V
O casamento de Valadares produziu grande impressão dans un certain monde, não acreditaram nele à primeira notícia, mas afinal não havia contestação que o boêmio, o estroina, o desalmado Valadares ia tomar estado.
A alguns parecia um sacrilégio, outros acharam que era simplesmente um milagre.
- Com que direito - dizia a Luisinha já citada -, com que direito nos arrancam as pérolas do nosso adereço?
Havia um adereço em que Valadares era pérola.
Os rapazes já enraizados no país de Citera, davam o noivo por maluco, posto que, no ânimo de alguns, o casamento era natural à vista dos bens de noiva.
Enfim, apesar de mil comentários e algumas apostas, Valadares casou.
Foi excelente a reunião em casa do sogro. Lá se achou, como prometera, o misantropo Daniel e mais o pai, que foi um dos padrinhos de casamento.
A noiva de Valadares era uma rapariga bonita, mas extremamente faceira, e apesar da especialidade do dia, em que todas as mulheres se parecem, era fácil adivinhar nela uma casquilha de primeira ordem. Via-se que era uma menina que casara para adquirir a liberdade de arruar. Caía em boas mãos.
Daniel, segundo o seu costume, não dançava; divertia-se em ver dançar os outros.
A família do deputado B... entrou às 10 horas; acompanhava-a Luís, o interpelante oposicionista que já encontramos na rua do Ouvidor.
Augusta estava radiante; a sua beleza, que reunia magnificamente a graça e a severidade, era dessas que centuplicam com as luzes da sala e perdem com a luz do dia. Quer isto dizer que, se Daniel a achara bonita na rua do Ouvidor, achou-a divinamente bela no salão dos Seabras.
Quando ela entrou fez sensação. Todos se curvavam involuntariamente por onde ela passava, semelhante à Vênus clássica, cuja divindade se percebia simplesmente pelo andar. Daniel achava-se encostado a uma porta por onde Augusta entrou na sala da dança. Não se curvou, nem deu sinal de si. Augusta pareceu recordar-se das feições do rapaz, e demorou-se alguns segundos a olhar para ele, mas para logo retirou os olhos, repetindo o mesmo gesto de desdém que tanto impressionara o filho do velho Marcos.
"Por que este gesto?", perguntava Daniel a si mesmo. Nunca a tinha visto, nem pretendido. De onde vinha essa espécie de prevenção contra ele? A curiosidade e o amor-próprio do rapaz estavam sofrivelmente aguçados.
Augusta entrou na sala pelo braço do tio; Luís dava o braço a Madalena.
Quando Valadares a viu entrar, foi ter com Daniel.
- Tive uma ideia - disse ele ao amigo.
- No dia de hoje nenhuma ideia pode ser boa.
- Pois é. Casa-te com Augusta.
A dança interrompeu o diálogo.
Daniel colocou-se de modo que visse Augusta; esta dançava com Valadares.
Durante a maior parte da quadrilha, os olhos de Daniel não se encontraram com os de Augusta; mas no fim, por simples acaso, a moça olhou para o rapaz, e sustentou por alguns instantes o olhar dele. Pareciam interrogar um ao outro. Desta vez foi Daniel o primeiro que afastou os olhos, e retirou-se.
Saiu dali, foi para uma sala intermediária, e ali atirou-se a um divã.
Estava só.
Consultou o relógio, olhou para o teto, examinou as luvas, concertou a gravata, levantou-se, deu alguns passos, e tornou a sentar-se até que a quadrilha acabou.
A sala foi invadida por alguns pares.
Posto que fosse perfeito homem de sociedade, nada o aborrecia mais que o frufru das sedas, o estalar dos leques, o murmúrio das conversações, todos esses rumores de uma festa alegre, que destoavam com o seu espírito reservado e solitário.
O fastio começou a invadi-lo; dentro de uma hora, se lhe não tivessem mão, estaria entre os lençóis.
