XX
No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar a família de Augusta.
O rapaz tinha curiosidade de saber que impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as recordações extintas.
Entrou firme e tranquilo na sala.
Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.
Feitos os cumprimentos do estilo depois de uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de voltar à província.
- A necessidade desapareceu por enquanto - disse Augusta -; meu tio demora-se algum tempo...
- O que é um prazer para nós todos - disse Madalena.
Daniel curvou-se em sinal de assentimento.
A conversa tomou outra direção até que chegaram algumas visitas mais.
Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta, no canto de uma janela.
- Recebeu uma carta minha? - perguntou a moça.
- Um simples bilhete.
- Isso mesmo. Não me julga leviana?
- Não; apenas audaz.
- É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o certo é que recebeu a carta... e veio.
- Viria em todo caso - observou Daniel -; mas o seu bilhete apressou a minha visita.
- Sabe o que lhe quero?
- Não adivinho.
- Lembra-se o que me disse há tempos?
- Disse-lhe que a amava.
- Pois bem, proponho-lhe uma cousa. Quer casar comigo?
Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando com a resposta, murmurou um monossílabo. Quem visse os dois pareceria que os papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta, a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.
No fim de alguns segundos, Augusta disse:
- Não responde?
- Quer que lhe responda? - perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio -. É tão singular esta pergunta feita por V. Exa.
- Singular? Não acho.
- Singular por dois motivos. O primeiro é que essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão trocados. O segundo é que, depois do que me disse há tempos, acho...
- Mudei de opinião.
- De opinião? - perguntou Daniel sorrindo.
- De sentimento, queria eu dizer - respondeu Augusta -. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.
E retirou-se da janela.
Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?
Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Enganá-la seria baixeza; mais valia ser franco.
Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revolução inesperada?
No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:
Minha senhora,
A singularidade da nossa situação só pode ter uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.
Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso ir fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.
Tudo isto é singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, o que quer? Eu, profundamente céptico, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a única razão do casamento.
À vista destas razões o meu procedimento, recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.
Fechou a carta e mandou-a.
Que impressão produziria no ânimo de Augusta?
XXI
Augusta não se mostrou irritada com a resposta de Daniel; conteve a irritação; revelar-se era contrário ao seu orgulho; não queria fazê-lo e não fez.
Mas poucos dias depois notavam-se as visitas repetidas de Luís à casa de Madalena; as pessoas que frequentavam a casa notavam também que as relações entre o deputado e Augusta eram muito mais cordiais do que antes.
Madalena quando percebeu isto estimou muito que a situação tivesse tomado aquele caráter; preferia vê-la casada com um homem que parecia merecer toda a confiança.
E seria namoro?
Alguns afirmavam que sim; outros, que não.
Todos concordavam, porém, que a situação entre ambos tinha-se modificado muito.
Luís pela sua parte já se acreditava mais feliz; não é que ela lhe desse esperanças positivas; mas todo o seu procedimento dava a entender isso mesmo.
Daniel depois da carta que escreveu a Augusta hesitou em frequentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o efeito da carta, resolveu lá ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois do último em que lá estivera.
Como o recebeu Augusta?
Daniel ia atravessando um corredor e encontrou Augusta, que vinha de uma sala interior. A moça apenas o viu foi mais depressa para ele, com um sorriso nos lábios, a ponto que o rapaz, contando com um gesto de despeito ou ao menos de indiferença, ficou como dizem, desapontado.
Trocaram alguns cumprimentos, depois dos quais Daniel perguntou a Augusta:
- Perdoou-me?
- Perdoei-o.
Augusta disse estas palavras com tanta graça que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.
Nessa noite, lá esteve Luís como de costume.
Madalena recebeu Daniel com um sorriso de piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer:
- O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!
Daniel mostrou-se amável com todos; Augusta não demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relação ao rapaz.
"Será isto natural? Ou é simplesmente hipocrisia?", perguntava Daniel consigo.
Luís estava radiante de amor. Já para ele não havia dúvida de que triunfava finalmente a sua perseverança.
A presença de Daniel, que, em outra época, o incomodara, já agora lhe era indiferente.
Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Luís que a situação estava toda a seu favor.
Não quis disputar-lha.
Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade com que Augusta passava de um a outro namoro.
A cousa não seria de admirar noutra mulher; mas na orgulhosa Augusta!
