Conto

Qual Dos Dois?

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em setembro, outubro, novembro e dezembro de 1872 e em janeiro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

XIX

No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.

A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntesis que se dera em sua existência.

A falar a verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que sentiu-se apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.

Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.

Ao entrar em casa não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.

O criado que o recebeu deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.

- Mas quem te perguntou por isso? - disse Daniel.

- Eu lhe digo, meu amo; é que de quando em quando mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava?

- Sim?

- É verdade. E há cousa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.

- Uma carta?

- Sim, senhor; está no seu gabinete.

- Deixa-me ir descalçar as botas.

Noutro tempo Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.

Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.

Era de Augusta.

Dizia assim:

Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.

Augusta.

- Olé! - disse Daniel em voz alta -; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã, veremos a cousa.

E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:

- João, ouviste o que eu disse agora?

- Eu só ouço o que meu amo quiser -, respondeu o criado sorrindo maliciosamente.

- Ainda bem. Dá-me de comer.

Daniel comeu tranquilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.

- Veio alguém procurar-me?

- Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.

- A mim?

- Disse-me isto.

- Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.

O criado saiu.

Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.

- Tudo é natural naquele gênio excêntrico - dizia ele consigo.

Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.

Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.

- Estava ansioso por ver-te - disse ele.

- Aqui estou. Tua mulher?

- Não me fales dela.

- Por quê?

- Quero propor ação de divórcio.

- Eu já contava com isso - disse Daniel tranquilamente -. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...

- Daniel!

- Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer cousas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dous espíritos frívolos.

- E tu, queres passar por um homem grave?

- Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta; são os frívolos; outros, um lenço de dous palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.

Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.

- Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.

- É resolução assentada?

- É.

- Então o meu conselho é inútil.

- Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem.

- Isso não!

- Por quê?

- Não quero intervir em negócios de família.

A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.

- É a tua última palavra? - perguntou ele.

- A última.

Seguiu-se a isto um longo silêncio.

Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.

- Como te foste de viagem? - perguntou Valadares.

- Bem.

- E quando eu penso que podia ter ido contigo.

Daniel não respondeu.

- A propósito - continuou Valadares -, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?

- Ah! Queria dizer que não podia esperar.

- Mas há certas palavras...

- Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?

- Leu. Ah! Se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?

- Conforme - disse Daniel -; para quem gosta da Corte e da rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.

- É verdade que se eu fosse perdia muita cousa.

- Sim?

- Cousas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?

- Aonde?

- Ao Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?

- Acho bom.

- Manda fazer um porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-a, porque vim depressa e é noite. E os padrões?

Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu prometendo voltar no dia seguinte a fim de ver se obtinha uma resposta dele.

- Sobre o divórcio ou sobre as calças?

- Uma e outra cousa - disse Valadares descendo a escada.

XX

No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar a família de Augusta.

O rapaz tinha curiosidade de saber que impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as recordações extintas.

Entrou firme e tranquilo na sala.

Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.

Feitos os cumprimentos do estilo depois de uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de voltar à província.

- A necessidade desapareceu por enquanto - disse Augusta -; meu tio demora-se algum tempo...

- O que é um prazer para nós todos - disse Madalena.

Daniel curvou-se em sinal de assentimento.

A conversa tomou outra direção até que chegaram algumas visitas mais.

Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta, no canto de uma janela.

- Recebeu uma carta minha? - perguntou a moça.

- Um simples bilhete.

- Isso mesmo. Não me julga leviana?

- Não; apenas audaz.

- É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o certo é que recebeu a carta... e veio.

- Viria em todo caso - observou Daniel -; mas o seu bilhete apressou a minha visita.

- Sabe o que lhe quero?

- Não adivinho.

- Lembra-se o que me disse há tempos?

- Disse-lhe que a amava.

- Pois bem, proponho-lhe uma cousa. Quer casar comigo?

Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando com a resposta, murmurou um monossílabo. Quem visse os dois pareceria que os papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta, a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.