Levantou-se e ia dirigir-se para a outra sala, quando lhe apareceu o pai dando o braço a Madalena. Marcos chamou-o. Daniel aproximou-se; o velho apresentou o filho à mãe de Augusta.
Daniel recebeu a apresentação com frieza; porém, Madalena foi tão amável que era impossível esquivar-se-lhe. Consequentemente, conversaram os três durante algum tempo.
O grupo foi aumentado daí a alguns minutos com a chegada de Valadares, que trazia Augusta pelo braço. Nova apresentação e desta vez mais solene para os dois apresentados. Nenhuma palavra foi trocada além do simples cumprimento que Daniel dirigiu a Augusta e que esta ouviu inclinando levemente a cabeça e olhando-lhe para os pés.
Não tinha que ver: aquelas duas criaturas antipatizavam um com o outro. Não se casava a altivez de uma com o orgulho de outra. Era o caso do provérbio: "duro com duro..."
Mas se ambos antipatizavam a tal ponto, nem por isso Daniel deixava de admirar a beleza de Augusta, e Augusta, a desdenhosa severidade de Daniel; e essa mesma admiração os afastava mais; porque a admiração é um preito; e, nas poucas e curtas vezes que se haviam encontrado, claramente se percebia em cada um deles a consciência da superioridade.
Não era entretanto do mesmo modo que Augusta olhava para Luís; para este olhava com certa compaixão. Parecia ter pena dele. Quando este lhe falava, ela respondia com bondade e doçura, mas a doçura e a bondade de quem trata com um inferior, o que contrastava com o respeito do namorado político. E, no entanto, o crime dele era simplesmente gostar dela, e havê-la pedido em casamento, ao que ela se escusou, dizendo que era melhor ficarem simples amigos.
Luís não dançava; tinha, como Daniel, a opinião de que a dança é um prazer dos olhos.
No fim, porém, de meia hora, Valadares foi ter com Daniel insistindo para que ele dançasse ao menos uma quadrilha, ao que ele recusou. Como estivessem a discutir este importantíssimo ponto, passou Augusta, e Valadares interrompeu-a para dizer-lhe oficiosamente:
- O Dr. Daniel incumbiu-me de lhe pedir esta quadrilha para ele.
Daniel mordeu os beiços.
Augusta respondeu olhando para Valadares.
- Mas eu não danço mais.
- Por quê?
- Estou cansada.
Daniel interveio.
- O Valadares - disse ele - pediu-lhe espontaneamente uma honra que eu não ousava desejar, nem esperar.
- Estou cansada - repetiu secamente Augusta, a quem Valadares deu o braço, escapando assim a uma repreensão do amigo.
Daí a um quarto de hora Daniel desapareceu do baile.
Despontava-lhe já uma espécie de ódio contra Augusta. Seria esse o caminho do amor?
VI
Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano, na casa de Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala dentro a mulher de Valadares.
Começava a moça a usar da liberdade que procurara no casamento.
- Sua mãe? - perguntou ela a Augusta depois dos primeiros beijos.
- Está lá dentro; vou mandá-la chamar.
- Creio que o moleque já lhe foi dizer que eu estava aqui.
- Ande sentar-se.
Amélia sentou-se e disse sorrindo para Augusta:
- Não me perguntas por meu marido?
- Ia fazê-lo.
- Está na repartição. A primeira cousa em que concordamos é que eu saísse a passeio quando me parecesse. Eu não sou criança para andar agarrada a meu marido. Na Europa, não se usa isso. Demais, tenho toda a confiança nele. Acho-te pálida hoje...
- Dormi pouco.
- Alguma preocupação?
- Uma enxaqueca.
- Que calor!
- Com efeito, o dia está quente.
Amélia agitou o leque, lançando pelos móveis da casa esse olhar de curiosidade indiscreta que tanta gente emprega numa casa onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem par.
Augusta olhava para ela sorrindo.
Nesse momento entrou Madalena.
- Já de passeio! - disse ela, beijando a mulher de Valadares.
- Não é cedo.
- Seu marido está bom?
- Está.
- São felizes, creio.
