VI
Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano, na casa de Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala dentro a mulher de Valadares.
Começava a moça a usar da liberdade que procurara no casamento.
- Sua mãe? - perguntou ela a Augusta depois dos primeiros beijos.
- Está lá dentro; vou mandá-la chamar.
- Creio que o moleque já lhe foi dizer que eu estava aqui.
- Ande sentar-se.
Amélia sentou-se e disse sorrindo para Augusta:
- Não me perguntas por meu marido?
- Ia fazê-lo.
- Está na repartição. A primeira cousa em que concordamos é que eu saísse a passeio quando me parecesse. Eu não sou criança para andar agarrada a meu marido. Na Europa, não se usa isso. Demais, tenho toda a confiança nele. Acho-te pálida hoje...
- Dormi pouco.
- Alguma preocupação?
- Uma enxaqueca.
- Que calor!
- Com efeito, o dia está quente.
Amélia agitou o leque, lançando pelos móveis da casa esse olhar de curiosidade indiscreta que tanta gente emprega numa casa onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem par.
Augusta olhava para ela sorrindo.
Nesse momento entrou Madalena.
- Já de passeio! - disse ela, beijando a mulher de Valadares.
- Não é cedo.
- Seu marido está bom?
- Está.
- São felizes, creio.
- Completamente. Ah! O casamento foi a melhor invenção deste mundo. Por que razão não casa sua filha?
- Porque não encontrou noivo.
- Isso é fácil.
- Não tanto - acudiu Augusta -; além de quê não tenho pressa.
- Pois quanto mais cedo melhor - disse Amélia.
- Augusta - disse Madalena - terá um noivo quando quiser. Agora mesmo...
- Ah! Algum apaixonado?...
Augusta levantou-se e foi buscar o lenço ao piano.
- Não falemos nisso - disse ela.
Amélia levantou-se também.
- Já se vai? - perguntou Madalena.
- Já; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer D. Augusta ir comigo?
- Não posso.
- Então, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho: não seja cruel.
- Por que não vem tomar chá conosco esta noite? - perguntou Augusta.
- Não posso - respondeu a moça -, tenho de ir com meu marido visitar o velho Marcos. Conhece, não?
- É aquele homem que me apresentou na noite de seu casamento? - perguntou Madalena.
- Justamente; somos parentes. Está muito mal.
- Parecia vender saúde.
- O filho foi lá hoje à nossa casa dar-nos parte da moléstia do pai.
- O Dr. Daniel?
- Sim. Adeus!
Amélia saiu.
Depois do baile era a primeira vez que Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razão, não pôde ouvi-lo sem algum abalo.
Ficando só na sala, Augusta foi sentar-se ao piano e começou a dedilhar não sei que composição alemã. Mas evidentemente o seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio, acompanhando de Luís.
Depois da recusa que fora dada na província, era a primeira vez que Luís aceitava um convite de B... para jantar em casa dele. Era um escrúpulo pueril, se querem; mas o moço tinha esse escrúpulo e obedecia-lhe involuntariamente. Mas como resistir às instâncias do velho? E sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moça?
Quando os dois deputados entraram na sala, Augusta levantara-se do piano.
O jantar foi imediatamente posto na mesa.
Depois do jantar, Luís esteve algum tempo a sós com Augusta. Conversaram de cousas indiferentes. A moça felicitou-o pelos aplausos que lhe deram como orador. Luís recebia-os com um ar de modéstia que não escondia completamente o sentimento de satisfação que lhe dava aquele elogio vindo da boca de Augusta.
Depois acrescentou:
- Todos esses aplausos têm para mim uma única vantagem: adiantar a minha posição.
- Tem ambição política?
- Não; bem sabe qual é a minha ambição.
A moça ficou séria.
Luís contemplou-a com um sorriso de dor; depois procurou pegar-lhe na mão, que ela retirou apressada, dizendo:
- Perdão! Tenho que fazer...
E como desse um passo para fora, Luís adiantou-se e disse-lhe:
- Engana-se, D. Augusta, eu não venho falar-lhe de cousas em que não posso tocar. Queria simplesmente pedir-lhe desculpa se alguma vez a ofendo com alusões a um sentimento de que não tenho culpa.
