Conto

Quem Não Quer Ser Lobo...

1872

Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em abril e maio de 1872, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Trata-se de parte de um ditado popular, que diz: "Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele", isto é, quem não quer ser tratado como o que não é, não deve fingir sê-lo; ou “quem se faz de muito esperto às vezes é logrado por outros, que lhe parecem tolos e não são”.

Na última noite de Carnaval do ano de 1863, houve em um dos hotéis desta boa cidade do Rio de Janeiro uma lauta ceia que durou até o raiar do dia. Os convivas saíram a pouco e pouco, e foram uns a pé, outros de carro, caminho do respectivo domicílio.

O último que saiu do hotel era um rapaz magro, alto, franzino na aparência, mas dotado de grande vigor de pulso, como alguns durante a noite e o baile tiveram ocasião de experimentar. Saiu um tanto trôpego, já pelo cansaço, já pelo vinho, e aos olhos não espantados das quitandeiras que passavam para o mercado, dos varredores das ruas e dos entregadores de jornais, foi tomando a direção da casa, que era no fim da rua da Ajuda.

Justamente no ponto em que se cruzam as ruas da Ajuda, Ourives, São José e Parto, o nosso tardio conviva deu com o pé num objeto; abaixou-se para ver o que era; era uma carteira. Olhou em volta de si; as ruas estavam desertas; nas lojas abertas, ninguém havia que o pudesse ver. Meteu a carteira no bolso e seguiu para casa.

O moleque já o esperava acordado depois de ter dormido em santa paz a noite inteira. O moço subiu as escadas lentamente, despiu-se, e antes de se entregar às delícias do sono examinou a carteira e o conteúdo.

A carteira era de couro da Rússia e fechada por uma fita de borracha. Abriu-a sofregamente e inventariou os objetos que continha:

Dois recibos de cabeleireiro.

Um de alfaiate.

Duas contas sem recibo.

Uma flor seca.

Dois cartões da barca Ferry.

Uma letra

Três advertências amargas de credores.

Cinco notas de dois mil-réis.

Uma carta de namoro.

Aparentemente eram outras tantas indicações para saber quem era o dono do achado, que não valia a pena guardar.

Engano.

As contas estavam rasgadas justamente no lugar onde devera estar o nome, e as cartas dos credores e de namoro não tinham sobrescrito.

- Leve o diabo o dono disto - exclamou o rapaz -, que me fez construir tantos castelos no ar!... Devia tê-lo adivinhado. O destino não me faz senão destas. José!

Veio o moleque.

- Acorda-me amanhã às 11 horas; preciso sair.

Dada esta ordem, meteu-se o rapaz nos lençóis, e o leitor pode fazer o mesmo se me está lendo de noite. Ao capítulo seguinte, saberá quem era o rapaz e o que saiu da carteira.

II

Z. Y.

Coelho era o nome do mancebo que festejara tão lautamente o Carnaval na última noite, que saíra por último do hotel, que encontrara a carteira na rua de São José e ficara logrado nas suas esperanças.

Tinha vinte e seis anos e exercia o emprego que lhe dava para comer, vestir, e gozar a vida, desde que não quisesse ir além dos limites razoáveis que a posição lhe impunha.

Nesse ponto, é que pegava o carro.

Coelho tinha mais ambições que dinheiro, e não há pior situação que a de um homem cujo espírito está acima das algibeiras. Ter a algibeira acima do espírito, dizem os poetas que não é cousa de todo desejável: estou que falam teoricamente.

Em todas as loterias comprava um meio bilhete que lhe saía invariavelmente branco. Um dia conseguiu tirar quarenta mil-réis, fato que coincidiu com a queda do ministério Caxias e a morte de um parente chegado. Gastou os vinte mil-réis recebidos no aluguel do carro, na compra de luvas para ir ao enterro, e deu o resto a um pobre.

Casamento rico era uma das suas ambições, mas em vão alongava os olhos pela cidade; não aparecia noiva que lhe ficasse à mão.

Coelho desistiu do intento.

Ultimamente parecia resignado à sorte. Começou a viver solitário, e desse programa só o Carnaval o arrancou por três dias. Foi muito festejado pelos amigos e respectivas damas e fez cousas do arco-da-velha. Mas aquela exceção acabou com o último dia: na quarta-feira de Cinzas reatou o fio à regra.

O achado da carteira pareceu-lhe providencial, e desde o lugar onde se deparara o misterioso objeto, até ao fim da rua da Ajuda foi fazendo mil castelos no ar.

Já sabemos como se lhe dissiparam todos. Ao dia seguinte, estava tão pobre como na véspera.

Só uma grande e excepcional dedicação aos negócios públicos poderia fazer que um rapaz fosse à repartição depois de uma terça-feira de carnaval. Coelho levantou-se da cama, à hora em que o criado foi cumprir a ordem de o acordar.