- Completamente. Ah! O casamento foi a melhor invenção deste mundo. Por que razão não casa sua filha?
- Porque não encontrou noivo.
- Isso é fácil.
- Não tanto - acudiu Augusta -; além de quê não tenho pressa.
- Pois quanto mais cedo melhor - disse Amélia.
- Augusta - disse Madalena - terá um noivo quando quiser. Agora mesmo...
- Ah! Algum apaixonado?...
Augusta levantou-se e foi buscar o lenço ao piano.
- Não falemos nisso - disse ela.
Amélia levantou-se também.
- Já se vai? - perguntou Madalena.
- Já; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer D. Augusta ir comigo?
- Não posso.
- Então, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho: não seja cruel.
- Por que não vem tomar chá conosco esta noite? - perguntou Augusta.
- Não posso - respondeu a moça -, tenho de ir com meu marido visitar o velho Marcos. Conhece, não?
- É aquele homem que me apresentou na noite de seu casamento? - perguntou Madalena.
- Justamente; somos parentes. Está muito mal.
- Parecia vender saúde.
- O filho foi lá hoje à nossa casa dar-nos parte da moléstia do pai.
- O Dr. Daniel?
- Sim. Adeus!
Amélia saiu.
Depois do baile era a primeira vez que Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razão, não pôde ouvi-lo sem algum abalo.
Ficando só na sala, Augusta foi sentar-se ao piano e começou a dedilhar não sei que composição alemã. Mas evidentemente o seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio, acompanhando de Luís.
Depois da recusa que fora dada na província, era a primeira vez que Luís aceitava um convite de B... para jantar em casa dele. Era um escrúpulo pueril, se querem; mas o moço tinha esse escrúpulo e obedecia-lhe involuntariamente. Mas como resistir às instâncias do velho? E sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moça?
Quando os dois deputados entraram na sala, Augusta levantara-se do piano.
O jantar foi imediatamente posto na mesa.
Depois do jantar, Luís esteve algum tempo a sós com Augusta. Conversaram de cousas indiferentes. A moça felicitou-o pelos aplausos que lhe deram como orador. Luís recebia-os com um ar de modéstia que não escondia completamente o sentimento de satisfação que lhe dava aquele elogio vindo da boca de Augusta.
Depois acrescentou:
- Todos esses aplausos têm para mim uma única vantagem: adiantar a minha posição.
- Tem ambição política?
- Não; bem sabe qual é a minha ambição.
A moça ficou séria.
Luís contemplou-a com um sorriso de dor; depois procurou pegar-lhe na mão, que ela retirou apressada, dizendo:
- Perdão! Tenho que fazer...
E como desse um passo para fora, Luís adiantou-se e disse-lhe:
- Engana-se, D. Augusta, eu não venho falar-lhe de cousas em que não posso tocar. Queria simplesmente pedir-lhe desculpa se alguma vez a ofendo com alusões a um sentimento de que não tenho culpa.
- Nem eu, creio.
- Voluntariamente, não.
A moça recuou e foi sentar-se.
- Olhe - disse ela -; disse-lhe uma vez que podíamos ser bons amigos. Quer assim?
- Aceito, e já é muito; mas creio que me é lícito esperar o seu amor.
- Esperança inútil.
- Inútil? Será; mas espero.
Augusta sorriu.
"Ambiciosa!", disse consigo Luís.
Mas ao mesmo tempo, como que arrependido desta exclamação interior, o namorado entrou a sorrir para ela - sorriso de súplica e de contrição.
Augusta não reparou nisso.
No entanto, a tarde caía, e a melancolia da hora servia de fundo àquele quadro já de si tão triste: um coração de fogo ao pé de um coração de rocha, um destino inteiro nas mãos de uma mulher indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de uma mulher.
Uns terão simpatia pela posição de Luís; outros, tédio. Depende dos caracteres. Os altivos julgarão que nenhum homem deve aspirar à mão de uma mulher quando esta lha recusa. São leis boas para o papel. Quem conhece o coração humano compreende, lastimando embora, essas situações humilhantes em que o amor pode colocar um homem, aliás brioso e digno de si.