- Nem eu, creio.
- Voluntariamente, não.
A moça recuou e foi sentar-se.
- Olhe - disse ela -; disse-lhe uma vez que podíamos ser bons amigos. Quer assim?
- Aceito, e já é muito; mas creio que me é lícito esperar o seu amor.
- Esperança inútil.
- Inútil? Será; mas espero.
Augusta sorriu.
"Ambiciosa!", disse consigo Luís.
Mas ao mesmo tempo, como que arrependido desta exclamação interior, o namorado entrou a sorrir para ela - sorriso de súplica e de contrição.
Augusta não reparou nisso.
No entanto, a tarde caía, e a melancolia da hora servia de fundo àquele quadro já de si tão triste: um coração de fogo ao pé de um coração de rocha, um destino inteiro nas mãos de uma mulher indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de uma mulher.
Uns terão simpatia pela posição de Luís; outros, tédio. Depende dos caracteres. Os altivos julgarão que nenhum homem deve aspirar à mão de uma mulher quando esta lha recusa. São leis boas para o papel. Quem conhece o coração humano compreende, lastimando embora, essas situações humilhantes em que o amor pode colocar um homem, aliás brioso e digno de si.
Não poucas vezes Luís discutira consigo mesmo a situação em que se achava, e nunca o seu espírito lavrou uma sentença de abandono que lha não reformasse o coração, juiz em última instância nestas matérias de amor.
Todavia, a cena daquela tarde impressionara singularmente o moço. Pareceu-lhe que a insistência seria já degradação; resolveu lutar e esperar.
Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.
Augusta, quando se achou só, respirou; era evidente que a presença de Luís a importunava.
VII
A doença de Marcos foi mortal; dois dias depois da visita de Amélia o bom velho faleceu, deixando saudades a todos quantos o conheciam.
Na vida de Daniel foi um vácuo. Não se acostumara nunca à ideia de que viria a perder o pai; era a única família que tinha, e provavelmente o único ente a quem estimava neste mundo.
Os amigos deram-lhe as consolações do costume; alguns discursos foram proferidos na ocasião de dar-se o cadáver à sepultura; mas discursos, nem consolações podiam distrair o moço da dor que acabava de sofrer.
Para os outros pais foi um fausto acontecimento; era o noivo rico que convinha prender de algum modo. Por isso foi grande a afluência de senhoras à missa do sétimo dia.
Lá estavam Madalena e Augusta.
Quando, no fim da missa, começou a cerimônia dos pêsames, Daniel recebia-os maquinalmente e sem dar sinal de si. Não aconteceu o mesmo quando Augusta se aproximou dele e murmurou algumas palavras de consolação; não contava que ela estivesse na igreja.
Todavia, nem o estado dele, nem o lugar eram próprios para maiores espantos. A moça seguiu com a mãe, e Daniel ouviu as consolações do resto dos assistentes.
Valadares convidou Daniel para ir passar alguns dias em casa dele; apesar das recusas, tanto instou que Daniel cedeu, e para lá foi mesmo dali.
A morte do velho Marcos punha nas mãos de Daniel uma magnífica fortuna. Não contando com ela tão cedo, o rapaz não sabia em que empregá-la. A mulher de Valadares era de opinião que se casasse; Daniel abanou a cabeça; Valadares aconselhou-lhe uma viagem à Europa como cousa de maior proveito. Este conselho provocou entre o marido e a mulher uma pequena discussão que ia terminando por um ataque de nervos, desenlace seguro de muitas tragédias domésticas.
A ideia da viagem também não agradou a Daniel.
- Afinal - disse ele - a minha situação é a mesma, a diferença é que eu hoje administro aquilo que outrora fruía simplesmente.
- Por isso digo eu - atalhou Amélia-, como os trabalhos de administração são enfadonhos, procure uma companheira. Olhe, eu creio que tenho uma... que não se lhe dava de...
- Quem é? - perguntou Daniel.
- A Augusta B...