Almoçou pouco e tratou de vestir-se para sair. Antes disso, olhou de relance a carteira que estava sobre a secretária.

- José! - disse ele.

- Senhor.

- Hás de levar um anúncio ao Jornal do Commercio.

E olhando para a carteira:

- Se tu soubesses, miserável objeto, as ilusões que me deste ontem! E com as ilusões os terríveis desenganos que sofri... Por que não trouxeste em teu bojo uns vinte contos pelo menos? Era pouco, mas era alguma cousa...

Dizendo isto, foi maquinalmente abrindo a carteira. Inventariou de novo os papéis que havia dentro; abriu de novo todos os escaninhos; nada! Ia já deitá-la a um canto com um gesto de desespero, quando, entre duas notas de dois mil-réis, descobriu um papelinho dobrado.

- Que é isto? - disse ele.

O papel era fino, azulado e perfumado. Cheirava a amores. Coelho desdobrou-o rapidamente com a ansiedade própria de quem fareja mistérios. A letra era bem talhada e segura; poucas linhas eram e diziam assim:

18 de fevereiro.

Meu C...

Meu tio vai amanhã para a Tijuca, a minha tia há de ter visitas. Vem amanhã ao jardim; estarei na janela do fundo, e contar-te-ei o que se passou.

Tua L...

Eu faltaria à verdade e às regras mais elementares do romance se não dissesse que o rapaz leu e releu esta carta muitas vezes. Não faltaria tanto às regras do romance, mas faltaria com certeza à verdade, se não contasse que à sexta ou sétima leitura o nosso herói deu dois pulos no gabinete, pregou os olhos no teto e chegou a carta aos lábios.

A causa desta alegria na aparência inverossímil, sabê-la-á o leitor desde que eu lhe disser que o papel da carta era marcado, e que a marca constava de duas iniciais, Z. Y., que estas duas iniciais eram as de Zózimo Ypsilanti, e que este nome arrevesado era de um grego que naquele tempo negociava nesta praça.

dele, não há dúvida", dizia o rapaz consigo; "creio que em nenhuma outra língua há quem se chame Z. Y. Não; Z. Y. tem um perfume helênico. Trata-se da sobrinha Ypsilanti; é preciso tirar daqui as vantagens possíveis. Exploremos o assunto."

Toda esta cena se passara em frente do moleque, que desde que viu o senhor dar pulos na sala concluiu logicamente que estaria nas fronteiras da demência. Consequentemente deu dous passos para a porta com a ideia de fugir apenas visse da parte do Coelho algum gesto menos pacífico e ir logo dar parte ao inspetor do quarteirão, medida aliás inteiramente inútil, porque o inspetor só estava em casa das ave-marias em diante.

- José - disse Coelho -, não é preciso ir levar o anúncio ao Jornal do Commercio. Viste-me dar dous pulos há pouco?

- Vi, sim, senhor.

- Foi de alegria, José; recebi uma carta de meu irmão que está na Bahia. Fizemos as pazes, e é por isso que estou alegre. Recomendo-te, porém, não digas isto a ninguém; toma estes seis mil-réis.

E deu-lhe as três notas que achara na carteira.

- Sim, senhor, obrigado.

José saiu do gabinete mais tranquilo, contente com a explicação e o dinheiro.

III

L.

Coelho não saiu de casa antes das cinco horas. Gastou todo o tempo a investigar um meio de tirar vantagem da misteriosa carta, e tão depressa organizava um programa, como o achava impraticável. Se os reunisse todos em cinco atos e sete quadros, teria produzido um excelente melodrama.

Aqui, perguntará naturalmente o leitor se valia a pena gastar tanto tempo com uma carta que aparentemente não dizia nada. Perdoo à ignorância do leitor esta pergunta infundada, e passo a resumir as razões que justificam no meu herói as longas horas de meditação a que se entregou.

Lúcia Soares era uma moça de vinte e dois anos, sobrinha da mulher de Zózimo Ypsilanti, e universal herdeira de ambos. Ypsilanti passava por ter uma grande fortuna disfarçada; aparentemente tinha muito pouco, e havia quem lhe não desse quinze contos por tudo; mas a maioria do povo dizia que Ypsilanti era senhor de uns duzentos contos bem puxados. Os hábitos de avarento do grego davam alguma verossimilhança a este boato; vestia mal e grosseiramente; gastava pouco, regateava muito e não dava a ninguém. Se fosse pobre, ao menos se a opinião o julgasse tal, aquilo seria refletida economia; mas, com a fama de rico de que ele gozava, a economia era pura avareza.