XXII
Daniel ao entrar em casa recebeu uma carta que lá lhe deixara Valadares.
Desta vez, o janota ia divorciar-se da mulher.
Daniel sorriu e atirou a carta a um lado, mas no dia seguinte de manhã, apenas saiu à rua, recebeu a notícia como certa.
Tinham-se finalmente separado aquelas duas almas que não foram feitas para ser unidas, apesar da conformidade das tendências que se notava entre ambas.
O próprio Valadares veio confirmar a notícia.
Daniel encontrou-o no Rossio, junto à esquina do Clube Fluminense.
- Sabes, meu rico Daniel?
- O quê?
- Que eu vou pôr a sela à margem; a sela é minha mulher.
- Tu és o burro - disse Daniel rindo.
- Com três r r r.
- Mas eu ouvi dizer que já estavam separados?
- Já me mudei de casa; agora vamos tratar judicialmente do divórcio.
- Mas já pensaste nisto maduramente?
- Já pensei demais; se me não separo tão depressa, ia para o hospício.
- Se lá estivesses há mais tempo, não te casavas.
- Isso é verdade...
Despediram-se. Daniel foi rindo interiormente da situação de Valadares.
Na primeira vez em que se achou em casa de Augusta, encontrou lá Amélia.
A mulher de Valadares estava alegre como se não se houvesse dado na sua vida acontecimento de grande monta.
Daniel não lhe disse nada; mas Amélia, na primeira ocasião em que se achou com ele mais separada dos outros, contou-lhe a mesma cousa que o marido, com a diferença de que desta vez a vítima era ela e não ele.
Daniel ouviu como amigo a narração que Amélia lhe fazia, mas absteve-se de dar resposta nenhuma.
"Tudo isto", pensava ele consigo, voltando para casa, "são argumentos para me não casar nunca!"
Anunciou-se um grande baile dado pelo tio de Augusta, que se retirava com toda a família para a província. O velho deputado não era dado a essas cousas; mas a pedido da sobrinha fez tudo o que ela lhe indicou.
Augusta queria ter na Corte um último triunfo.
Com efeito, na noite do baile esteve esplêndida. Ela tinha o condão de ser elegante, com simplicidade. Sobrava-lhe gosto. E tudo quanto podia fazer, fê-lo para aquela noite, que devia ser a sua última campanha.
Luís ficou deslumbrado quando a viu entrar na sala, e não menos deslumbrado ficou Daniel.
A moça aceitou Daniel para seu primeiro par.
- Sabe que está deslumbrante? - disse-lhe o rapaz, tomando o lugar na quadrilha.
- Deveras?
- É o que lhe digo. Demais, já todos os olhos lhe estão dizendo isto mesmo.
Depois dos antecedentes havidos entre Daniel e Augusta era impossível que fossem mais familiares.
Posto que Luís tivesse já grandes esperanças, com visos de certeza, de dominar completamente o coração de Augusta, todavia estava um pouco incomodado com as atenções que a moça tinha para com Daniel.
Sabia nada existir; mas receava, e bastava isso para atormentá-lo.
Tudo, porém, desapareceu quando Augusta aceitou-o para par da segunda quadrilha.
- Não tive a satisfação de dançar a primeira - disse Luís -, mas espero que me conceda a segunda.
- Não nos compromete isso? - disse Augusta.
- Por quê?
- Dizem que a segunda quadrilha é dos namorados.
Luís sorriu cheio de satisfação.
- Dizem, é verdade - respondeu ele sem saber bem o que dizia.
No correr da quadrilha, desapareceu a menor sombra de susto de Luís. Augusta estava mais do que nunca amável com ele.
XXIII
Justamente no fim da quadrilha, entrou na sala Amélia Valadares, sem o marido.
Já sabemos que Amélia era bonita; sabia vestir-se, exagerando um pouco as modas, é verdade; naquela noite vinha bem; não havia exageração e havia portanto elegância.
Poucas pessoas, duas ou três, sabiam até então da resolução tomada entre ela e o marido para se separarem. Por isso, foi-lhe fácil responder aos que lhe perguntavam por Valadares:
- Foi a um jantar político. Virá logo.
Desculpem a leviandade da rapariga; ela não dava mais de si.
Quando Amélia entrou, viu Augusta pelo braço de Luís, conversando amigavelmente com ele; pela noite adiante, reparou nessa intimidade maior que a que até então existia.
