XIV
Daniel não pôde conter um gesto de despeito apenas Amélia saiu.
Tinha vontade de ir agarrá-la e castigá-la de toda a leviandade com que procedeu entrando em sua casa. O incidente da liga, e as meias palavras com que ela o encerrou, tudo estava fervendo no espírito até há pouco tranquilo de Daniel.
- Que leviana! - dizia consigo -. Vir à casa de um homem solteiro por um modo tão singular; fazer-me o singular pedido de ir com o marido para fora; revolver os meus móveis; caluniar pessoas a quem abraça... Ai, Valadares, que mulherzinha te caiu nos braços!
XV
Valadares era menos exigente que Daniel.
O que lhe parecia mal em Amélia eram as impertinências da mulher faceira, os caprichos, as imposições, de maneira que tudo acabaria se estivesse algum tempo fora dela... a espairecer.
Cuidou que a viagem a Minas era boa ocasião; mas que Daniel não quis adiar a sua viagem para esperá-lo. Amélia soube disso e foi ajudá-lo nos seus desejos pedindo esse favor ao próprio Daniel.
Quando no dia seguinte, de manhã, Valadares encontrou a mulher à mesa do almoço, disse-lhe ela:
- Já preparaste as malas?
- Para quê?
- Para a viagem a Minas.
- Só, não vou.
- Vais com o Daniel.
- Mas ele não quer adiar...
- Quer.
- Como sabes?
- Pedi-lho eu.
Valadares tomou a liberdade de abraçar entusiasticamente a mulher diante da criada, cujo pudor lhe aconselhou imediatamente uma excursão à cozinha.
- Não sabes como te agradeço o que fizeste por mim.
- Ah! Tens muito prazer em ir a Minas? Queres esquecer-me?
- Eu, lindinha? Nem por sombras. Quero estudar a província, e além disso preciso de tomar ares. O Valadão diz que eu estou caminhando para a cova, e que preciso reforçar a minha constituição. Sabe Deus que saudades levo de ti! Mas tu não queres ir.
- Bem sabes que não posso.
O almoço terminou alegremente; parecia que aqueles dois galés já saboreavam a felicidade de se separarem durante algum tempo.
XVI
Daniel resolveu responder às tolices de Amélia com a partida imediata, sem embargo da promessa anteriormente feita. Ao princípio repugnou-lhe o ato, que era descortês; mas venceu o aborrecimento que Amélia lhe causara na tarde em que foi visitá-lo.
E justamente quando Valadares agradecia à mulher os esforços que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para Minas, acompanhado de um simples criado.
Valadares saíra de casa para ajustar objetos de que precisava para a viagem. Às duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel.
- Onde está o amo? - perguntou a um criado que lá encontrou.
- Saiu - respondeu o criado.
- Volta?
- Foi para Minas.
- Para Minas...
Valadares ficou contrariadíssimo com a notícia.
- Parece - disse o criado - que eu tenho aqui uma carta para o senhor.
- Para mim? Dá cá.
O criado foi buscar a carta e entregou-a a Valadares.
A carta dizia assim:
Valadares,
Prometi à tua mulher que adiaria a viagem; mas sinto não poder cumprir a palavra prometida a tão gentil senhora, porque entrou-me por casa uma fúria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juízo que pôs a minha sala e o meu espírito em desordem. Para esquecer esta hóspede inesperada só me resta o recurso de precipitar a viagem. Até lá ou até à volta.
Teu
Daniel.
Valadares leu esta carta e não a entendeu muito.
Quando Amélia soube que Daniel, a despeito da promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como as impressões da moça eram passageiras, o ressentimento não lhe durou mais de um quarto de hora. Ficou, porém, despeitada com o bilhete de despedida de Daniel. Aquilo que Valadares não compreendia, Amélia o compreendia demais. Achou-se injuriada com as expressões da carta e mais ainda porque fora sem dúvida escrita na previsão de ser lida por ela.
Valadares resolveu seguir viagem na época escolhida por ele; mas um acontecimento estranho à nossa história impediu que a viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moças, Valadares sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras de uma Laís de contrabando.
Nunca mais falou em viajar.
Amélia ainda tentou mandá-lo tomar ares; e Valadares, que em todas as ocasiões, era o tipo do esposo maricas, desta vez resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.
XVII
Quando Augusta soube realmente que Daniel partira para Minas, sentiu uma decepção; apesar da despedida solene que este lhe fizera e à família, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.
Não supunha, note-se, que Daniel estivesse a fazer comédia quando se despediu deles; mas acreditava que lhe seria difícil deixar a Corte. É que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel amava-a loucamente.
O advérbio era demais.
Daniel amava a rapariga e justamente para acabar com esse germe, que já começava a desenvolver-se no coração, é que ele fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens são excelentes contra o reumatismo da coração.
Augusta sentiu-se ferida; o despeito pôde muito naquela ocasião.
A sua esperança foi que, demorando um último olhar na janela da casa dela, Daniel não pudesse seguir viagem e tornasse a entrar para casa, dispondo-se a encadear a sua existência ali a seus pés.
