XIII
Daniel levantou-se um dia com a ideia de fazer uma viagem a Minas.
Sentia que Augusta já o prendia mais do que convinha ao seu coração; nasciam-lhe forças até então ignoradas. A indiferença da moça fazia-lhe supor que lutava em vão; temia o desgosto. Resolveu viajar.
Valadares recebeu uma manhã a seguinte carta:
Valadares,
Vou para Minas amanhã. Não sei se terei tempo de ir fazer-te as minhas despedidas. Recomenda-me à tua senhora.
Teu do coração
Daniel.
Apenas Valadares recebeu a carta, foi imediatamente ter com o amigo.
- Vais para Minas?
- É verdade.
- Que tempo te demoras lá?
- Uns cinco meses. Queres alguma cousa?
- Estava capaz de ir contigo.
- E tua mulher?
- Fica.
- Pois tens ânimo?
- Pois então! Eu te digo; tenho até necessidade de ver-me livre por algum tempo de semelhante algoz...
- Valadares, isso não é bonito...
- Seja bonito ou não, eu vou contigo; mas só te peço uma cousa.
- O que é?
- Que adiemos a viagem para a semana que vem.
- Impossível.
- Por quê?
- Tenho minhas razões.
Valadares fez uma careta de desgosto; insistiu, mas Daniel resistiu ao convite.
- Então, não poderei ir - disse Valadares.
- Não sei por quê.
- Ora! Ir só é aborrecido. Contigo, a cousa era outra. Olha lá; e se fôssemos a Paris?
- Isso mais tarde.
A conversa durou pouco mais; Valadares saiu desconsolado. Daniel continuou a dar as suas ordens precisas para a viagem.
Foi nessa mesma tarde à casa de Augusta despedir-se da família e oferecer-lhe os seus préstimos em Minas. A mãe de Augusta agradeceu-lhos e ao mesmo tempo participou que, acabada a sessão do Parlamento, partiriam para o Norte; e portanto só no ano seguinte se poderiam encontrar.
- Até para o ano - Daniel tranquilamente.
Augusta não manifestou surpresa, nenhum desgosto com a notícia da viagem de Daniel; conversou alegremente com ele sobre cousas fúteis; tocou um pouco de piano e despediu-se dele como se tivesse de vê-lo no dia seguinte.
Às seis horas estava Daniel em casa, de volta da casa de Augusta.
Mas daí a cinco minutos parava-lhe um carro à porta.
- Que é ? - perguntou ele ao criado.
O criado foi ver e voltou dizendo.
- É uma senhora, vem subindo.
Pouco depois entrou-lhe na sala Amélia Valadares.
- Desculpe se venho assim sozinha à casa de um homem solteiro.
- Desculpar? - disse Daniel, convidando Amélia a sentar-se -. Não há que desculpar; há que agradecer.
- Então, como vai de saúde?
- Assim, assim... Creio que preciso fazer uma viagem a Minas Gerais, e já mandei fazer-lhe minhas despedidas por intermédio do Valadares.
- Ele me disse isso; e é justamente por causa desta viagem que eu venho aqui.
Amélia sorriu-se com ar sonso.
Daniel não atinou com a ligação da viagem a Minas e da visita da mulher de Valadares.
- Venho reforçar - disse Amélia - um pedido de meu marido.
Daniel já se não lembrava que pedido era.
- Um pedido? - disse ele -. Qual?
- Valadares entrou agora lá em casa muito triste; perguntei-lhe o que tinha e contou-me que, desejando ir a Minas com o senhor, não pudera obter que o senhor adiasse a viagem até a semana que vem. Ora, é isso justamente o que lhe venho pedir.
Desta vez, foi Daniel quem sorriu.
- Não podia - respondeu ele - adiar a viagem há tanto preparada; mas à vista do pedido não posso recusar o adiamento. Diga ao Valadares que pode contar comigo.
- Agradeço-lhe o obséquio - disse Amélia muito satisfeita -, e creia que favorece a meu marido.
- É favorecer a V. Exa., creio - interrompeu Daniel -. Pode dizer que conte comigo.
