Conto

Quem Não Quer Ser Lobo...

1872

Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em abril e maio de 1872, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Trata-se de parte de um ditado popular, que diz: "Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele", isto é, quem não quer ser tratado como o que não é, não deve fingir sê-lo; ou “quem se faz de muito esperto às vezes é logrado por outros, que lhe parecem tolos e não são”.

III

L.

Coelho não saiu de casa antes das cinco horas. Gastou todo o tempo a investigar um meio de tirar vantagem da misteriosa carta, e tão depressa organizava um programa, como o achava impraticável. Se os reunisse todos em cinco atos e sete quadros, teria produzido um excelente melodrama.

Aqui, perguntará naturalmente o leitor se valia a pena gastar tanto tempo com uma carta que aparentemente não dizia nada. Perdoo à ignorância do leitor esta pergunta infundada, e passo a resumir as razões que justificam no meu herói as longas horas de meditação a que se entregou.

Lúcia Soares era uma moça de vinte e dois anos, sobrinha da mulher de Zózimo Ypsilanti, e universal herdeira de ambos. Ypsilanti passava por ter uma grande fortuna disfarçada; aparentemente tinha muito pouco, e havia quem lhe não desse quinze contos por tudo; mas a maioria do povo dizia que Ypsilanti era senhor de uns duzentos contos bem puxados. Os hábitos de avarento do grego davam alguma verossimilhança a este boato; vestia mal e grosseiramente; gastava pouco, regateava muito e não dava a ninguém. Se fosse pobre, ao menos se a opinião o julgasse tal, aquilo seria refletida economia; mas, com a fama de rico de que ele gozava, a economia era pura avareza.

Ora, se a riqueza fazia de Lúcia uma das três Graças, a natureza tinha-a feito uma das três Fúrias. Uma testa curtinha, uns olhos vesgos, pequenos e apagados, um lábio superior oblíquo, umas faces grossas, tais eram os dotes negativos que recebera do berço. A inteligência era como os olhos, vesga, pequena e apagada. A educação, porém, fora algum tanto esmerada. Lúcia tocava piano, sabia muitas cousas de costura, desenhava bem e falava corretamente a língua francesa.

Deram-lhe tais prendas os pais, que desse modo quiseram emendar a natureza, e deixar-lhe alguma herança real. Era órfã desde a idade de 17 anos, e vivia com os tios, que a amavam e procuravam fazê-la feliz.

Coelho já a conhecia de algum tempo; estivera com ela numa reunião em que lhe disseram que Lúcia seria senhora algum dia do melhor de duzentos contos de réis. Infelizmente estava o nosso mancebo à bica de outra herança de algarismo igual, com a diferença que a dona em questão era excepcionalmente bonita.

Coelho sabia perfeitamente que a riqueza deve rimar com beleza, e ainda não compreendia naquele tempo o verso solto. Agora, porém, que se achava desenganado de achar o casamento, já se contentava com uma toante e a sobrinha do grego era justamente o que lhe convinha.

De que maneira, porém, conseguiria ele, com o auxílio de uma carta, entrar na posse dos bens de Ypsilanti?

A sua primeira ideia foi menos ambiciosa. Sabendo que o tio de Lúcia era um velho irritável e severíssimo, lembrou-se de ir ameaçar o namorado de Lúcia, e restituir-lhe a carta mediante uma recompensa. Este meio porém pareceu-lhe indigno e foi posto de lado.

Às cinco horas nada tinha resolvido; saiu para jantar no hotel; e teve a felicidade de não encontrar conhecido. Enquanto comia, pensava no caso. Ao meio do jantar trouxe-lhe o criado um jornal para ler.

Recusou.

- Quer alguma ilustração?

- Não quero nada.

Dizendo isto, arredou os jornais com a mão. Nesse momento, porém, leu o título de um capítulo de folhetim que um dos jornais estava publicando.

O título era: - De noite todos os gatos são pardos.

- Ah!

Este grito soltado por Coelho chamou a atenção dos fregueses e dos criados da casa. Um destes correu assustado para ele e perguntou se se engasgara com algum osso. Coelho observou-lhe que, estando a comer ervas, era humanamente impossível engasgar-se com um osso, e pediu-lhe polidamente que o deixasse acabar de jantar.