Não poucas vezes Luís discutira consigo mesmo a situação em que se achava, e nunca o seu espírito lavrou uma sentença de abandono que lha não reformasse o coração, juiz em última instância nestas matérias de amor.
Todavia, a cena daquela tarde impressionara singularmente o moço. Pareceu-lhe que a insistência seria já degradação; resolveu lutar e esperar.
Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.
Augusta, quando se achou só, respirou; era evidente que a presença de Luís a importunava.
VII
A doença de Marcos foi mortal; dois dias depois da visita de Amélia o bom velho faleceu, deixando saudades a todos quantos o conheciam.
Na vida de Daniel foi um vácuo. Não se acostumara nunca à ideia de que viria a perder o pai; era a única família que tinha, e provavelmente o único ente a quem estimava neste mundo.
Os amigos deram-lhe as consolações do costume; alguns discursos foram proferidos na ocasião de dar-se o cadáver à sepultura; mas discursos, nem consolações podiam distrair o moço da dor que acabava de sofrer.
Para os outros pais foi um fausto acontecimento; era o noivo rico que convinha prender de algum modo. Por isso foi grande a afluência de senhoras à missa do sétimo dia.
Lá estavam Madalena e Augusta.
Quando, no fim da missa, começou a cerimônia dos pêsames, Daniel recebia-os maquinalmente e sem dar sinal de si. Não aconteceu o mesmo quando Augusta se aproximou dele e murmurou algumas palavras de consolação; não contava que ela estivesse na igreja.
Todavia, nem o estado dele, nem o lugar eram próprios para maiores espantos. A moça seguiu com a mãe, e Daniel ouviu as consolações do resto dos assistentes.
Valadares convidou Daniel para ir passar alguns dias em casa dele; apesar das recusas, tanto instou que Daniel cedeu, e para lá foi mesmo dali.
A morte do velho Marcos punha nas mãos de Daniel uma magnífica fortuna. Não contando com ela tão cedo, o rapaz não sabia em que empregá-la. A mulher de Valadares era de opinião que se casasse; Daniel abanou a cabeça; Valadares aconselhou-lhe uma viagem à Europa como cousa de maior proveito. Este conselho provocou entre o marido e a mulher uma pequena discussão que ia terminando por um ataque de nervos, desenlace seguro de muitas tragédias domésticas.
A ideia da viagem também não agradou a Daniel.
- Afinal - disse ele - a minha situação é a mesma, a diferença é que eu hoje administro aquilo que outrora fruía simplesmente.
- Por isso digo eu - atalhou Amélia-, como os trabalhos de administração são enfadonhos, procure uma companheira. Olhe, eu creio que tenho uma... que não se lhe dava de...
- Quem é? - perguntou Daniel.
- A Augusta B...
Daniel franziu a testa. Acreditou que a solicitude da moça indo à missa era simplesmente um cálculo. Figurava-lhe um espírito altivo, e saía-lhe uma mulher interesseira. Acaso a mulher de Valadares adivinhou esta impressão de Daniel? O certo é que imediatamente acrescentou:
- Mas repare que isto é lembrança minha; ela não me disse cousa alguma. Creio até que não seria cousa fácil; porque me parece orgulhosa demais...
- Parece-lhe isso?
- Sim. No entanto, se quiser que eu lhe fale...
- Oh! Não! Eu não tenho vontade de me casar.
De casar, creio que Daniel não tinha vontade nenhuma; mas nem por isso a lembrança de Augusta deixava de preocupá-lo. Havia naquela moça um mistério que ele queria aprofundar. A ocasião era boa para aproximar-se dela. Já haviam decorrido vinte dias depois da missa fúnebre; Daniel resolveu ir visitar a família de Augusta para agradecer-lhe a presença no ato religioso, tanto mais de agradecer quanto que não se ligavam por estreitos laços de amizade.