"Será amor?", perguntou ela consigo.
Na primeira ocasião que teve para conversar mais largamente com Augusta, aproveitou-a. Foram para uma pequena sala de descanso, e aí, enquanto se dançava uma valsa, sentaram-se as duas num sofá.
- Dou-lhe os meus parabéns - disse Amélia.
- Por quê?
- Está de namoro e casamento pronto.
- Nem namoro, nem casamento - respondeu Augusta.
- Mas há esperanças de união?
- Isso sim.
- Logo...
- Quer que lhe diga uma cousa, D. Amélia? É natural que eu acabe casando com o Luís, mas não é por amor dele...
Amélia neste ponto pensou em Valadares.
- Caso-me por duas razões: a primeira é para acabar com os pretendentes à minha mão - continuou Augusta.
- E os pretendentes ao coração?
- Oh! Esses!
- A segunda razão, qual é?
- A segunda razão - continuou Augusta -, é que o melhor meio de esquecer...
A moça hesitou.
- Acaba! - disse Amélia.
- Escuta, minha amiga; é um segredo que só aqui ficará. Sabe a quem é que eu amava e amo deveras?
- Ao Daniel?
- Sim.
- Eu desconfiava.
- Só aquele orgulho misturado de indiferença podia domar a minha indiferença e o meu orgulho.
- Mas então?...
- Então, é que, tendo recusado sempre o que ele pediu, que era a minha mão e meu coração, cheguei um dia a oferecer-lhos.
- E ele?
- Recusou.
- Pelintra!
- Não; era justo; a culpada fui eu. Mas agora é preciso carregar a minha cruz. Quero ir já para o Norte a ver se esqueço isto...
- O Luís há de ajudá-la a esquecer o amor de Daniel.
- Qual! - disse Augusta com um gesto de tanta indiferença que seria capaz de gelar o Vesúvio em horas de explosão.
- Acabou-se a valsa, vamos passear - disse Amélia.
E saíram da sala.
Apenas transpuseram a soleira, saiu de um gabinete contíguo um homem que ali se achava algum tempo antes de lá entrarem as duas raparigas.
Era Luís.
O gabinete era o lugar em que trabalhava ou lia o tio de Augusta. Precisando escrever um bilhete, Madalena o levou ali, onde se achava quando as duas moças chegaram.
Quando entrou na salinha, estava lívido.
Tinha ouvido a verdade mais cruel de todas; uma mulher que fingia gostar dele, sendo indiferente; que se casaria com ele para escapar aos pretendentes, e que, casando-se, levava no coração a lembrança e o amor de outro.
Luís ficou atordoado com o que ouvira; a sua primeira ideia foi aparecer no meio das duas moças, quando elas se confidenciavam; mas reconheceu que isso apenas o exporia ao ridículo.
Quando percebeu que elas tinham saído, fugiu do gabinete, onde abafava. As duas moças, como disse, tinham já saído; Luís ainda viu de longe a formosa cabeça de Augusta, dominando as outras como a de uma rainha.
Deu alguns passos cambaleando; depois atravessou a sala grande, e, sem que ninguém o percebesse, foi-se embora.
Durante a primeira meia hora, não se reparou na ausência dele. Mas, afinal, descobriu-se que Luís tinha saído.
- Sem dizer-mo! - pensou Augusta -. É singular!
No dia seguinte, Luís amanheceu doente; uma febre grave se declarou que o prostrou de cama oito dias. Mas era robusto e o organismo resistiu triunfante ao mal.
Quando se levantou, escreveu o seguinte bilhete a Augusta:
Minha senhora,
Ouvi tudo por simples acaso; é-me impossível satisfazer-lhe o desejo de casar por esquecer. Adeus.
Luís.
A carta não produziu grande comoção a Augusta; mas sentiu. Pela primeira vez, achou-se humilhada; arguia-lhe a consciência.
XXIV
Repelindo os que a amavam, leviana em suas ações, dotada de um caráter orgulhoso e altivo, Augusta teve o castigo dos próprios erros.
A carta de Luís inspirou-lhe a ideia de não casar mais.
E cumpriu a resolução.
Ninguém deve imitar Augusta; é um desses tipos raros, extravagantes, que nunca podem ser a esposa amante, nem a mãe carinhosa; em suma, é a mulher sem nenhum traço augusto.