A razão do grito é clara: o provérbio fora um raio de luz.

- De noite todos os gatos são pardos - repetia ele consigo -; irei ao jardim de Lúcia em lugar do namorado... e o resto à sorte.

Tendo adotado um plano, dispôs-se a jantar com mais tranquilidade. Comeu e bebeu à larga, pediu charutos e café, recostou-se na cadeira, e esperou que a digestão se fizesse em boa paz.

IV

No jardim

Às ave-marias estava Coelho em casa pronto e preparado para ir à entrevista. Não sabia bem o que lhe aconteceria nessa noite, mas tinha uma tal ou qual confiança no resultado da aventura.

Quase a pôr o pé na rua, surgiram-lhe no espírito duas dúvidas.

Primeira:

Seria tarde ou cedo a hora da entrevista?

Segunda:

Não iria ele encontrar-se com o outro, visto que a carta já estava aberta, o que era sinal de que ele a houvesse lido?

Durante um quarto de hora, esteve o nosso Coelho indeciso. A empresa chegou a parecer-lhe extravagante.

- O que estou fazendo é absurdo - dizia ele sentando-se no sofá -; não se faz isto na vida real, em 1863, na cidade do Rio de Janeiro. Estou simplesmente doido. Isto contado não se acredita.

Mas com estas ideias lhe foram aparecendo outras. Uma voz secreta lhe dizia que tentasse a empresa, porque o desenlace seria completo. Coelho ainda procurou chamar a razão em seu auxílio, mas era tarde: o destino tinha-se apoderado dele.

O jardim tinha uma porta para a rua. Eram oito horas da noite; e, posto que a rua não fosse muito frequentada, era ainda cedo para poder impunemente penetrar no jardim.

Coelho encostou-se ao muro, e, estando a porta aberta, enfiou o olhar para dentro. Descobriu duas janelas, uma fechada e outra aberta; no interior havia luz.

Entretanto nem no jardim, nem na casa havia o menor vestígio de gente.

"Naturalmente, está ela na sala", pensava Coelho; "o diabo é eu não saber a hora; pode vir alguém e descobrir-me... E se me fecham a porta? O outro talvez tenha alguma chave..."

Neste ponto, ouviu passos na calçada. Um vulto se aproximava costeando o muro.

"É ele", pensou Coelho.

Sua primeira ideia foi recuar, ou passar para o lado oposto; mas refletiu que esta mesma prevenção podia descobrir o seu intento.

O vulto veio andando, andando, andando, até que enfrentou com ele.

Parou.

Coelho estremeceu.

"Estou perdido!" disse ele consigo.

O vulto meteu a mão no bolso sem tirar os olhos de Coelho; sacou um objeto que ele não viu, mas que supôs ser um ferro; tirou o chapéu e disse polidamente:

- Faz-me favor do fogo?

Coelho respirou.

Deu-lhe o charuto em que o homem acendeu o seu e prosseguiu viagem, sem voltar os olhos para trás.

"Sempre sou um medroso!" disse Coelho consigo. "Creio que se o homem me lança a mão, eu morreria de medo. Mas também o caso é arriscado; se o meu rival se apresenta, estou perdido; pelo menos, entro em uma luta desagradável."

Neste caminho das suas reflexões, Coelho passou do medo ao terror. Parecia-lhe ver já diante de si o desconhecido namorado, munido de um cacete, ou de um punhal, e ele morto ou espancado, na sala da polícia, interrogado pela autoridade, examinado pelos médicos; e no dia seguinte o seu nome impresso em todas as folhas, e o caso contado com todos os pormenores.

Quis fugir.

Mas de repente sentiu um rumor no jardim.

Era a moça, que chegava com estrépito, sem dúvida para dar sinal ao namorado, caso ele estivesse nas imediações.

Coelho não pôde resistir.

Deitou um olhar à rua; ninguém o via nesse momento. Persignou-se e entrou no jardim.