Daniel franziu a testa. Acreditou que a solicitude da moça indo à missa era simplesmente um cálculo. Figurava-lhe um espírito altivo, e saía-lhe uma mulher interesseira. Acaso a mulher de Valadares adivinhou esta impressão de Daniel? O certo é que imediatamente acrescentou:
- Mas repare que isto é lembrança minha; ela não me disse cousa alguma. Creio até que não seria cousa fácil; porque me parece orgulhosa demais...
- Parece-lhe isso?
- Sim. No entanto, se quiser que eu lhe fale...
- Oh! Não! Eu não tenho vontade de me casar.
De casar, creio que Daniel não tinha vontade nenhuma; mas nem por isso a lembrança de Augusta deixava de preocupá-lo. Havia naquela moça um mistério que ele queria aprofundar. A ocasião era boa para aproximar-se dela. Já haviam decorrido vinte dias depois da missa fúnebre; Daniel resolveu ir visitar a família de Augusta para agradecer-lhe a presença no ato religioso, tanto mais de agradecer quanto que não se ligavam por estreitos laços de amizade.
Só as duas senhoras estavam em casa quando se anunciou a visita de Daniel.
Augusta desapareceu da sala pouco antes de entrar o rapaz, que apenas encontrou Madalena, com quem travou uma conversa de cerca de meia hora. Durante esse tempo todo, Augusta não apareceu na sala. O rapaz esperou ainda alguns minutos, mas, vendo que não chegava, levantou-se para sair.
- Espero - disse Madalena - que não será esta a última vez que nos honre com a sua visita.
Daniel curvou a cabeça agradecendo.
Depois apertou a mão de Madalena e dirigiu-se para a porta, justamente no momento em que Augusta entrava na sala.
Cumprimentaram-se friamente.
Daniel saiu.
VIII
- Por que não vieste à sala mais cedo? - perguntou Madalena a Augusta.
- Tive uma vertigem; não podia vir - respondeu a moça.
- Foi pena, porque este moço é muitíssimo amável; passei meia hora agradavelmente.
- Foi pena! - murmurou a moça disfarçando um sorriso que lhe estava a entornar-se dos lábios.
Não disfarçou tanto que a mãe o não percebesse.
"Há alguma cousa", pensou ela.
Augusta não lhe disse mais nada; mas quem pudesse penetrar no seu espírito ouviria a seguinte reflexão:
- São todos os mesmos!
Reflexão que aliás não esclarece muito a situação. É provável que pelo romance adiante compreendamos essas palavras interiores de Augusta.
IX
O casamento é a perfeita união de duas existências; é mais do que a união, é a fusão completa e absoluta. Se o casamento não é isto, é um encontro fortuito de hospedaria; apeiam-se à mesma porta, escolhem o mesmo aposento, comem à mesma mesa, nem mais, nem menos.
Este é o casamento mais comum. O outro, o legítimo, o raro, esse é outra cousa que não isto. A religião santifica o casamento, mas supõe sempre a existência anterior de um elo tão sagrado como o do altar.
Não se parecia com este o casamento de Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao coração; primeiramente, por interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espécie de passeio ao Corcovado. Ora, todos são de acordo que do Corcovado se goza uma vista magnífica, mas a ninguém lembrou ainda a ideia de lá fundar uma cidade. Ninguém lá fica; sobe-se, goza-se, desce-se.
Valadares começava a sentir a necessidade de descer do Corcovado; a ideia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro pesadelo que lhe sufocava o espírito. Verdade é que a sua liberdade não estava tolhida; os boudoirs célebres que frequentara outrora começavam a festejar a volta do filho pródigo. Mas era sempre um vínculo, o pobre já sentia que lho apertava. Podia ser de rosas; mas achou-o de ferro.
Amélia casara-se com Valadares como casaria com outro qualquer; simples mudança de estado. Comprou a liberdade sob a forma de uma prisão. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a pé; e um protetor para abrigar a sua existência e sua reputação. Com estas condições, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais à mão foi o escolhido.
Imaginem já por aqui qual era a alegria conjugal daquelas duas criaturas.
Não tardou que o aborrecimento viesse sentar-se no lugar que o amor não ocupava; em vez de dois entes unidos por um grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta, com a diferença que a comunhão do infortúnio e do crime estabelece certa simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares e a filha de Seabra.