Ora, se a riqueza fazia de Lúcia uma das três Graças, a natureza tinha-a feito uma das três Fúrias. Uma testa curtinha, uns olhos vesgos, pequenos e apagados, um lábio superior oblíquo, umas faces grossas, tais eram os dotes negativos que recebera do berço. A inteligência era como os olhos, vesga, pequena e apagada. A educação, porém, fora algum tanto esmerada. Lúcia tocava piano, sabia muitas cousas de costura, desenhava bem e falava corretamente a língua francesa.

Deram-lhe tais prendas os pais, que desse modo quiseram emendar a natureza, e deixar-lhe alguma herança real. Era órfã desde a idade de 17 anos, e vivia com os tios, que a amavam e procuravam fazê-la feliz.

Coelho já a conhecia de algum tempo; estivera com ela numa reunião em que lhe disseram que Lúcia seria senhora algum dia do melhor de duzentos contos de réis. Infelizmente estava o nosso mancebo à bica de outra herança de algarismo igual, com a diferença que a dona em questão era excepcionalmente bonita.

Coelho sabia perfeitamente que a riqueza deve rimar com beleza, e ainda não compreendia naquele tempo o verso solto. Agora, porém, que se achava desenganado de achar o casamento, já se contentava com uma toante e a sobrinha do grego era justamente o que lhe convinha.

De que maneira, porém, conseguiria ele, com o auxílio de uma carta, entrar na posse dos bens de Ypsilanti?

A sua primeira ideia foi menos ambiciosa. Sabendo que o tio de Lúcia era um velho irritável e severíssimo, lembrou-se de ir ameaçar o namorado de Lúcia, e restituir-lhe a carta mediante uma recompensa. Este meio porém pareceu-lhe indigno e foi posto de lado.

Às cinco horas nada tinha resolvido; saiu para jantar no hotel; e teve a felicidade de não encontrar conhecido. Enquanto comia, pensava no caso. Ao meio do jantar trouxe-lhe o criado um jornal para ler.

Recusou.

- Quer alguma ilustração?

- Não quero nada.

Dizendo isto, arredou os jornais com a mão. Nesse momento, porém, leu o título de um capítulo de folhetim que um dos jornais estava publicando.

O título era: - De noite todos os gatos são pardos.

- Ah!

Este grito soltado por Coelho chamou a atenção dos fregueses e dos criados da casa. Um destes correu assustado para ele e perguntou se se engasgara com algum osso. Coelho observou-lhe que, estando a comer ervas, era humanamente impossível engasgar-se com um osso, e pediu-lhe polidamente que o deixasse acabar de jantar.

A razão do grito é clara: o provérbio fora um raio de luz.

- De noite todos os gatos são pardos - repetia ele consigo -; irei ao jardim de Lúcia em lugar do namorado... e o resto à sorte.

Tendo adotado um plano, dispôs-se a jantar com mais tranquilidade. Comeu e bebeu à larga, pediu charutos e café, recostou-se na cadeira, e esperou que a digestão se fizesse em boa paz.

IV

No jardim

Às ave-marias estava Coelho em casa pronto e preparado para ir à entrevista. Não sabia bem o que lhe aconteceria nessa noite, mas tinha uma tal ou qual confiança no resultado da aventura.

Quase a pôr o pé na rua, surgiram-lhe no espírito duas dúvidas.

Primeira:

Seria tarde ou cedo a hora da entrevista?

Segunda:

Não iria ele encontrar-se com o outro, visto que a carta já estava aberta, o que era sinal de que ele a houvesse lido?

Durante um quarto de hora, esteve o nosso Coelho indeciso. A empresa chegou a parecer-lhe extravagante.

- O que estou fazendo é absurdo - dizia ele sentando-se no sofá -; não se faz isto na vida real, em 1863, na cidade do Rio de Janeiro. Estou simplesmente doido. Isto contado não se acredita.

Mas com estas ideias lhe foram aparecendo outras. Uma voz secreta lhe dizia que tentasse a empresa, porque o desenlace seria completo. Coelho ainda procurou chamar a razão em seu auxílio, mas era tarde: o destino tinha-se apoderado dele.

O jardim tinha uma porta para a rua. Eram oito horas da noite; e, posto que a rua não fosse muito frequentada, era ainda cedo para poder impunemente penetrar no jardim.

Coelho encostou-se ao muro, e, estando a porta aberta, enfiou o olhar para dentro. Descobriu duas janelas, uma fechada e outra aberta; no interior havia luz.

Entretanto nem no jardim, nem na casa havia o menor vestígio de gente.

"Naturalmente, está ela na sala", pensava Coelho; "o diabo é eu não saber a hora; pode vir alguém e descobrir-me... E se me fecham a porta? O outro talvez tenha alguma chave..."

Neste ponto, ouviu passos na calçada. Um vulto se aproximava costeando o muro.