Lúcia viu aparecer à porta o vulto e fez um sinal com o lenço. Coelho aproximou-se cautelosamente da janela, que ficava elevada. A ideia da existência de algum cão atravessou-lhe o espírito:

- Oh! Meu Deus! - disse ele

E estacou.

Mas a moça estava presente e não havia recuar. Continuou a andar na direção da janela.

- És tu, Carlos? - perguntou a moça.

- Sou eu - disse Coelho com voz fraca.

- Não pude vir mais cedo - disse Lúcia -, porque minha tia quis por força que eu ficasse na sala. Agora pude sair sem que ela reparasse. A nossa conversa não pode ser longa. Ninguém te viu?

- Ninguém, murmurou Coelho, que não queria ser descoberto pela voz.

- Sabes o que tem acontecido?

- Não.

- Meu tio anda desconfiado do nosso amor.

- Ah!

- Ouvi-o no domingo estar conversando com minha tia e dizendo que havia de saber quem era o brejeiro que andava a namorar-me, e que lhe havia de quebrar as costelas.

Ouviu-se um suspiro; ele pensou que era alguém de casa, mas reparou que era ela mesma.

- Não te parece que estamos mal? - perguntou a moça.

- Sim - disse Coelho.

- Mas que tens hoje? - disse ela -. Estás tão calado! Não me respondes senão com palavras soltas. Sofres alguma cousa?

- Oh!

- É aquela dor de peito que te continua a dar?

- É.

- Pobre Carlos!

Neste momento ouviu-se um rumor. Era um pisar mansinho na areia do jardim.

"Que será?" pensou Coelho.

- Guardei uma flor para ti - disse a moça -. Queres?

- Quero - grunhiu Coelho.

- Lá vai.

E Lúcia, debruçando-se na janela, atirou a flor, que Coelho apanhou e levou aos lábios.

- Céus! Que é isto? - murmurou a moça.

Era a voz de um cão que se ouvira, e a voz de alguém que animava o cão.

- Há alguém?

- Há - disse Coelho mais morto que vivo.

- Há de ser o preto.

E olhou na direção do latido.

Coelho não queria saber se era ou não o preto; a sua ideia definitiva era dirigir-se à porta e pôr-se ao fresco.

Nesse sentido, começou a recuar; mais o latido do cão aproximava-se e dentro de pouco tempo um vulto de homem e um vulto de cão se apresentaram em frente de Coelho.

O cão parou e pareceu consultar o homem. Este fez um sinal e chegou-se a Coelho.

Coelho encomendou a alma a Deus.

Um grito se ouviu da janela. Era Lúcia, que desapareceu imediatamente.

- Quem é o senhor? - disse o vulto.

- Eu... - balbuciou Coelho.

- Sim... diga!

- Eu...

- Eu... quem?

E como Coelho não respondesse, o vulto pegou-lhe no braço e procurou arrastá-lo para dentro. Coelho resistiu.

- Vou dizer tudo - gritou ele.

- Venha cá dentro; estaremos mais a gosto.

Era impossível resistir; Coelho acompanhou o vulto.

V

O vulto

Ao rés-do-chão, e por baixo das janelas, havia uma sala, com uma mesa e poucas cadeiras, iluminada por um bico de gás.

Aí entraram o vulto, Coelho e o cão.

Este foi acocorar-se a um canto com os olhos em Coelho à espera de um sinal do vulto.

Coelho e o vulto encararam-se antes de se sentarem.

- Ah! - exclamou o vulto.

- Ah! - exclamou Coelho.

- Pois é o senhor?

- Eu...

- Temos o eu outra vez - disse o vulto, que era nem mais nem menos Ypsilanti.

- Vou explicar-lhe tudo - disse Coelho, resolvido a contar a história da carteira e o mau pensamento que tivera e obter assim o perdão do que acabava de fazer.

- Sente-se - disse Ypsilanti

Coelho obedeceu. Ypsilanti sentou-se em frente dele, do outro lado.

- O senhor sabe - disse o velho tio de Lúcia - que acaba de fazer uma cousa muito feia.

- Sei, sim, senhor.

- Uma cousa horrível, que eu não lhe perdoarei jamais?

Coelho estendeu a mão.

- Se me quiser ouvir - disse ele.

