Conto

Qual Dos Dois?

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em setembro, outubro, novembro e dezembro de 1872 e em janeiro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

XVI

Daniel resolveu responder às tolices de Amélia com a partida imediata, sem embargo da promessa anteriormente feita. Ao princípio repugnou-lhe o ato, que era descortês; mas venceu o aborrecimento que Amélia lhe causara na tarde em que foi visitá-lo.

E justamente quando Valadares agradecia à mulher os esforços que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para Minas, acompanhado de um simples criado.

Valadares saíra de casa para ajustar objetos de que precisava para a viagem. Às duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel.

- Onde está o amo? - perguntou a um criado que lá encontrou.

- Saiu - respondeu o criado.

- Volta?

- Foi para Minas.

- Para Minas...

Valadares ficou contrariadíssimo com a notícia.

- Parece - disse o criado - que eu tenho aqui uma carta para o senhor.

- Para mim? Dá cá.

O criado foi buscar a carta e entregou-a a Valadares.

A carta dizia assim:

Valadares,

Prometi à tua mulher que adiaria a viagem; mas sinto não poder cumprir a palavra prometida a tão gentil senhora, porque entrou-me por casa uma fúria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juízo que pôs a minha sala e o meu espírito em desordem. Para esquecer esta hóspede inesperada só me resta o recurso de precipitar a viagem. Até lá ou até à volta.

Teu

Daniel.

Valadares leu esta carta e não a entendeu muito.

Quando Amélia soube que Daniel, a despeito da promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como as impressões da moça eram passageiras, o ressentimento não lhe durou mais de um quarto de hora. Ficou, porém, despeitada com o bilhete de despedida de Daniel. Aquilo que Valadares não compreendia, Amélia o compreendia demais. Achou-se injuriada com as expressões da carta e mais ainda porque fora sem dúvida escrita na previsão de ser lida por ela.

Valadares resolveu seguir viagem na época escolhida por ele; mas um acontecimento estranho à nossa história impediu que a viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moças, Valadares sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras de uma Laís de contrabando.

Nunca mais falou em viajar.

Amélia ainda tentou mandá-lo tomar ares; e Valadares, que em todas as ocasiões, era o tipo do esposo maricas, desta vez resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.

XVII

Quando Augusta soube realmente que Daniel partira para Minas, sentiu uma decepção; apesar da despedida solene que este lhe fizera e à família, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.

Não supunha, note-se, que Daniel estivesse a fazer comédia quando se despediu deles; mas acreditava que lhe seria difícil deixar a Corte. É que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel amava-a loucamente.

O advérbio era demais.

Daniel amava a rapariga e justamente para acabar com esse germe, que já começava a desenvolver-se no coração, é que ele fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens são excelentes contra o reumatismo da coração.

Augusta sentiu-se ferida; o despeito pôde muito naquela ocasião.

A sua esperança foi que, demorando um último olhar na janela da casa dela, Daniel não pudesse seguir viagem e tornasse a entrar para casa, dispondo-se a encadear a sua existência ali a seus pés.

A esperança foi iludida.

Mas para que desejava Augusta isso, se o não amava?

Não sei; desejava-o.

Madalena procurou sondar o coração da filha depois da partida de Daniel.

- Que sentes tu a respeito desta ida súbita do Dr. Daniel? - perguntou-lhe uma tarde.

- Eu, nada - respondeu Augusta -. Acha que devo sentir alguma cousa?

- Não; era simples pergunta. Sabes que ele gostava de ti.

- Perdia o tempo.

Nenhuma palavra mais se conseguia arrancar a Augusta relativamente a este negócio.

Um dia, Luís estando com ela anunciou que voltava para a província, e que estava disposto a abandonar a carreira política. Acrescentou que até então tivera alguma esperança, mas que essa mesma se desvanecera.

- Pensei - disse Augusta -, pensei que já não houvessem esperanças para o senhor.