Começava a dissolver-se a forma conjugal, não se precisava ser águia para adivinhar que dentro de pouco tempo a casa liquidaria e os dois achariam na separação um remédio aos seus males.
Ora, este espetáculo e esta previsão desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse acima. Um dia de manhã resolveu mudar-se e assim o declarou aos donos da casa.
- Mudar-se? - exclamou Amélia -. E por quê?
- Porque devo morar só; além disso, está com o meu gênio.
- Se assim é - observou Valadares - , não te obrigo ao contrário. Mas hás de vir jantar comigo todos os dias...
- Todos os dias, não sei - respondeu Daniel.
- Já tem casa? - perguntou Amélia.
- O meu procurador - respondeu Daniel - disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos.
- Ah!
A mulher de Valadares sorriu maliciosamente; e o marido, por imitação, sorriu também.
Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe compreender.
- Mas que tem isso? - perguntou ele.
- Nada - acudiu Amélia -, quer dizer que está mais perto.
- De quem?
- Ora de quem! Dela!
- Não conheço!
- Augusta.
- Ora!
Daniel respondeu com uma expressão que simulava indiferença; mas, se devo confessar a verdade, não o era. Quando o procurador lhe trouxe a notícia de que havia casa na rua de Mata-cavalos, o rapaz estimou a notícia e aceitou a casa.
- O fato é - disse Amélia - que ela pensa no senhor.
- Em mim?
- Cuido que sim, porque há dias, indo eu lá, duas vezes me perguntou se estava bom. Quando me perguntou a segunda vez sorri como há pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era um protesto aparente.
Daniel ouviu atento as palavras de Amélia.
- E que não fosse! - disse ele -; como eu não vou para lá por causa dela...
- Creio - respondeu Amélia -; mas o fogo ao pé da pólvora...
- Eu não sou pólvora, nem fogo...
A conversa ficou aqui. Daí a dias, Daniel estava completamente mudado.
A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma janela; foi no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito ou expressivo? Não sabia.
X
No fim de quinze dias, recebeu Daniel um bilhete do tio de Augusta convidando-o a ir passar a noite com ele.
Deveria ir? Sem dúvida que sim. Não queria parecer que se metia à cara da moça. O orgulho lutava nele por dois modos; lutava, retendo-o longe de Augusta para não parecer que a adulava; lutava, impelindo-o para lá a ver se triunfava dela. É difícil que de uma luta colocada neste terreno venha bom resultado.
Daniel só pela tarde adiante resolveu ir à casa de Augusta.
Era uma reunião íntima; conversou-se e tocou-se; não se dançou.
O tio de Augusta desejou que Daniel considerasse a casa como sua; que se não prendesse por simples considerações de cerimônias enfadonhas. Posto que Daniel tivesse em pouco a conversa das salas, não por desprezo refletivo, mas por gênio e educação, todavia não ficava na sombra desde que lhe fosse necessário desempenhar-se como cavalheiro polido. Tinha natural espírito; a sua conversa era fácil, brilhante, sem ser profunda, cousa que agrada absolutamente às mulheres. Além disso, o rapaz queria impor-se no espírito da moça; e como fazê-lo senão por meio desses triunfos de eloquência familiar?
Mas Augusta parecia conhecer todas essas armas e a intenção com que eram manejadas; tratou Daniel como a todos os outros, em perfeito pé de igualdade. Nem lhe concedeu desta vez a distinção de desdém, que tanto agrada a certos caracteres; nivelou-o com as demais pessoas.
Numa ocasião, pediu um dos amigos da casa que a moça cantasse a cavatina da Norma, justamente na ocasião em que Daniel, por entabular intimidade, lhe pedia um pedaço de Lucia.
Colocada entre os dois pedidos, Augusta observou:
- Não posso executar ambas as cousas ao mesmo tempo. Uma há de ser primeira. Qual delas? Resolvam entre si.
Enquanto o sujeito que pedira a Norma, inclinava-se diante de Daniel, cedendo-lhe a vez, Augusta com ar distraído e indiferente brincava com as tranças de uma amiga que se lhe aproximara e que ia acompanhá-la ao piano.
Arranjara as cousas de modo que, nem mostrava preferência, nem desdém por Daniel, o que aconteceria (pensava ela) se cantasse primeiro ou depois o reclamado pelo rapaz.