- Ouvi-lo? Mas que me dirá o senhor para justificar o que acaba de fazer? É desse modo que pretende haver alguma cousa que possuo? Está em minhas mãos, e eu posso fazer do senhor o que quiser. Que diria o senhor se eu o denunciasse à polícia como ratoneiro?

- Senhor.

- E ratoneiro é o senhor, porque tirar um par de galinhas de um quintal e um par de contos da algibeira de um homem honesto é a mesma cousa; só difere o meio. O senhor quis tirar-me um par de contos...

- Enfim - disse Coelho ansioso por explicar tudo, e chamar o furor do velho para o verdadeiro ratoneiro, como ele disse -, enfim, eu espero convencê-lo de que não sou tão culpado como pareço.

- Há de ser difícil.

- Não é.

- Estou ouvindo.

Ypsilanti tirou um charuto do bolso, acendeu e começou a fumar tranquilamente, enquanto Coelho começava a narração do achado da carteira e do pensamento que tivera; não lhe ocultou que a circunstância de não ter dinheiro, que a ambição de possuir alguma cousa o levara àquele erro.

- Tal é, senhor Ypsilanti, o motivo que aqui me trouxe. Foi um erro de que eu me envergonho, mas o senhor pode ver, na franqueza com que eu confesso tudo, o arrependimento que já tenho do que fiz. Agora só me resta pedir o seu perdão... ou expor-me ao que o senhor quiser fazer.

Ypsilanti soltou uma gargalhada.

Coelho enfiou.

- De que se ri? - disse ele.

- De que me hei de rir? Da sua imaginação fecunda. Em tão pouco tempo criou o senhor um romance, que eu poderia aceitar se já não tivesse estes cabelos brancos.

- Pois crê...

- Não creio em nada do que o senhor me disse...

Coelho encolheu os ombros.

- Então não sei o que lhe hei de dizer...

- A verdade.

- Já a disse.

- Não; a outra.

- Não há senão esta.

- Quero ouvir a outra verdade, que é a única verdadeira. E não é melhor ser franco? Por que me não confessa que ama minha sobrinha, que esta lhe corresponde, e que o senhor nutre a esperança de casar com ela?

Ypsilanti disse estas palavras com um modo tão brando que Coelho começou a ver as cousas por outra face. Esperava encontrar um tigre, e achou-se diante de um cordeiro.

Cordeiro não o era ele tanto, porque logo depois das palavras acima transcritas, rompeu nestas:

- Vamos! Fale, meu atrevido! Meu sedutor de donzelas!

- Eu já lhe disse a verdade.

- Não disse. A verdade é que o senhor namora a pequena há alguns meses, que tem vindo algumas vezes ao jardim, segundo me consta, que lhe escreve e é correspondido.

Coelho fez um gesto para falar.

Ypsilanti continuou:

- E pensa que não sei a razão por que me não tem falado? É porque receia que eu lha recuse. Sabe que eu tenho fama de severo, e que só admito casamento em condições vantajosas... Esta é a verdade.

Ypsilanti estava outra vez com o modo brando, e Coelho de novo se animou a tirar proveito da situação.

- Ora, conquanto eu deseje para minha sobrinha um noivo rico, não faço disso questão principal. Pode ser pobre e honesto. Se está nessas condições, por que me não fala? Era melhor; não daria que falar.

Luziu nos olhos de Coelho a posse de algumas dezenas de contos de réis. Era argumento melhor que todos os raciocínios. A disposição de Ypsilanti o animou a dar mais um passo.

- Pois, senhor Ypsilanti - disse Coelho -; tudo confesso; é verdade, eu amo sua sobrinha e peço-lha em casamento. A ocasião não é talvez própria, mas...

- Própria é - disse Ypsilanti -; mas confesse que procedeu muito indignamente até hoje, e que se eu não fosse uma boa alma o senhor devia estar morto a esta hora.

Dizendo isto, bateu o velho com a mão na mesa; o cão grunhiu do seu lugar; e Coelho cuidou seriamente que ainda não estava salvo.

Mas tudo passou depressa.

O velho ergueu-se e disse:

- Pois, senhor, venha amanhã pedi-la oficialmente. E prometa desde já que a há de fazer feliz.