"É ele", pensou Coelho.

Sua primeira ideia foi recuar, ou passar para o lado oposto; mas refletiu que esta mesma prevenção podia descobrir o seu intento.

O vulto veio andando, andando, andando, até que enfrentou com ele.

Parou.

Coelho estremeceu.

"Estou perdido!" disse ele consigo.

O vulto meteu a mão no bolso sem tirar os olhos de Coelho; sacou um objeto que ele não viu, mas que supôs ser um ferro; tirou o chapéu e disse polidamente:

- Faz-me favor do fogo?

Coelho respirou.

Deu-lhe o charuto em que o homem acendeu o seu e prosseguiu viagem, sem voltar os olhos para trás.

"Sempre sou um medroso!" disse Coelho consigo. "Creio que se o homem me lança a mão, eu morreria de medo. Mas também o caso é arriscado; se o meu rival se apresenta, estou perdido; pelo menos, entro em uma luta desagradável."

Neste caminho das suas reflexões, Coelho passou do medo ao terror. Parecia-lhe ver já diante de si o desconhecido namorado, munido de um cacete, ou de um punhal, e ele morto ou espancado, na sala da polícia, interrogado pela autoridade, examinado pelos médicos; e no dia seguinte o seu nome impresso em todas as folhas, e o caso contado com todos os pormenores.

Quis fugir.

Mas de repente sentiu um rumor no jardim.

Era a moça, que chegava com estrépito, sem dúvida para dar sinal ao namorado, caso ele estivesse nas imediações.

Coelho não pôde resistir.

Deitou um olhar à rua; ninguém o via nesse momento. Persignou-se e entrou no jardim.

Lúcia viu aparecer à porta o vulto e fez um sinal com o lenço. Coelho aproximou-se cautelosamente da janela, que ficava elevada. A ideia da existência de algum cão atravessou-lhe o espírito:

- Oh! Meu Deus! - disse ele

E estacou.

Mas a moça estava presente e não havia recuar. Continuou a andar na direção da janela.

- És tu, Carlos? - perguntou a moça.

- Sou eu - disse Coelho com voz fraca.

- Não pude vir mais cedo - disse Lúcia -, porque minha tia quis por força que eu ficasse na sala. Agora pude sair sem que ela reparasse. A nossa conversa não pode ser longa. Ninguém te viu?

- Ninguém, murmurou Coelho, que não queria ser descoberto pela voz.

- Sabes o que tem acontecido?

- Não.

- Meu tio anda desconfiado do nosso amor.

- Ah!

- Ouvi-o no domingo estar conversando com minha tia e dizendo que havia de saber quem era o brejeiro que andava a namorar-me, e que lhe havia de quebrar as costelas.

Ouviu-se um suspiro; ele pensou que era alguém de casa, mas reparou que era ela mesma.

- Não te parece que estamos mal? - perguntou a moça.

- Sim - disse Coelho.

- Mas que tens hoje? - disse ela -. Estás tão calado! Não me respondes senão com palavras soltas. Sofres alguma cousa?

- Oh!

- É aquela dor de peito que te continua a dar?

- É.

- Pobre Carlos!

Neste momento ouviu-se um rumor. Era um pisar mansinho na areia do jardim.

"Que será?" pensou Coelho.

- Guardei uma flor para ti - disse a moça -. Queres?

- Quero - grunhiu Coelho.

- Lá vai.

E Lúcia, debruçando-se na janela, atirou a flor, que Coelho apanhou e levou aos lábios.

- Céus! Que é isto? - murmurou a moça.

Era a voz de um cão que se ouvira, e a voz de alguém que animava o cão.

- Há alguém?

- Há - disse Coelho mais morto que vivo.

- Há de ser o preto.

E olhou na direção do latido.

Coelho não queria saber se era ou não o preto; a sua ideia definitiva era dirigir-se à porta e pôr-se ao fresco.

Nesse sentido, começou a recuar; mais o latido do cão aproximava-se e dentro de pouco tempo um vulto de homem e um vulto de cão se apresentaram em frente de Coelho.

O cão parou e pareceu consultar o homem. Este fez um sinal e chegou-se a Coelho.

Coelho encomendou a alma a Deus.

Um grito se ouviu da janela. Era Lúcia, que desapareceu imediatamente.

- Quem é o senhor? - disse o vulto.

- Eu... - balbuciou Coelho.

- Sim... diga!

- Eu...

- Eu... quem?

E como Coelho não respondesse, o vulto pegou-lhe no braço e procurou arrastá-lo para dentro. Coelho resistiu.

- Vou dizer tudo - gritou ele.

- Venha cá dentro; estaremos mais a gosto.

Era impossível resistir; Coelho acompanhou o vulto.

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