- Havia uma...

- Qual?

- A de ser amado quando já todos se houvessem esquecido de mim!

- Perdeu essa esperança? - disse Augusta -. Olhe que não perdeu grande cousa.

- Perdi, porque ela era fundada numa base falsa. Eu acreditava até agora que o seu coração era mudo.

- Ah!

- Mas sei que não; o seu coração falou.

- Que disse ele?

Augusta estava disposta a gracejar; e suas últimas palavras foram ditas com um riso de escárnio, cujo segredo só ela possuía.

- Disse que ama a um ausente...

Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou fixamente para Luís e disse:

- Ou é ilusão sua ou calúnia de alguém! Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu coração...

- Importa-me muito, D. Augusta. Não quero falar-lhe de amor, pois que já mo proibiu; mas permita que lhe pergunte só por que razão eu...

Augusta lançou-lhe um olhar de profundo escárnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu.

- É demais! - disse Luís.

Pegou no chapéu e saiu.

- Que é isto? Por que motivo nutro eu uma esperança vã? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher é uma estátua; não tem sangue, nem alma. É feita de um pedaço de mármore. Amar para quê? Para ter neste amor o meu tormento e a minha humilhação? Não! É demais! Tudo precisa de um termo.

Desse dia em diante, Luís não voltou à casa de Madalena.

XVIII

O procedimento de Augusta era objeto da curiosidade de todos.

- Por que motivo esta moça recusa todos os pretendentes? - diziam as mães de família -; parece que não quer-se casar. Quererá ficar para tia?

O argumento era singular; devia ocorrer a todos que Augusta recusava os pretendentes todos justamente por que não gostava de nenhum.

Mas a reflexão das mães de família era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais.

Madalena respeitava os escrúpulos da filha; queria vê-la feliz e entendia que o melhor meio era casá-la com quem lhe falasse ao coração.

Mas onde estava esse fênix, visto que nenhum até agora lhe agradara?

Augusta conservava-se na sua torre de marfim, pouco disposta a ceder às instâncias nem de Luís, nem de Daniel. Viu partir um e outro sem a menor emoção. Quem teria razão? Os que esperavam que chegasse a Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples estátua de mármore?

Tinham já corrido dois meses depois da partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amélia na rua da Quitanda, indo a primeira com a mãe ver umas fazendas, e vindo Amélia de um passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares gracejara muito por essa circunstância, apenas encontrou as duas senhoras:

- Não repare, D. Madalena; o sol e a lua ao pé um do outro é sinal evidente de eclipse.

Depois de alguns minutos de conversa, Amélia seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupações. Amélia jantaria com as amigas e voltaria à noite para casa. Valadares escusou-se dizendo que tinha um jantar diplomático. Com efeito, ao jantar a que ele assistiu estiveram presentes alguns secretários e adidos de legação; mas o caráter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as haviam, não eram de embaixada.

- Já sabe que a nossa partida está próxima? - disse Madalena a Amélia, apenas chegaram à casa.

- Ah!

- Apenas se fecharem as câmaras - continuou Madalena -, vou deixar o seu Rio de Janeiro.

Amélia olhou para Augusta com uma insistência que a moça não compreendeu.

- Vai deixar o meu Rio de Janeiro - disse Amélia depois de alguns instantes -. Não gosta dele?

- Muito, decerto.

- É magnífico - disse Augusta -; mas a nossa província...

- Amor de bairro - respondeu Amélia sorrindo.

- Será, será, mas não somos todos assim?

- Conforme. Às vezes muda-se de sentimento, conforme os afetos que encontramos nos lugares novos.

- Isso não sei.

- Não achou cá alguma cousa?

- Cousa nenhuma.

Augusta disse isto com tanta frieza e firmeza, que Amélia não pôde reprimir um gesto de espanto.

- Pois olhe, disseram-me...

- O quê? - perguntou Madalena.