Só as duas senhoras estavam em casa quando se anunciou a visita de Daniel.
Augusta desapareceu da sala pouco antes de entrar o rapaz, que apenas encontrou Madalena, com quem travou uma conversa de cerca de meia hora. Durante esse tempo todo, Augusta não apareceu na sala. O rapaz esperou ainda alguns minutos, mas, vendo que não chegava, levantou-se para sair.
- Espero - disse Madalena - que não será esta a última vez que nos honre com a sua visita.
Daniel curvou a cabeça agradecendo.
Depois apertou a mão de Madalena e dirigiu-se para a porta, justamente no momento em que Augusta entrava na sala.
Cumprimentaram-se friamente.
Daniel saiu.
VIII
- Por que não vieste à sala mais cedo? - perguntou Madalena a Augusta.
- Tive uma vertigem; não podia vir - respondeu a moça.
- Foi pena, porque este moço é muitíssimo amável; passei meia hora agradavelmente.
- Foi pena! - murmurou a moça disfarçando um sorriso que lhe estava a entornar-se dos lábios.
Não disfarçou tanto que a mãe o não percebesse.
"Há alguma cousa", pensou ela.
Augusta não lhe disse mais nada; mas quem pudesse penetrar no seu espírito ouviria a seguinte reflexão:
- São todos os mesmos!
Reflexão que aliás não esclarece muito a situação. É provável que pelo romance adiante compreendamos essas palavras interiores de Augusta.
IX
O casamento é a perfeita união de duas existências; é mais do que a união, é a fusão completa e absoluta. Se o casamento não é isto, é um encontro fortuito de hospedaria; apeiam-se à mesma porta, escolhem o mesmo aposento, comem à mesma mesa, nem mais, nem menos.
Este é o casamento mais comum. O outro, o legítimo, o raro, esse é outra cousa que não isto. A religião santifica o casamento, mas supõe sempre a existência anterior de um elo tão sagrado como o do altar.
Não se parecia com este o casamento de Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao coração; primeiramente, por interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espécie de passeio ao Corcovado. Ora, todos são de acordo que do Corcovado se goza uma vista magnífica, mas a ninguém lembrou ainda a ideia de lá fundar uma cidade. Ninguém lá fica; sobe-se, goza-se, desce-se.
Valadares começava a sentir a necessidade de descer do Corcovado; a ideia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro pesadelo que lhe sufocava o espírito. Verdade é que a sua liberdade não estava tolhida; os boudoirs célebres que frequentara outrora começavam a festejar a volta do filho pródigo. Mas era sempre um vínculo, o pobre já sentia que lho apertava. Podia ser de rosas; mas achou-o de ferro.
Amélia casara-se com Valadares como casaria com outro qualquer; simples mudança de estado. Comprou a liberdade sob a forma de uma prisão. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a pé; e um protetor para abrigar a sua existência e sua reputação. Com estas condições, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais à mão foi o escolhido.
Imaginem já por aqui qual era a alegria conjugal daquelas duas criaturas.
Não tardou que o aborrecimento viesse sentar-se no lugar que o amor não ocupava; em vez de dois entes unidos por um grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta, com a diferença que a comunhão do infortúnio e do crime estabelece certa simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares e a filha de Seabra.
Começava a dissolver-se a forma conjugal, não se precisava ser águia para adivinhar que dentro de pouco tempo a casa liquidaria e os dois achariam na separação um remédio aos seus males.
Ora, este espetáculo e esta previsão desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse acima. Um dia de manhã resolveu mudar-se e assim o declarou aos donos da casa.
- Mudar-se? - exclamou Amélia -. E por quê?
- Porque devo morar só; além disso, está com o meu gênio.
- Se assim é - observou Valadares - , não te obrigo ao contrário. Mas hás de vir jantar comigo todos os dias...
- Todos os dias, não sei - respondeu Daniel.
- Já tem casa? - perguntou Amélia.
- O meu procurador - respondeu Daniel - disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos.
- Ah!