No fim de alguns segundos, Augusta disse:

- Não responde?

- Quer que lhe responda? - perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio -. É tão singular esta pergunta feita por V. Exa.

- Singular? Não acho.

- Singular por dois motivos. O primeiro é que essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão trocados. O segundo é que, depois do que me disse há tempos, acho...

- Mudei de opinião.

- De opinião? - perguntou Daniel sorrindo.

- De sentimento, queria eu dizer - respondeu Augusta -. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.

E retirou-se da janela.

Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?

Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Enganá-la seria baixeza; mais valia ser franco.

Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revolução inesperada?

No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:

Minha senhora,

A singularidade da nossa situação só pode ter uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.

Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso ir fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.

Tudo isto é singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, o que quer? Eu, profundamente céptico, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a única razão do casamento.

À vista destas razões o meu procedimento, recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.

Fechou a carta e mandou-a.

Que impressão produziria no ânimo de Augusta?

XXI

Augusta não se mostrou irritada com a resposta de Daniel; conteve a irritação; revelar-se era contrário ao seu orgulho; não queria fazê-lo e não fez.

Mas poucos dias depois notavam-se as visitas repetidas de Luís à casa de Madalena; as pessoas que frequentavam a casa notavam também que as relações entre o deputado e Augusta eram muito mais cordiais do que antes.

Madalena quando percebeu isto estimou muito que a situação tivesse tomado aquele caráter; preferia vê-la casada com um homem que parecia merecer toda a confiança.

E seria namoro?

Alguns afirmavam que sim; outros, que não.

Todos concordavam, porém, que a situação entre ambos tinha-se modificado muito.

Luís pela sua parte já se acreditava mais feliz; não é que ela lhe desse esperanças positivas; mas todo o seu procedimento dava a entender isso mesmo.

Daniel depois da carta que escreveu a Augusta hesitou em frequentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o efeito da carta, resolveu lá ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois do último em que lá estivera.

Como o recebeu Augusta?

Daniel ia atravessando um corredor e encontrou Augusta, que vinha de uma sala interior. A moça apenas o viu foi mais depressa para ele, com um sorriso nos lábios, a ponto que o rapaz, contando com um gesto de despeito ou ao menos de indiferença, ficou como dizem, desapontado.

Trocaram alguns cumprimentos, depois dos quais Daniel perguntou a Augusta:

- Perdoou-me?

- Perdoei-o.

Augusta disse estas palavras com tanta graça que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.

Nessa noite, lá esteve Luís como de costume.

Madalena recebeu Daniel com um sorriso de piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer:

- O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!

Daniel mostrou-se amável com todos; Augusta não demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relação ao rapaz.

"Será isto natural? Ou é simplesmente hipocrisia?", perguntava Daniel consigo.

Luís estava radiante de amor. Já para ele não havia dúvida de que triunfava finalmente a sua perseverança.

A presença de Daniel, que, em outra época, o incomodara, já agora lhe era indiferente.

Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Luís que a situação estava toda a seu favor.

Não quis disputar-lha.

Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade com que Augusta passava de um a outro namoro.

A cousa não seria de admirar noutra mulher; mas na orgulhosa Augusta!

XXII

Daniel ao entrar em casa recebeu uma carta que lá lhe deixara Valadares.

Desta vez, o janota ia divorciar-se da mulher.

Daniel sorriu e atirou a carta a um lado, mas no dia seguinte de manhã, apenas saiu à rua, recebeu a notícia como certa.

Tinham-se finalmente separado aquelas duas almas que não foram feitas para ser unidas, apesar da conformidade das tendências que se notava entre ambas.

O próprio Valadares veio confirmar a notícia.

Daniel encontrou-o no Rossio, junto à esquina do Clube Fluminense.

- Sabes, meu rico Daniel?

- O quê?

- Que eu vou pôr a sela à margem; a sela é minha mulher.

- Tu és o burro - disse Daniel rindo.

- Com três r r r.