A mulher de Valadares levantou-se para se despedir, e nesse ato fez o que fizera ao princípio, segundo costumava, correu por toda a sala olhos minuciosos.
- Desculpe - disse Daniel -, desculpe o desarranjo em que isto se acha... Estou em véspera de viagem; e bem vê...
- Pois não; desculpo tudo - disse Amélia aproximando-se de uma mesa -. São lindos estes objetos de bronze; são principalmente de bom gosto... O senhor tem bom gosto.
- Creio que sim...
- Por exemplo, a Augusta...
E calou-se.
- Que tem a Augusta? - perguntou Daniel.
- A Augusta é bonita; e o senhor mostra que tem bom gosto...
- Maliciosa! Bem sabe que...
- Sei que o senhor gosta dela.
- Perdão, gostei dela.
Amélia sorriu, mas não respondeu. Não teria acreditado? Daniel suspeitou-o; e quando ia continuar a conversa para deixar-lhe bem claro no espírito que já nada havia dele para com Augusta, a mulher de Valadares chamou a atenção para não sei que volume que estava sobre a mesa.
Como ele lhe explicasse o que era o livro, ela continuou no exame dos objetos que viu sobre a mesa.
Amélia era naturalmente indiscreta e leviana. A visita à casa de Daniel era já um ato de sofrível leviandade; a demora e a bisbilhotice com que examinava a sala tinha mais graves consequências. Que pensaria Daniel se não conhecesse o espírito frívolo da moça?
De repente, Amélia, indo levantar um álbum, viu debaixo um objeto que lhe chamou a atenção: era uma liga. Daniel estava voltado para um espelho e não viu o gesto da moça. Amélia examinou a liga e viu duas iniciais; as iniciais de Augusta.
O leitor lembra-se do episódio da rua do Ouvidor.
Quando Daniel se voltou para Amélia, viu-a sorrir; aproximou-se e reparou que ela tinha a liga nas mãos. Não lhe ocorrendo a circunstância das iniciais (circunstância bem própria de romance), Daniel arriscou a seguinte observação:
- Fez mal em descobrir isso: é um despojo de vencido.
- Ah! - disse Amélia.
E mostrou as iniciais de Augusta.
Daniel empalideceu.
Amélia olhou para ele, atirou a liga sobre a mesa, e disse, caminhando para o espelho:
- Não se assuste; eu sou de segredo.
Daniel tinha recobrado o sangue frio.
- Assustar-me de quê? - perguntou ele.
- Não sei - respondeu Amélia, concertando o chapéu.
- Além de quê, não é segredo.
- Ah! Não é segredo ? Eu cuidei que era... Não me disse há pouco que já não gostava dela?
- Perdão - disse Daniel aproveitando a aberta que lhe davam essas últimas palavras; eu creio que está enganada.
- Estarei enganada, e o Luís também.
- Quem é o Luís?
- O deputado - respondeu Amélia rindo.
E apertando a mão a Daniel acrescentou:
- Adeus, adeus! Tenho pressa. Tenho a sua palavra; só irá na semana que vem.
E antes que Daniel lhe oferecesse o braço ou procurasse retê-la, saiu da sala e desceu as escadas.
Daí a pouco, partiu o carro.
XIV
Daniel não pôde conter um gesto de despeito apenas Amélia saiu.
Tinha vontade de ir agarrá-la e castigá-la de toda a leviandade com que procedeu entrando em sua casa. O incidente da liga, e as meias palavras com que ela o encerrou, tudo estava fervendo no espírito até há pouco tranquilo de Daniel.
- Que leviana! - dizia consigo -. Vir à casa de um homem solteiro por um modo tão singular; fazer-me o singular pedido de ir com o marido para fora; revolver os meus móveis; caluniar pessoas a quem abraça... Ai, Valadares, que mulherzinha te caiu nos braços!
XV
Valadares era menos exigente que Daniel.
O que lhe parecia mal em Amélia eram as impertinências da mulher faceira, os caprichos, as imposições, de maneira que tudo acabaria se estivesse algum tempo fora dela... a espairecer.