A esperança foi iludida.
Mas para que desejava Augusta isso, se o não amava?
Não sei; desejava-o.
Madalena procurou sondar o coração da filha depois da partida de Daniel.
- Que sentes tu a respeito desta ida súbita do Dr. Daniel? - perguntou-lhe uma tarde.
- Eu, nada - respondeu Augusta -. Acha que devo sentir alguma cousa?
- Não; era simples pergunta. Sabes que ele gostava de ti.
Nenhuma palavra mais se conseguia arrancar a Augusta relativamente a este negócio.
Um dia, Luís estando com ela anunciou que voltava para a província, e que estava disposto a abandonar a carreira política. Acrescentou que até então tivera alguma esperança, mas que essa mesma se desvanecera.
- Pensei - disse Augusta -, pensei que já não houvessem esperanças para o senhor.
- Havia uma...
- Qual?
- A de ser amado quando já todos se houvessem esquecido de mim!
- Perdeu essa esperança? - disse Augusta -. Olhe que não perdeu grande cousa.
- Perdi, porque ela era fundada numa base falsa. Eu acreditava até agora que o seu coração era mudo.
- Ah!
- Mas sei que não; o seu coração falou.
- Que disse ele?
Augusta estava disposta a gracejar; e suas últimas palavras foram ditas com um riso de escárnio, cujo segredo só ela possuía.
- Disse que ama a um ausente...
Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou fixamente para Luís e disse:
- Ou é ilusão sua ou calúnia de alguém! Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu coração...
- Importa-me muito, D. Augusta. Não quero falar-lhe de amor, pois que já mo proibiu; mas permita que lhe pergunte só por que razão eu...
Augusta lançou-lhe um olhar de profundo escárnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu.
- É demais! - disse Luís.
Pegou no chapéu e saiu.
- Que é isto? Por que motivo nutro eu uma esperança vã? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher é uma estátua; não tem sangue, nem alma. É feita de um pedaço de mármore. Amar para quê? Para ter neste amor o meu tormento e a minha humilhação? Não! É demais! Tudo precisa de um termo.
Desse dia em diante, Luís não voltou à casa de Madalena.
XVIII
O procedimento de Augusta era objeto da curiosidade de todos.
- Por que motivo esta moça recusa todos os pretendentes? - diziam as mães de família -; parece que não quer-se casar. Quererá ficar para tia?
O argumento era singular; devia ocorrer a todos que Augusta recusava os pretendentes todos justamente por que não gostava de nenhum.
Mas a reflexão das mães de família era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais.
Madalena respeitava os escrúpulos da filha; queria vê-la feliz e entendia que o melhor meio era casá-la com quem lhe falasse ao coração.
Mas onde estava esse fênix, visto que nenhum até agora lhe agradara?
Augusta conservava-se na sua torre de marfim, pouco disposta a ceder às instâncias nem de Luís, nem de Daniel. Viu partir um e outro sem a menor emoção. Quem teria razão? Os que esperavam que chegasse a Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples estátua de mármore?
Tinham já corrido dois meses depois da partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amélia na rua da Quitanda, indo a primeira com a mãe ver umas fazendas, e vindo Amélia de um passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares gracejara muito por essa circunstância, apenas encontrou as duas senhoras:
- Não repare, D. Madalena; o sol e a lua ao pé um do outro é sinal evidente de eclipse.
Depois de alguns minutos de conversa, Amélia seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupações. Amélia jantaria com as amigas e voltaria à noite para casa. Valadares escusou-se dizendo que tinha um jantar diplomático. Com efeito, ao jantar a que ele assistiu estiveram presentes alguns secretários e adidos de legação; mas o caráter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as haviam, não eram de embaixada.
- Já sabe que a nossa partida está próxima? - disse Madalena a Amélia, apenas chegaram à casa.
- Ah!
- Apenas se fecharem as câmaras - continuou Madalena -, vou deixar o seu Rio de Janeiro.
Amélia olhou para Augusta com uma insistência que a moça não compreendeu.
- Vai deixar o meu Rio de Janeiro - disse Amélia depois de alguns instantes -. Não gosta dele?
- Muito, decerto.
- É magnífico - disse Augusta -; mas a nossa província...
- Amor de bairro - respondeu Amélia sorrindo.
- Será, será, mas não somos todos assim?
- Conforme. Às vezes muda-se de sentimento, conforme os afetos que encontramos nos lugares novos.
- Isso não sei.
- Não achou cá alguma cousa?
- Cousa nenhuma.
Augusta disse isto com tanta frieza e firmeza, que Amélia não pôde reprimir um gesto de espanto.
- Pois olhe, disseram-me...
- O quê? - perguntou Madalena.
Amélia hesitou alguns instantes.
- Estou gracejando - disse ela.
Mas daí a algum tempo, achando-se a sós com Augusta, disse-lhe:
- Disseram-me que estavas apaixonada pelo Daniel.
- Eu? Qual!
- Disseram-me... Juras que não é verdade?
- Juro.
- Então, toma cuidado!...
- Por quê?
- Porque podem dizê-lo e então...