- Mas eu ouvi dizer que já estavam separados?

- Já me mudei de casa; agora vamos tratar judicialmente do divórcio.

- Mas já pensaste nisto maduramente?

- Já pensei demais; se me não separo tão depressa, ia para o hospício.

- Se lá estivesses há mais tempo, não te casavas.

- Isso é verdade...

Despediram-se. Daniel foi rindo interiormente da situação de Valadares.

Na primeira vez em que se achou em casa de Augusta, encontrou lá Amélia.

A mulher de Valadares estava alegre como se não se houvesse dado na sua vida acontecimento de grande monta.

Daniel não lhe disse nada; mas Amélia, na primeira ocasião em que se achou com ele mais separada dos outros, contou-lhe a mesma cousa que o marido, com a diferença de que desta vez a vítima era ela e não ele.

Daniel ouviu como amigo a narração que Amélia lhe fazia, mas absteve-se de dar resposta nenhuma.

"Tudo isto", pensava ele consigo, voltando para casa, "são argumentos para me não casar nunca!"

Anunciou-se um grande baile dado pelo tio de Augusta, que se retirava com toda a família para a província. O velho deputado não era dado a essas cousas; mas a pedido da sobrinha fez tudo o que ela lhe indicou.

Augusta queria ter na Corte um último triunfo.

Com efeito, na noite do baile esteve esplêndida. Ela tinha o condão de ser elegante, com simplicidade. Sobrava-lhe gosto. E tudo quanto podia fazer, fê-lo para aquela noite, que devia ser a sua última campanha.

Luís ficou deslumbrado quando a viu entrar na sala, e não menos deslumbrado ficou Daniel.

A moça aceitou Daniel para seu primeiro par.

- Sabe que está deslumbrante? - disse-lhe o rapaz, tomando o lugar na quadrilha.

- Deveras?

- É o que lhe digo. Demais, já todos os olhos lhe estão dizendo isto mesmo.

Depois dos antecedentes havidos entre Daniel e Augusta era impossível que fossem mais familiares.

Posto que Luís tivesse já grandes esperanças, com visos de certeza, de dominar completamente o coração de Augusta, todavia estava um pouco incomodado com as atenções que a moça tinha para com Daniel.

Sabia nada existir; mas receava, e bastava isso para atormentá-lo.

Tudo, porém, desapareceu quando Augusta aceitou-o para par da segunda quadrilha.

- Não tive a satisfação de dançar a primeira - disse Luís -, mas espero que me conceda a segunda.

- Não nos compromete isso? - disse Augusta.

- Por quê?

- Dizem que a segunda quadrilha é dos namorados.

Luís sorriu cheio de satisfação.

- Dizem, é verdade - respondeu ele sem saber bem o que dizia.

No correr da quadrilha, desapareceu a menor sombra de susto de Luís. Augusta estava mais do que nunca amável com ele.

XXIII

Justamente no fim da quadrilha, entrou na sala Amélia Valadares, sem o marido.

Já sabemos que Amélia era bonita; sabia vestir-se, exagerando um pouco as modas, é verdade; naquela noite vinha bem; não havia exageração e havia portanto elegância.

Poucas pessoas, duas ou três, sabiam até então da resolução tomada entre ela e o marido para se separarem. Por isso, foi-lhe fácil responder aos que lhe perguntavam por Valadares:

- Foi a um jantar político. Virá logo.

Desculpem a leviandade da rapariga; ela não dava mais de si.

Quando Amélia entrou, viu Augusta pelo braço de Luís, conversando amigavelmente com ele; pela noite adiante, reparou nessa intimidade maior que a que até então existia.

"Será amor?", perguntou ela consigo.

Na primeira ocasião que teve para conversar mais largamente com Augusta, aproveitou-a. Foram para uma pequena sala de descanso, e aí, enquanto se dançava uma valsa, sentaram-se as duas num sofá.

- Dou-lhe os meus parabéns - disse Amélia.

- Por quê?

- Está de namoro e casamento pronto.