Cuidou que a viagem a Minas era boa ocasião; mas que Daniel não quis adiar a sua viagem para esperá-lo. Amélia soube disso e foi ajudá-lo nos seus desejos pedindo esse favor ao próprio Daniel.
Quando no dia seguinte, de manhã, Valadares encontrou a mulher à mesa do almoço, disse-lhe ela:
- Já preparaste as malas?
- Para quê?
- Para a viagem a Minas.
- Só, não vou.
- Vais com o Daniel.
- Mas ele não quer adiar...
- Quer.
- Como sabes?
- Pedi-lho eu.
Valadares tomou a liberdade de abraçar entusiasticamente a mulher diante da criada, cujo pudor lhe aconselhou imediatamente uma excursão à cozinha.
- Não sabes como te agradeço o que fizeste por mim.
- Ah! Tens muito prazer em ir a Minas? Queres esquecer-me?
- Eu, lindinha? Nem por sombras. Quero estudar a província, e além disso preciso de tomar ares. O Valadão diz que eu estou caminhando para a cova, e que preciso reforçar a minha constituição. Sabe Deus que saudades levo de ti! Mas tu não queres ir.
- Bem sabes que não posso.
O almoço terminou alegremente; parecia que aqueles dois galés já saboreavam a felicidade de se separarem durante algum tempo.
XVI
Daniel resolveu responder às tolices de Amélia com a partida imediata, sem embargo da promessa anteriormente feita. Ao princípio repugnou-lhe o ato, que era descortês; mas venceu o aborrecimento que Amélia lhe causara na tarde em que foi visitá-lo.
E justamente quando Valadares agradecia à mulher os esforços que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para Minas, acompanhado de um simples criado.
Valadares saíra de casa para ajustar objetos de que precisava para a viagem. Às duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel.
- Onde está o amo? - perguntou a um criado que lá encontrou.
- Saiu - respondeu o criado.
- Volta?
- Foi para Minas.
- Para Minas...
Valadares ficou contrariadíssimo com a notícia.
- Parece - disse o criado - que eu tenho aqui uma carta para o senhor.
- Para mim? Dá cá.
O criado foi buscar a carta e entregou-a a Valadares.
A carta dizia assim:
Valadares,
Prometi à tua mulher que adiaria a viagem; mas sinto não poder cumprir a palavra prometida a tão gentil senhora, porque entrou-me por casa uma fúria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juízo que pôs a minha sala e o meu espírito em desordem. Para esquecer esta hóspede inesperada só me resta o recurso de precipitar a viagem. Até lá ou até à volta.
Teu
Daniel.
Valadares leu esta carta e não a entendeu muito.
Quando Amélia soube que Daniel, a despeito da promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como as impressões da moça eram passageiras, o ressentimento não lhe durou mais de um quarto de hora. Ficou, porém, despeitada com o bilhete de despedida de Daniel. Aquilo que Valadares não compreendia, Amélia o compreendia demais. Achou-se injuriada com as expressões da carta e mais ainda porque fora sem dúvida escrita na previsão de ser lida por ela.
Valadares resolveu seguir viagem na época escolhida por ele; mas um acontecimento estranho à nossa história impediu que a viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moças, Valadares sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras de uma Laís de contrabando.
Nunca mais falou em viajar.
Amélia ainda tentou mandá-lo tomar ares; e Valadares, que em todas as ocasiões, era o tipo do esposo maricas, desta vez resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.
XVII
Quando Augusta soube realmente que Daniel partira para Minas, sentiu uma decepção; apesar da despedida solene que este lhe fizera e à família, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.
Não supunha, note-se, que Daniel estivesse a fazer comédia quando se despediu deles; mas acreditava que lhe seria difícil deixar a Corte. É que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel amava-a loucamente.
O advérbio era demais.
Daniel amava a rapariga e justamente para acabar com esse germe, que já começava a desenvolver-se no coração, é que ele fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens são excelentes contra o reumatismo da coração.
Augusta sentiu-se ferida; o despeito pôde muito naquela ocasião.