Estes e outros incidentes produziram em Daniel o efeito natural; o orgulho foi-se pouco a pouco transformando; quando dali saiu, naquela noite, já se pode dizer que no coração do rapaz rompia a aurora do amor.
E, cousa singular, esse amor não era, como em outros casos, um resultado de simpatia, mas sim da antipatia de duas criaturas que, se se odiassem alguma vez, seriam mortais inimigos.
XI
Não é minha intenção apresentar Augusta como um caráter excepcional, nem como um espírito superior. Os sentimentos da moça eram, em resumo, os mesmos das outras mulheres. O que a dominava, porém, era uma certa frieza de temperamento que a tornava incompetente para os grandes afetos. Acrescente-se a isto uma tal ou qual vaidade de sua beleza, e aí temos o que era a filha de Madalena.
Educada pela mãe com uma perfeita independência de espírito, Augusta adquiriu certa aspereza que lhe fazia o caráter antipático. Era imperiosa, altiva, às vezes bondosa, mas bondosa por orgulho, não acreditando muito nem pouco na violência dos sentimentos; o amor para ela era simplesmente uma cousa que não compreendia, nem desejava compreender. Parecia-lhe melhor o triunfo numa sala que num coração.
Nem Luís nem Daniel compreendiam isto; a indiferença da moça era apreciada por eles diversamente de que cumpria ser, e daí vinha a esperança de um e o capricho de outro. O verdadeiro triunfo seria abandonar o campo; talvez que o despeito produzisse nela o resultado favorável. Quem sabe? Seria talvez a primeira a dar um passo para o esquivo namorado.
Luís supunha que podia fascinar a moça pela grandeza da posição; algumas circunstâncias lhe davam razão para crer assim; mas eram simples circunstâncias.
Quanto a Daniel, um pouco picado em seu amor-próprio, assentou que de uma luta pertinaz poderia resultar proveito. Pareceu-lhe que era preciso ser um bom general em vez de diplomata fino. Afigurava-lhe que a espada de Condé tinha para o caso mais virtude que a pena de Metternich.
Com estas impressões saiu da casa de Augusta.
Era a primeira vez que no espírito do moço a vontade anunciava um papel ativo. Não era decerto o amor, senão o amor-próprio que o inspirava assim. Mas neste caso amor-próprio já não era um sintoma do próprio amor? Daniel não percebeu isto; atirou-se à luta.
Começou a frequentar a casa de Augusta na qualidade de amigo e de vizinho. A moça foi com ele e com todos os outros atenciosa e polida, mas fria; distribuía a sua atenção com igualdade. Não dava direito a queixas nem a esperanças; valia tanto para ela Daniel como Luís.
Luís frequentava pouco a casa; nem se pode dizer que a frequentava; ia lá de longe em longe; conversava meia hora e saía logo.
Posto que Daniel não entrasse nunca nas campanhas do namoro, e apenas contasse em toda a vida alguns fáceis triunfos do tempo da academia, todavia houve-se desde princípio como um verdadeiro cabo de guerra.
Foi difícil à moça resistir aos primeiros ímpetos da força arregimentada do rapaz. Aos tiros de artilharia, isto é, os olhares, resistiu ela com facilidade; ninguém tinha maior expressão de desdém do que ela quando se tratava de repelir os olhares de um cortesão.
Mas quando, depois de seus primeiros tiros, Daniel aproveitou uma situação adequada e atirou contra a fortaleza as massas compactas da infantaria, isto é, quando ele fez uma declaração em regra, Augusta não foi tão fácil na defesa, e, se repeliu o inimigo, foi com sensíveis perdas de sua parte.
Daniel acabava de declarar que a amava.
- Não creia - disse ele - que se trata de um amor de poeta. Eu não tenho nada de poeta; nem é cousa que me penalize. O meu amor vem um pouco da razão. Sou um homem temperado. Confesso que as suas graças me impressionaram bastante; mas creia que se não a achasse digna de ser minha mulher não lhe falava nisso. Estou que o amor duraria pouco mais que as rosas de Malherbe. Quer ser minha mulher?