- Nem namoro, nem casamento - respondeu Augusta.

- Mas há esperanças de união?

- Isso sim.

- Logo...

- Quer que lhe diga uma cousa, D. Amélia? É natural que eu acabe casando com o Luís, mas não é por amor dele...

Amélia neste ponto pensou em Valadares.

- Caso-me por duas razões: a primeira é para acabar com os pretendentes à minha mão - continuou Augusta.

- E os pretendentes ao coração?

- Oh! Esses!

- A segunda razão, qual é?

- A segunda razão - continuou Augusta -, é que o melhor meio de esquecer...

A moça hesitou.

- Acaba! - disse Amélia.

- Escuta, minha amiga; é um segredo que só aqui ficará. Sabe a quem é que eu amava e amo deveras?

- Ao Daniel?

- Sim.

- Eu desconfiava.

- Só aquele orgulho misturado de indiferença podia domar a minha indiferença e o meu orgulho.

- Mas então?...

- Então, é que, tendo recusado sempre o que ele pediu, que era a minha mão e meu coração, cheguei um dia a oferecer-lhos.

- E ele?

- Recusou.

- Pelintra!

- Não; era justo; a culpada fui eu. Mas agora é preciso carregar a minha cruz. Quero ir para o Norte a ver se esqueço isto...

- O Luís há de ajudá-la a esquecer o amor de Daniel.

- Qual! - disse Augusta com um gesto de tanta indiferença que seria capaz de gelar o Vesúvio em horas de explosão.

- Acabou-se a valsa, vamos passear - disse Amélia.

E saíram da sala.

Apenas transpuseram a soleira, saiu de um gabinete contíguo um homem que ali se achava algum tempo antes de lá entrarem as duas raparigas.

Era Luís.

O gabinete era o lugar em que trabalhava ou lia o tio de Augusta. Precisando escrever um bilhete, Madalena o levou ali, onde se achava quando as duas moças chegaram.

Quando entrou na salinha, estava lívido.

Tinha ouvido a verdade mais cruel de todas; uma mulher que fingia gostar dele, sendo indiferente; que se casaria com ele para escapar aos pretendentes, e que, casando-se, levava no coração a lembrança e o amor de outro.

Luís ficou atordoado com o que ouvira; a sua primeira ideia foi aparecer no meio das duas moças, quando elas se confidenciavam; mas reconheceu que isso apenas o exporia ao ridículo.

Quando percebeu que elas tinham saído, fugiu do gabinete, onde abafava. As duas moças, como disse, tinham já saído; Luís ainda viu de longe a formosa cabeça de Augusta, dominando as outras como a de uma rainha.

Deu alguns passos cambaleando; depois atravessou a sala grande, e, sem que ninguém o percebesse, foi-se embora.

Durante a primeira meia hora, não se reparou na ausência dele. Mas, afinal, descobriu-se que Luís tinha saído.

- Sem dizer-mo! - pensou Augusta -. É singular!

No dia seguinte, Luís amanheceu doente; uma febre grave se declarou que o prostrou de cama oito dias. Mas era robusto e o organismo resistiu triunfante ao mal.

Quando se levantou, escreveu o seguinte bilhete a Augusta:

Minha senhora,

Ouvi tudo por simples acaso; é-me impossível satisfazer-lhe o desejo de casar por esquecer. Adeus.

Luís.

A carta não produziu grande comoção a Augusta; mas sentiu. Pela primeira vez, achou-se humilhada; arguia-lhe a consciência.

XXIV

Repelindo os que a amavam, leviana em suas ações, dotada de um caráter orgulhoso e altivo, Augusta teve o castigo dos próprios erros.

A carta de Luís inspirou-lhe a ideia de não casar mais.

E cumpriu a resolução.

Ninguém deve imitar Augusta; é um desses tipos raros, extravagantes, que nunca podem ser a esposa amante, nem a mãe carinhosa; em suma, é a mulher sem nenhum traço augusto.

A+
A-