ficou com a sua vontade.

Aqui temos pois o nosso herói, na época em que começa esta história, provada em documentos de incontestável autenticidade.

Justamente no ano de 1630, dous séculos antes da revolução do campo da Aclamação, estava Rui de Leão conversando com o pajé, a respeito das últimas águas, quando Nanavi apareceu à porta da cabana, e comunicou ao esposo a agradável notícia de que dentro de pouco tempo seria pai.

Rui de Leão ardia por ver algum fruto da sua união com a tamaia.

Levantou-se e exclamou:

- Ainda bem, Nanavi: a mangueira não ficou estéril.

- Não - respondeu a índia.

- Bem-vinda seja essa criança, que há de receber a herança de seu pai e a bênção de seu avô.

- Ai, não! - exclamou o pajé -. Quando teu filho aparecer no mundo, já eu estarei morto.

O pajé disse estas palavras com tom profético.

Rui de Leão estremeceu e involuntariamente procurou as algibeiras dos calções, que já não usava, para meter-lhe as mãos dentro. Nanavi entrou a chorar.

O pajé consolou a família com uma dissertação filosófica a respeito da morte; comparou a vida à luz fugaz do pirilampo: comparação de que os poetas começaram a usar mais tarde; e concluiu pedindo alguma cousa que comer.

Adivinhara o pajé. Dous meses antes de vir à luz o rebentão da ilustre raça dos Ruis de Leão, o pajé adoeceu gravemente.

Chamaram-se os físicos da localidade. Era um deles o ilustre Urumbeba, profundo conhecedor do corpo humano e seus achaques; e o outro o não menos ilustre Mandijbiyuruçu, versado no conhecimento das plantas e raízes.

Entraram estas duas glórias da Academia do sertão com a gravidade própria do caso.

Examinaram o enfermo, e declararam que era necessária uma conferência entre si, pelo que se retiraram as mais pessoas.

Quando os dous físicos ficaram sós, rompeu o silêncio Urumbeba:

- O rio está crescendo muito - disse ele.

- Já reparei nisso; parece que alagará tudo como na lua passada.

- Além disso eu tive um sonho.

- Ah!

- Sonhei que uma cobra imensa, desenvolvendo-se pela terra, enrolara a tribo toda.

- Uma cobra?

Urumbeba percebeu que o colega não atinava com o sentido do sonho.

- Sim, uma cobra - disse Urumbeba -; e essa cobra é a imagem do rio que nos cercará a todos nós.

Mandijbiyuruçu ficou muito assustado com o sonho de Urumbeba, e concordou na necessidade de levantar as tendas.

Conversaram largamente nesse assunto até que, passada uma hora, um gemido do pajé veio lembrar-lhes o objeto principal da conferência.

Na opinião de Urumbeba o doente devia tomar um cozimento de aipim, dado em quatro porções de uma cuia cada uma; ao passo que Mandijbiyuruçu optou por uma aplicação de inimboia cozida e dada em duas partes com fomentações de caataia.

Divididas as opiniões, foi necessário que as discutissem.

Mas o doente piorara, e Rui de Leão veio dizer aos médicos que o pajé estava mal.

Foram os médicos ter com o enfermo e conheceram que era chegada a última hora; mas como o pajé padecia muito, resolveram que o melhor remédio era dar-lhe uma cacetada na cabeça - extrema-unção daqueles povos incultos.

O pajé compreendeu a situação e pediu para falar particularmente ao genro.

Quando se acharam sós, disse o pajé:

- Quero dar-te um presente, o melhor presente que um mortal pode dar a outro, porque o recebi eu mesmo das mãos de Tupã.

Rui de Leão arregalou os olhos.

- Eu tenho ainda vida até o sol que vem. Quando vier a noite sairemos ao terreiro; quero ir contigo a um lugar secreto.

Prometeu Rui de Leão acudir ao convite do pajé. Efetivamente, quando veio a noite, saiu o pajé encostado ao genro, e a seis ou sete passos da cabana, mandou o pajé que Rui de Leão cavasse certo montículo de terra. Cavou o fidalgo, e não tardou que aparecesse um vaso hermeticamente tapado.

- Isto - disse o pajé - é um segredo que me acompanha sempre. Quando me mudo de um lugar para outro, levo o vaso comigo e enterro-o atrás da cabana.

Rui de Leão contemplava o vaso, sem poder adivinhar o que continha.

Veio em auxílio dele o pajé.

- Era uma noite em que eu, não podendo dormir, fui sentar-me à beira do mar contemplando as estrelas. Estava ali já havia muito tempo, quando me apareceu um vulto cheio de luz e me disse: "Pajé, queres que eu te dê a imortalidade?" "Quero", respondi eu, beijando a terra. "Toma este vaso; aqui tens um licor que te dará a imortalidade; bebe-o quando quiseres, serás imortal".

Rui de Leão teve um momento generoso.

- Ah! - disse ele -. Bebe depressa.

O pajé empurrou levemente o genro.

- Não! Se eu quisesse ser imortal, não o teria já bebido? Aceitei o licor com alegria e guardei-o para beber mais tarde. Profundos desgostos me amarguraram a vida; não quero ser imortal. Tu sim; és feliz; podes ser imortal. Dou-to; é para ti. Mas agora enterra o vaso; ninguém deve saber disto.

Rui de Leão enterrou o vaso.

A noite estava escura; uma coruja piou em cima de uma árvore; o pio da coruja e o murmurar do rio eram os únicos sons que se ouviam. Quando Rui de Leão se levantou, viu que o pajé tremia, segurou-o para não cair. Era tarde; o pajé expirou.

Grande foi a dor de Nanavi, quando soube da morte do pai. A cerimônia fúnebre impressionou a todos, porque a palavra do pajé era respeitada e adorada, e todos sabiam que se perdia nele uma glória da raça tamaia.

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