A sua esperança foi que, demorando um último olhar na janela da casa dela, Daniel não pudesse seguir viagem e tornasse a entrar para casa, dispondo-se a encadear a sua existência ali a seus pés.
A esperança foi iludida.
Mas para que desejava Augusta isso, se o não amava?
Não sei; desejava-o.
Madalena procurou sondar o coração da filha depois da partida de Daniel.
- Que sentes tu a respeito desta ida súbita do Dr. Daniel? - perguntou-lhe uma tarde.
- Eu, nada - respondeu Augusta -. Acha que devo sentir alguma cousa?
- Não; era simples pergunta. Sabes que ele gostava de ti.
Nenhuma palavra mais se conseguia arrancar a Augusta relativamente a este negócio.
Um dia, Luís estando com ela anunciou que voltava para a província, e que estava disposto a abandonar a carreira política. Acrescentou que até então tivera alguma esperança, mas que essa mesma se desvanecera.
- Pensei - disse Augusta -, pensei que já não houvessem esperanças para o senhor.
- Havia uma...
- Qual?
- A de ser amado quando já todos se houvessem esquecido de mim!
- Perdeu essa esperança? - disse Augusta -. Olhe que não perdeu grande cousa.
- Perdi, porque ela era fundada numa base falsa. Eu acreditava até agora que o seu coração era mudo.
- Ah!
- Mas sei que não; o seu coração falou.
- Que disse ele?
Augusta estava disposta a gracejar; e suas últimas palavras foram ditas com um riso de escárnio, cujo segredo só ela possuía.
- Disse que ama a um ausente...
Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou fixamente para Luís e disse:
- Ou é ilusão sua ou calúnia de alguém! Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu coração...
- Importa-me muito, D. Augusta. Não quero falar-lhe de amor, pois que já mo proibiu; mas permita que lhe pergunte só por que razão eu...
Augusta lançou-lhe um olhar de profundo escárnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu.
- É demais! - disse Luís.
Pegou no chapéu e saiu.
- Que é isto? Por que motivo nutro eu uma esperança vã? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher é uma estátua; não tem sangue, nem alma. É feita de um pedaço de mármore. Amar para quê? Para ter neste amor o meu tormento e a minha humilhação? Não! É demais! Tudo precisa de um termo.
Desse dia em diante, Luís não voltou à casa de Madalena.
XVIII
O procedimento de Augusta era objeto da curiosidade de todos.
- Por que motivo esta moça recusa todos os pretendentes? - diziam as mães de família -; parece que não quer-se casar. Quererá ficar para tia?
O argumento era singular; devia ocorrer a todos que Augusta recusava os pretendentes todos justamente por que não gostava de nenhum.
Mas a reflexão das mães de família era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais.
Madalena respeitava os escrúpulos da filha; queria vê-la feliz e entendia que o melhor meio era casá-la com quem lhe falasse ao coração.
Mas onde estava esse fênix, visto que nenhum até agora lhe agradara?
Augusta conservava-se na sua torre de marfim, pouco disposta a ceder às instâncias nem de Luís, nem de Daniel. Viu partir um e outro sem a menor emoção. Quem teria razão? Os que esperavam que chegasse a Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples estátua de mármore?
Tinham já corrido dois meses depois da partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amélia na rua da Quitanda, indo a primeira com a mãe ver umas fazendas, e vindo Amélia de um passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares gracejara muito por essa circunstância, apenas encontrou as duas senhoras:
- Não repare, D. Madalena; o sol e a lua ao pé um do outro é sinal evidente de eclipse.
Depois de alguns minutos de conversa, Amélia seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupações. Amélia jantaria com as amigas e voltaria à noite para casa. Valadares escusou-se dizendo que tinha um jantar diplomático. Com efeito, ao jantar a que ele assistiu estiveram presentes alguns secretários e adidos de legação; mas o caráter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as haviam, não eram de embaixada.
- Já sabe que a nossa partida está próxima? - disse Madalena a Amélia, apenas chegaram à casa.
- Ah!
- Apenas se fecharem as câmaras - continuou Madalena -, vou deixar o seu Rio de Janeiro.
Amélia olhou para Augusta com uma insistência que a moça não compreendeu.