A mulher de Valadares sorriu maliciosamente; e o marido, por imitação, sorriu também.
Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe compreender.
- Mas que tem isso? - perguntou ele.
- Nada - acudiu Amélia -, quer dizer que está mais perto.
- De quem?
- Ora de quem! Dela!
- Não conheço!
- Augusta.
- Ora!
Daniel respondeu com uma expressão que simulava indiferença; mas, se devo confessar a verdade, não o era. Quando o procurador lhe trouxe a notícia de que havia casa na rua de Mata-cavalos, o rapaz estimou a notícia e aceitou a casa.
- O fato é - disse Amélia - que ela pensa no senhor.
- Em mim?
- Cuido que sim, porque há dias, indo eu lá, duas vezes me perguntou se estava bom. Quando me perguntou a segunda vez sorri como há pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era um protesto aparente.
Daniel ouviu atento as palavras de Amélia.
- E que não fosse! - disse ele -; como eu não vou para lá por causa dela...
- Creio - respondeu Amélia -; mas o fogo ao pé da pólvora...
- Eu não sou pólvora, nem fogo...
A conversa ficou aqui. Daí a dias, Daniel estava completamente mudado.
A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma janela; foi no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito ou expressivo? Não sabia.
X
No fim de quinze dias, recebeu Daniel um bilhete do tio de Augusta convidando-o a ir passar a noite com ele.
Deveria ir? Sem dúvida que sim. Não queria parecer que se metia à cara da moça. O orgulho lutava nele por dois modos; lutava, retendo-o longe de Augusta para não parecer que a adulava; lutava, impelindo-o para lá a ver se triunfava dela. É difícil que de uma luta colocada neste terreno venha bom resultado.
Daniel só pela tarde adiante resolveu ir à casa de Augusta.
Era uma reunião íntima; conversou-se e tocou-se; não se dançou.
O tio de Augusta desejou que Daniel considerasse a casa como sua; que se não prendesse por simples considerações de cerimônias enfadonhas. Posto que Daniel tivesse em pouco a conversa das salas, não por desprezo refletivo, mas por gênio e educação, todavia não ficava na sombra desde que lhe fosse necessário desempenhar-se como cavalheiro polido. Tinha natural espírito; a sua conversa era fácil, brilhante, sem ser profunda, cousa que agrada absolutamente às mulheres. Além disso, o rapaz queria impor-se no espírito da moça; e como fazê-lo senão por meio desses triunfos de eloquência familiar?
Mas Augusta parecia conhecer todas essas armas e a intenção com que eram manejadas; tratou Daniel como a todos os outros, em perfeito pé de igualdade. Nem lhe concedeu desta vez a distinção de desdém, que tanto agrada a certos caracteres; nivelou-o com as demais pessoas.
Numa ocasião, pediu um dos amigos da casa que a moça cantasse a cavatina da Norma, justamente na ocasião em que Daniel, por entabular intimidade, lhe pedia um pedaço de Lucia.
Colocada entre os dois pedidos, Augusta observou:
- Não posso executar ambas as cousas ao mesmo tempo. Uma há de ser primeira. Qual delas? Resolvam entre si.
Enquanto o sujeito que pedira a Norma, inclinava-se diante de Daniel, cedendo-lhe a vez, Augusta com ar distraído e indiferente brincava com as tranças de uma amiga que se lhe aproximara e que ia acompanhá-la ao piano.
Arranjara as cousas de modo que, nem mostrava preferência, nem desdém por Daniel, o que aconteceria (pensava ela) se cantasse primeiro ou depois o reclamado pelo rapaz.
Estes e outros incidentes produziram em Daniel o efeito natural; o orgulho foi-se pouco a pouco transformando; quando dali saiu, naquela noite, já se pode dizer que no coração do rapaz rompia a aurora do amor.
E, cousa singular, esse amor não era, como em outros casos, um resultado de simpatia, mas sim da antipatia de duas criaturas que, se se odiassem alguma vez, seriam mortais inimigos.