- Juro! - disse Coelho -. E peço-lhe que acredite, senhor Ypsilanti, que não foi a ideia da sua riqueza que me fez amar sua sobrinha, mas...

Ypsilanti sorriu.

- Bem sei, bem sei - disse ele.

Depois acompanhou-o até a porta do jardim.

- Até amanhã.

- Até amanhã.

VI

Mistério

Fechou-se a porta do jardim. Coelho parou na rua, atônito. Durante um quarto de hora não pôde dar um passo.

Tudo lhe parecia um sonho.

De duas uma:

Ou tinha de ser metido numa terrível embrulhada de que era incerto que saísse bem.

Ou então a sua felicidade era certa.

Mas como supor a segunda hipótese?

Enganar o tio era possível; mas a sobrinha? Quando esta o visse reconheceria perfeitamente o engano e teria franqueza para dizer ao velho que o seu namorado não era ele mas outro. O velho perdoaria aos dois, e descarregaria sobre ele todo o furor.

Coelho caminhou lentamente para casa meditando no que acabava de ocorrer. Cada vez se lhe entranhava mais no espírito a convicção de que a situação era para ele terrível; e ao mesmo tempo perguntava a si mesmo como pudera crer que fosse possível conseguir alguma coisa nas condições em que lhe apareceu a carta.

"Eu estava doido, sem dúvida", dizia consigo Coelho. "Supor que poderia dali sair alguma cousa boa era realmente ter perdido o juízo."

Quando chegou a casa estava resolvido a abrir mão da sobrinha de Ypsilanti.

"Mas será isso possível?" perguntava Coelho a si mesmo. "Depois do que se passou, conhecendo-me ele, ainda que pouco, é impossível deixar a empresa. Em rigor, eu devo-lhe uma satisfação. Não há remédio. Em que situação me fui colocar!

Depois a ideia dos contos réis de novo lhe apareceu com todo o seu cortejo de gozos e fantasias.

- Rico - dizia ele -; rico! Oh! Isto é um sonho! Eu posso estar rico daqui a um mês. Foi a minha estrela que me levou lá; está dito; fecho os olhos e aceito tudo.

Não dormiu.

Fez logo mil planos; casava-se num dia, e no primeiro paquete embarcava para a Europa. Na Europa gozaria a vida à larga, e poderia satisfazer a sua ânsia de fazer figura.

Pelas quatro horas conseguiu fechar os olhos.

Mas os sonhos continuaram os cálculos; e o nosso Coelho acordou tarde, bem disposto, risonho e quase rico; pelo menos, rico de imaginação.

O moleque começou a experimentar a feliz mudança operada no ânimo do senhor. Não recebeu o pontapé matinal de costume, e teve o gosto de assobiar uma ária sem medo de interrupção.

Coelho mandou comprar um par de luvas brancas, e encomendar um carro, preparou-se, perfumou-se, e ensaiou-se para a arriscada empresa. Enquanto não saía de casa tudo parecia ir facilmente, mas, apenas se meteu no carro e este começou a rodar pelas ruas da cidade na direção da casa do grego, tudo se foi alterando no espírito do rapaz.

- Mas eu estou vivendo em pleno romance de ontem para cá - dizia o mísero -; isto é uma loucura. A rapariga vai conhecer-me, adivinhará tudo, ou antes, não adivinhará nada, mas compreenderá ao menos que não sou eu o namorado, e tudo se desfaz e eu estou em pior posição do que ontem. O velho, apesar da confissão que lhe fiz, não me há de perdoar a audácia, desde que souber que eu efetivamente a pratiquei. Tudo isto é rematada loucura.

E o carro ia andando.

Então voltava à mente de Coelho a ideia do dinheiro, e esta doce imagem o seduzia e lançava uma espécie de véu sobre os perigos que ele antevia. Imaginava um belo prédio, carros, bailes, jóias, passeios, todos os sonhos de um homem que não tem e quer possuir.

Mas, como o carro andava sempre, e o momento decisivo se ia aproximando, Coelho tornava aos seus terrores, e de novo hesitava se devia ir à casa do velho ou voltar para trás.