Amélia hesitou alguns instantes.

- Estou gracejando - disse ela.

Mas daí a algum tempo, achando-se a sós com Augusta, disse-lhe:

- Disseram-me que estavas apaixonada pelo Daniel.

- Eu? Qual!

- Disseram-me... Juras que não é verdade?

- Juro.

- Então, toma cuidado!...

- Por quê?

- Porque podem dizê-lo e então...

- Que importa que o digam? - disse Augusta.

- Perdão; importa muito. Se disserem por exemplo que a senhora fez presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou um botão de camisa...

- Dirão uma tolice.

- Mas se disserem que ele possui esse objeto?

- Que ele possui? Ora essa! Está brincando, D. Amélia.

Amélia contou-lhe o episódio da casa de Daniel.

XIX

No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.

A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntesis que se dera em sua existência.

A falar a verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que sentiu-se apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.

Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.

Ao entrar em casa não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.

O criado que o recebeu deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.

- Mas quem te perguntou por isso? - disse Daniel.

- Eu lhe digo, meu amo; é que de quando em quando mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava?

- Sim?

- É verdade. E há cousa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.

- Uma carta?

- Sim, senhor; está no seu gabinete.

- Deixa-me ir descalçar as botas.

Noutro tempo Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.

Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.

Era de Augusta.

Dizia assim:

Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.

Augusta.

- Olé! - disse Daniel em voz alta -; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã, veremos a cousa.

E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:

- João, ouviste o que eu disse agora?

- Eu só ouço o que meu amo quiser -, respondeu o criado sorrindo maliciosamente.

- Ainda bem. Dá-me de comer.

Daniel comeu tranquilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.

- Veio alguém procurar-me?

- Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.

- A mim?

- Disse-me isto.

- Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.

O criado saiu.

Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.

- Tudo é natural naquele gênio excêntrico - dizia ele consigo.

Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.

Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.

- Estava ansioso por ver-te - disse ele.

- Aqui estou. Tua mulher?

- Não me fales dela.

- Por quê?

- Quero propor ação de divórcio.

- Eu já contava com isso - disse Daniel tranquilamente -. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...

- Daniel!

- Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer cousas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dous espíritos frívolos.

- E tu, queres passar por um homem grave?

- Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta; são os frívolos; outros, um lenço de dous palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.

Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.

- Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.

- É resolução assentada?

- É.

- Então o meu conselho é inútil.

- Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem.

- Isso não!

- Por quê?

- Não quero intervir em negócios de família.

A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.

- É a tua última palavra? - perguntou ele.

- A última.

Seguiu-se a isto um longo silêncio.

Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.

- Como te foste de viagem? - perguntou Valadares.

- Bem.

- E quando eu penso que podia ter ido contigo.

Daniel não respondeu.

- A propósito - continuou Valadares -, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?

- Ah! Queria dizer que não podia esperar.

- Mas há certas palavras...

- Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?

- Leu. Ah! Se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?

- Conforme - disse Daniel -; para quem gosta da Corte e da rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.

- É verdade que se eu fosse perdia muita cousa.

- Sim?

- Cousas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?

- Aonde?

- Ao Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?

- Acho bom.

- Manda fazer um porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-a, porque vim depressa e é noite. E os padrões?

Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu prometendo voltar no dia seguinte a fim de ver se obtinha uma resposta dele.

- Sobre o divórcio ou sobre as calças?

- Uma e outra cousa - disse Valadares descendo a escada.

XX

No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar a família de Augusta.

O rapaz tinha curiosidade de saber que impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as recordações extintas.

Entrou firme e tranquilo na sala.

Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.

Feitos os cumprimentos do estilo depois de uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de voltar à província.

- A necessidade desapareceu por enquanto - disse Augusta -; meu tio demora-se algum tempo...

- O que é um prazer para nós todos - disse Madalena.

Daniel curvou-se em sinal de assentimento.