- Vai deixar o meu Rio de Janeiro - disse Amélia depois de alguns instantes -. Não gosta dele?
- Muito, decerto.
- É magnífico - disse Augusta -; mas a nossa província...
- Amor de bairro - respondeu Amélia sorrindo.
- Será, será, mas não somos todos assim?
- Conforme. Às vezes muda-se de sentimento, conforme os afetos que encontramos nos lugares novos.
- Isso não sei.
- Não achou cá alguma cousa?
- Cousa nenhuma.
Augusta disse isto com tanta frieza e firmeza, que Amélia não pôde reprimir um gesto de espanto.
- Pois olhe, disseram-me...
- O quê? - perguntou Madalena.
Amélia hesitou alguns instantes.
- Estou gracejando - disse ela.
Mas daí a algum tempo, achando-se a sós com Augusta, disse-lhe:
- Disseram-me que estavas apaixonada pelo Daniel.
- Eu? Qual!
- Disseram-me... Juras que não é verdade?
- Juro.
- Então, toma cuidado!...
- Por quê?
- Porque podem dizê-lo e então...
- Que importa que o digam? - disse Augusta.
- Perdão; importa muito. Se disserem por exemplo que a senhora fez presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou um botão de camisa...
- Dirão uma tolice.
- Mas se disserem que ele possui esse objeto?
- Que ele possui? Ora essa! Está brincando, D. Amélia.
Amélia contou-lhe o episódio da casa de Daniel.
XIX
No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.
A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntesis que se dera em sua existência.
A falar a verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que sentiu-se apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.
Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.
Ao entrar em casa não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.
O criado que o recebeu deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.
- Mas quem te perguntou por isso? - disse Daniel.
- Eu lhe digo, meu amo; é que de quando em quando mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava?
- Sim?
- É verdade. E há cousa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.
- Uma carta?
- Sim, senhor; está no seu gabinete.
- Deixa-me ir descalçar as botas.
Noutro tempo Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.
Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.
Era de Augusta.
Dizia assim:
Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.
Augusta.
- Olé! - disse Daniel em voz alta -; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã, veremos a cousa.
E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:
- João, ouviste o que eu disse agora?
- Eu só ouço o que meu amo quiser -, respondeu o criado sorrindo maliciosamente.
- Ainda bem. Dá-me de comer.
Daniel comeu tranquilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.
- Veio alguém procurar-me?
- Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.
- A mim?
- Disse-me isto.
- Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.
O criado saiu.
Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.
- Tudo é natural naquele gênio excêntrico - dizia ele consigo.
Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.
Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.
- Estava ansioso por ver-te - disse ele.
- Aqui estou. Tua mulher?
- Não me fales dela.
- Por quê?
- Quero propor ação de divórcio.
- Eu já contava com isso - disse Daniel tranquilamente -. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...
- Daniel!
- Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer cousas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dous espíritos frívolos.
- E tu, queres passar por um homem grave?
- Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta; são os frívolos; outros, um lenço de dous palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.
Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.
- Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.
- É resolução assentada?
- Então o meu conselho é inútil.
- Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem.
- Isso não!
- Por quê?
- Não quero intervir em negócios de família.
A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.
- É a tua última palavra? - perguntou ele.
- A última.
Seguiu-se a isto um longo silêncio.
Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.
- Como te foste de viagem? - perguntou Valadares.
- Bem.
- E quando eu penso que podia ter ido contigo.
- A propósito - continuou Valadares -, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?
- Ah! Queria dizer que não podia esperar.
- Mas há certas palavras...
- Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?
- Leu. Ah! Se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?
- Conforme - disse Daniel -; para quem gosta da Corte e da rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.
- É verdade que se eu fosse perdia muita cousa.
- Sim?
- Cousas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?
- Aonde?
- Ao Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?
- Acho bom.
- Manda fazer um porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-a, porque vim depressa e é noite. E os padrões?
Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu prometendo voltar no dia seguinte a fim de ver se obtinha uma resposta dele.
- Sobre o divórcio ou sobre as calças?
- Uma e outra cousa - disse Valadares descendo a escada.