No meio dessas alternativas lembrou-lhe um meio que conciliava as esperanças com os receios.

"Entro", pensava ele; "o velho recebe-me; faço o meu pedido. Mandam vir a pequena, e apenas esta aparecer, antes que saiba do assunto faço-lhe um gesto para que se não oponha, como quem lhe explicará o caso depois. Ela imaginará que eu estou de acordo com o namorado, e aguardará a explicação. Quando vier a ocasião, procurarei expor a verdade. Sim, este é o verdadeiro meio."

Com este pensamento foi até a casa de Ypsilanti. O velho já o esperava ansiosamente; recebeu-o cortesmente, ainda que não sem um ar severo, que aliás lhe era peculiar.

Feitos os cumprimentos e presente a tia de Lúcia, expôs Coelho o objeto da sua visita, proferindo um pequeno discurso análogo ao ato, que o velho grego ouviu com um significativo movimento de cabeça.

- Pela minha parte - disse este -, consinto no pedido que faz; mas é mister que minha sobrinha consinta também. Vou mandar chamá-la.

D. Manuela, esposa de Ypsilanti, dignou-se aprovar a resposta do marido e mandou chamar Lúcia. Não tardou que a sobrinha aparecesse à porta, convenientemente vestida, e com os olhos baixos.

Coelho estremeceu.

Não contara com este gesto de modéstia, tão natural na moça que é pedida para casar, e não sabia como fazer o gesto que devia salvar a situação.

Lúcia aproximou-se lentamente do grupo.

- Meu tio - murmurou ela.

- Senta-te, Lúcia -, disse D. Manuela.

Lúcia sentou-se, sempre com os olhos pregados no chão.

Coelho estava em suores frios. Debalde olhava para ela; a moça não levantava os olhos. Começou a tossir para ver se ela levantava os olhos. Ypsilanti, vendo a insistência da tosse, mandou fechar a janela que ficara por trás de Coelho.

Tudo estava perdido.

- Lúcia - disse o velho tio -, este senhor vem pedir-te em casamento. Aceitas o seu pedido?

Houve um silêncio.

"Vai olhar para mim", pensou Coelho, "tudo está acabado".

- Então? - disse D. Manuela.

- Aceito. Muito do meu gosto.

- Tudo está arranjado - disse Ypsilanti -; resta marcar o dia do casamento.

Outro silêncio.

Lúcia não levantara os olhos do chão. Coelho estava em brasas. Esperava o momento em que ela ia levantar os olhos e soltar um grito de surpresa.

Como ela insistia em não olhar para ele, achou ele que o mais prudente era esquivar-se quanto antes e por meio de uma carta explicar-lhe tudo.

Ia já a levantar-se quando Ypsilanti lhe disse:

- Toma chá conosco, sr. Coelho?

Coelho! O nome próprio do homem! Era impossível que, ao ouvir o nome de Coelho, a moça não levantasse os olhos com pasmo.

Nada!

Esta surpresa foi a maior sensação que o nosso herói tivera até aquele momento.

"Será surda?", perguntou ele. "Mas não; ontem ouvia perfeitamente os meus monossílabos."

- Então, sr. Coelho? - repetiu Ypsilanti -. Não toma chá conosco?

- Peço desculpas.

- E eu não lhas dou - acudiu dona Manuela -, há de tomar chá.

- Minha senhora, é-me impossível - disse Coelho com os olhos pregados em Lúcia -; tenho um objeto imperioso que me impede de aceitar este gracioso convite.

Coelho disse estas palavras com voz clara e firme. Lúcia moveu a cabeça para ele.

Coelho nem teve tempo de respirar; fez um gesto com os olhos, enquanto a moça, parecendo não reparar no gesto, volvia a cabeça para o tio e a tia, e mostrava-se completamente senhora de si.

"Não entendo", concluiu entre si o rapaz.

Conversaram ainda algum tempo, até que o pretendente se despediu sem que a noiva lhe desse o menor sinal de surpresa. Parecia que o amava há muito tempo.

- Que mistério será este? - dizia ele no carro -; seja o que for, a moça está caída; vou enfim ser rico.

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