A conversa tomou outra direção até que chegaram algumas visitas mais.

Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta, no canto de uma janela.

- Recebeu uma carta minha? - perguntou a moça.

- Um simples bilhete.

- Isso mesmo. Não me julga leviana?

- Não; apenas audaz.

- É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o certo é que recebeu a carta... e veio.

- Viria em todo caso - observou Daniel -; mas o seu bilhete apressou a minha visita.

- Sabe o que lhe quero?

- Não adivinho.

- Lembra-se o que me disse há tempos?

- Disse-lhe que a amava.

- Pois bem, proponho-lhe uma cousa. Quer casar comigo?

Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando com a resposta, murmurou um monossílabo. Quem visse os dois pareceria que os papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta, a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.

No fim de alguns segundos, Augusta disse:

- Não responde?

- Quer que lhe responda? - perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio -. É tão singular esta pergunta feita por V. Exa.

- Singular? Não acho.

- Singular por dois motivos. O primeiro é que essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão trocados. O segundo é que, depois do que me disse há tempos, acho...

- Mudei de opinião.

- De opinião? - perguntou Daniel sorrindo.

- De sentimento, queria eu dizer - respondeu Augusta -. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.

E retirou-se da janela.

Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?

Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Enganá-la seria baixeza; mais valia ser franco.

Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revolução inesperada?

No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:

Minha senhora,

A singularidade da nossa situação só pode ter uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.

Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso ir fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.

Tudo isto é singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, o que quer? Eu, profundamente céptico, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a única razão do casamento.

À vista destas razões o meu procedimento, recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.

Fechou a carta e mandou-a.

Que impressão produziria no ânimo de Augusta?

XXI

Augusta não se mostrou irritada com a resposta de Daniel; conteve a irritação; revelar-se era contrário ao seu orgulho; não queria fazê-lo e não fez.

Mas poucos dias depois notavam-se as visitas repetidas de Luís à casa de Madalena; as pessoas que frequentavam a casa notavam também que as relações entre o deputado e Augusta eram muito mais cordiais do que antes.

Madalena quando percebeu isto estimou muito que a situação tivesse tomado aquele caráter; preferia vê-la casada com um homem que parecia merecer toda a confiança.

E seria namoro?

Alguns afirmavam que sim; outros, que não.

Todos concordavam, porém, que a situação entre ambos tinha-se modificado muito.

Luís pela sua parte já se acreditava mais feliz; não é que ela lhe desse esperanças positivas; mas todo o seu procedimento dava a entender isso mesmo.

Daniel depois da carta que escreveu a Augusta hesitou em frequentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o efeito da carta, resolveu lá ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois do último em que lá estivera.

Como o recebeu Augusta?

Daniel ia atravessando um corredor e encontrou Augusta, que vinha de uma sala interior. A moça apenas o viu foi mais depressa para ele, com um sorriso nos lábios, a ponto que o rapaz, contando com um gesto de despeito ou ao menos de indiferença, ficou como dizem, desapontado.

Trocaram alguns cumprimentos, depois dos quais Daniel perguntou a Augusta:

- Perdoou-me?

- Perdoei-o.

Augusta disse estas palavras com tanta graça que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.

Nessa noite, lá esteve Luís como de costume.

Madalena recebeu Daniel com um sorriso de piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer:

- O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!

Daniel mostrou-se amável com todos; Augusta não demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relação ao rapaz.

"Será isto natural? Ou é simplesmente hipocrisia?", perguntava Daniel consigo.

Luís estava radiante de amor. Já para ele não havia dúvida de que triunfava finalmente a sua perseverança.

A presença de Daniel, que, em outra época, o incomodara, já agora lhe era indiferente.

Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Luís que a situação estava toda a seu favor.

Não quis disputar-lha.

Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade com que Augusta passava de um a outro namoro.

A cousa não seria de admirar noutra mulher; mas na orgulhosa Augusta!

A+
A-