- Que importa que o digam? - disse Augusta.
- Perdão; importa muito. Se disserem por exemplo que a senhora fez presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou um botão de camisa...
- Dirão uma tolice.
- Mas se disserem que ele possui esse objeto?
- Que ele possui? Ora essa! Está brincando, D. Amélia.
Amélia contou-lhe o episódio da casa de Daniel.
XIX
No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.
A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntesis que se dera em sua existência.
A falar a verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que sentiu-se apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.
Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.
Ao entrar em casa não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.
O criado que o recebeu deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.
- Mas quem te perguntou por isso? - disse Daniel.
- Eu lhe digo, meu amo; é que de quando em quando mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava?
- Sim?
- É verdade. E há cousa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.
- Uma carta?
- Sim, senhor; está no seu gabinete.
- Deixa-me ir descalçar as botas.
Noutro tempo Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.
Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.
Era de Augusta.
Dizia assim:
Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.
Augusta.
- Olé! - disse Daniel em voz alta -; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã, veremos a cousa.
E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:
- João, ouviste o que eu disse agora?
- Eu só ouço o que meu amo quiser -, respondeu o criado sorrindo maliciosamente.
- Ainda bem. Dá-me de comer.
Daniel comeu tranquilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.
- Veio alguém procurar-me?
- Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.
- A mim?
- Disse-me isto.
- Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.
O criado saiu.
Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.
- Tudo é natural naquele gênio excêntrico - dizia ele consigo.
Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.
Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.
- Estava ansioso por ver-te - disse ele.
- Aqui estou. Tua mulher?
- Não me fales dela.
- Por quê?
- Quero propor ação de divórcio.
- Eu já contava com isso - disse Daniel tranquilamente -. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...
- Daniel!
- Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer cousas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dous espíritos frívolos.
- E tu, queres passar por um homem grave?
- Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta; são os frívolos; outros, um lenço de dous palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.
Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.
- Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.
- É resolução assentada?
- Então o meu conselho é inútil.
- Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem.
- Isso não!
- Por quê?
- Não quero intervir em negócios de família.
A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.
- É a tua última palavra? - perguntou ele.
- A última.
Seguiu-se a isto um longo silêncio.
Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.
- Como te foste de viagem? - perguntou Valadares.
- Bem.
- E quando eu penso que podia ter ido contigo.
- A propósito - continuou Valadares -, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?
- Ah! Queria dizer que não podia esperar.
- Mas há certas palavras...
- Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?
- Leu. Ah! Se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?
- Conforme - disse Daniel -; para quem gosta da Corte e da rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.
- É verdade que se eu fosse perdia muita cousa.
- Sim?
- Cousas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?
- Aonde?
- Ao Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?
- Acho bom.
- Manda fazer um porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-a, porque vim depressa e é noite. E os padrões?
Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu prometendo voltar no dia seguinte a fim de ver se obtinha uma resposta dele.
- Sobre o divórcio ou sobre as calças?
- Uma e outra cousa - disse Valadares descendo a escada.
XX
No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar a família de Augusta.
O rapaz tinha curiosidade de saber que impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as recordações extintas.
Entrou firme e tranquilo na sala.
Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.
Feitos os cumprimentos do estilo depois de uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de voltar à província.
- A necessidade desapareceu por enquanto - disse Augusta -; meu tio demora-se algum tempo...
- O que é um prazer para nós todos - disse Madalena.
Daniel curvou-se em sinal de assentimento.
A conversa tomou outra direção até que chegaram algumas visitas mais.
Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta, no canto de uma janela.
- Recebeu uma carta minha? - perguntou a moça.
- Um simples bilhete.
- Isso mesmo. Não me julga leviana?
- Não; apenas audaz.
- É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o certo é que recebeu a carta... e veio.
- Viria em todo caso - observou Daniel -; mas o seu bilhete apressou a minha visita.
- Sabe o que lhe quero?
- Não adivinho.
- Lembra-se o que me disse há tempos?
- Disse-lhe que a amava.
- Pois bem, proponho-lhe uma cousa. Quer casar comigo?
Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando com a resposta, murmurou um monossílabo. Quem visse os dois pareceria que os papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta, a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.
No fim de alguns segundos, Augusta disse:
- Não responde?
- Quer que lhe responda? - perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio -. É tão singular esta pergunta feita por V. Exa.
- Singular? Não acho.
- Singular por dois motivos. O primeiro é que essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão trocados. O segundo é que, depois do que me disse há tempos, acho...
- Mudei de opinião.
- De opinião? - perguntou Daniel sorrindo.
- De sentimento, queria eu dizer - respondeu Augusta -. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.
E retirou-se da janela.
Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?
Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Enganá-la seria baixeza; mais valia ser franco.
Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revolução inesperada?
No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:
Minha senhora,
A singularidade da nossa situação só pode ter uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.
Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso ir fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.
Tudo isto é singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, o que quer? Eu, profundamente céptico, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a única razão do casamento.
À vista destas razões o meu procedimento, recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.
Fechou a carta e mandou-a.
Que impressão produziria no ânimo de Augusta?