Esta declaração, em que se misturava a sinceridade com a insolência, foi dita com volubilidade, sem fogo nem lágrimas na voz, no meio de tudo com certa graça; Augusta, tão fácil em responder se encontrasse um homem louco de amores, não achou logo uma palavra para opor à pergunta e pedido de Daniel.
A moça tinha encontrado um sapato para o seu pé.
A conversa que estou mencionando dava-se a um canto da sala; as demais pessoas estavam entretidas em grupos distintos.
Augusta desejou que ali chegasse alguém cuja presença interrompesse a conversação; mas ninguém apareceu.
- Que me responde? - perguntou Daniel.
- Respondo - disse Augusta - que não posso aceitar o seu amor, nem o seu pedido.
- Por quê?
Augusta olhou para ele espantada com a pergunta; mas, como visse o olhar do moço, sereno e fixo, respondeu sorrindo:
- Formalmente, porque o não amo.
- Isso não é razão muito forte...
- No entanto...
- O amor viria com o tempo; bastava que me tivesse alguma afeição. Não tem?
- Não tenho.
- Que é preciso fazer para vir a tê-la?
- Isso não sei - respondeu Augusta.
Daniel tirou o relógio do bolso e, depois de consultá-lo, tornou a guardá-lo silenciosamente. Na indiferença do rapaz havia um tanto de cálculo, mas um tanto de sincero. Apenas guardou o relógio:
- Pois eu acho, D. Augusta - disse ele -, que dificilmente poderia encontrar marido mais conveniente do que eu.
- Tem boa opinião de si - disse a moça sorrindo.
- A melhor opinião deste mundo - acudiu Daniel -. Convencido de que os outros homens hão de ter sempre a meu respeito uma péssima opinião, eu compenso esse juízo infundado, pensando a meu respeito as melhores cousas possíveis. Por exemplo, a sua observação quer dizer que me julga fátuo; eu penso justamente o contrário a meu respeito.
- É uma compensação - observou Augusta.
- Então confessa?...
- Confesso que estou com muito calor - disse Augusta, levantando-se.
Daniel mordeu os beiços; mas levantou-se e ofereceu-lhe o braço.
- Vamos para a janela?
Augusta aceitou sem repugnância, nem vontade.
- Com efeito, aqui faz menos calor - disse Daniel apenas chegara à janela -. E a noite está bonita.
- Está bonita - repetiu Augusta -; mas se lá está calor, aqui está frio.
- Não tanto, não tanto. Estou a ver uma cousa, D. Augusta.
- O que é?
- É que tudo lhe parece exagerado. Nem lá faz tanto calor, nem aqui, tanto frio. Por que esta maneira de apreciar as cousas? Não lhe parece que isso há de levá-la muita vez a ser injusta?
- Quando assim seja - disse Augusta -, eu creio que a primeira vítima da injustiça serei eu.
- Perdão! Nem sempre assim acontece; e é justamente por isso que a justiça me parece uma bela cousa. Queira meditar bem nestas palavras, D. Augusta: não julgue nunca pelos olhos do seu capricho.
Daniel dizia todas estas palavras com uma graça tão respeitosa que desarmava a moça; e no entanto já tinha o direito de deixá-la à janela e voltar à sala.
Quando ele lhe falou nos olhos do capricho, Augusta olhou espantada para ele; depois, respondeu:
- Os olhos do meu capricho podem ser maus; em todo caso, porém, não usarei dos óculos do seu despeito.
A alusão era clara; Daniel não contava com esta carga à baioneta.
- O meu despeito? - disse ele -. Já sei ao que alude. Eu poderia calar-me, mas acaso é digno de nós deixar sem resposta uma alusão tão graciosamente feita? D. Augusta, eu repito o que lhe disse; amo-a, quisera recebê-la em casamento; mas a sua recusa é para mim tão sagrada que eu nem quero discuti-la; e inspira-me o mesmo sentimento que me inspiraria a Virgem Maria se eu lhe pedisse uma graça e ela ma negasse: resigno-me sem pensar mais nisto.
Foi uma felicidade que entrassem neste momento Valadares e a mulher. Augusta foi abraçar Amélia, enquanto Daniel adiantou-se para ir apertar a mão a Valadares.