Capítulo primeiro
A rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas cousas: o artigo de fundo dá o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim.
Não é, pois, de admirar que ali comece este romance, que é ao mesmo tempo o romance do Dr. Daniel C..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só processo, e a julgar pelo gênero de vida que leva não promete ser cousa que preste na ordem judicial. E no entanto não lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto pela profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o polo Ártico está do polo Antártico.
Falemos verdade: o grande obstáculo que havia em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucauld, isso que Madame de Schönberg dizia ser - "un sentiment si caché et si véritable". A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixões; e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia afoutamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse atenção.
Indiferente ao movimento político, a queda de um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo.
Nenhuma grande ordem de ideias chamava a sua atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa atividade, que não tinha.
- A vida é um ônibus - dizia ele -; cada um paga a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num ônibus anda-se quieto; deixem-me andar quieto.
Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se um pouco a uma certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita tranquilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade.
A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixões, mas faltava fecundá-lo.
Vivia Daniel na rua do Ouvidor; os seus horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz uma viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a rua do Ouvidor. Se a rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la. Depois da rua do Ouvidor só uma cousa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.
Era elegante por indiferença; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saía sem comoções.
Não havia memória de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos, nem com os amigos, que ele aliás confundia até o ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo. Não consta que, depois de formado, concluísse a leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o título dos que lia à noite para chamar o sono.
Tinha entretanto talento, como disse, e podia ser alguma cousa, na política, no foro, nas letras e até no amor, porque era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de 15 anos. Mas não amava, nem era amado.
Vivia com o pai; e completavam ambos toda a família. O contraste era expressivo; tão apático era um, quão ativo era o outro. O velho Marcos era negociante desde longa data; ganhara no comércio todos os seus cabedais; agora trabalhava para não vadiar. Entendia que o trabalho não era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao trabalho de provar o contrário, o bom do velho limitava-se a sorrir e a responder:
- Tens razão, meu peralta; tens razão porque eu não posso admitir que não tenhas razão, mas deixa-me continuar no erro.
Outro contraste: Marcos era sempre folgazão; Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolência. Mas como não se zangava também, não apresentava nenhum contraste.
Tinha ido a dois ou três saraus em toda a sua vida; não dançou, nem jogou, nem ceou; limitou-se a olhar, a fumar e a trocar algumas palavras. Não se demorou em nenhum deles mais de uma hora.
Tal é o Dr. Daniel a quem os leitores vão ver na rua do Ouvidor, à porta de uma loja de modas.
II
Era há cinco anos, e na época das câmaras. A rua do Ouvidor é nessa época o grande pasmatório da capital; ali vão ter os deputados e os curiosos, os políticos por ofício e por devoção. À porta da loja em que vemos Daniel estão dois deputados conversando; trata-se de uma interpelação para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distraído algumas mulheres que vão passando.
De quando em quando lhe chegam aos ouvidos algumas palavras truncadas da conversa política; a única impressão que produz no rapaz é um sorriso.
No fim de algum tempo, parou diante de Daniel um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas elegantemente vestido. Eu diria que era um dandy se a novíssima expressão francesa petit crevé não correspondesse melhor ao tipo do recém-chegado.
- Adeus, Daniel! - disse este.
- Como estás, Valadares? Que fazes?
- Faço horas para jantar. São três e meia, não? Queres tu vir jantar comigo?
- Pois sim.
Valadares encostou-se também ao mostrador, cavalgou o pince-nez, e pôs-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um silêncio de alguns minutos.
No entanto, a conversa dos deputados tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabeça justamente na ocasião em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.
Daniel sorriu.
- Quem são estes dois sujeitos? - perguntou Valadares.
- Deputados.
Novo silêncio, interrompido por Valadares.
- Sabes que o Abreu fugiu? - disse ele.
- Por quê?
- Achou-se alcançado na caixa do patrão; e não querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da cena.
A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do charuto.
Valadares continuou:
- Nem sabes a causa disto?
- A Mariquinhas?
- Justo.
- Era previsto. Quando fugires também...
- Eu?
- Tu.
- Mas se eu não tenho caixa à minha disposição...
- Não se foge só do Rio de Janeiro, foge-se também do mundo.
- Um suicídio?
- Isso mesmo.
- Assim era eu tolo!
- Quando fugires ao planeta, eu saberei logo que é por causa da Luisinha.
- Não digas mal da pequena...
- Bem sei que é um anjo - disse Daniel -; mas isso não impede que lhe sacrifiques a vida; acho até natural...
- Com que cara ficarás quando eu te der uma notícia...
- Que notícia?
- Vou casar.
- Com ela?
- Pateta! Vou casar com uma conhecida nossa: uma das Seabras.
- Qual delas?
- A Amélia.
- Creio que são minhas primas remotas.
- Vê lá se um homem às portas do casamento pode lá matar-se por...
Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta do pé, e replicou:
- Mas isso e o que eu digo é a mesma cousa. Casar é fugir ao mundo; a bênção nupcial não é mais do que uma encomendação em regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, é justamente por causa da Luisinha, cujos caprichos já não estão de acordo com os teus sentimentos.
Pode-se afirmar que esta meia dúzia de palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silêncio e não respondeu mais às mil razões que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amélia e ao rompimento com a Luísa.
Desculpem-me se reúno no mesmo período estes dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortesã. Estavam unidas também na memória do rapaz, andam por aí ligados na vida; eu não faço mais do que copiar.
Valadares acabava de dar as mil razões do seu casamento quando à porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a portinhola e saíram de dentro duas senhoras: uma velha ainda conservada e uma rapariga de cerca de vinte anos.
Um dos deputados que estavam à porta conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mão. Saiu primeiramente a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.
Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de examinar os pés às mulheres.
- A mulher - dizia ele - é um livro; o pé é o índice do livro.
E já por aqui vê o leitor que Daniel tinha outra mania, que era a dos aforismos e sentenças.
Com a mania de examinar o pé às mulheres, Daniel não soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube apenas que tinha um bonito pé. Quando quis olhar-lhe para a cara, já ela havia entrado na loja. Mas nem procurou vê-la através da vidraça; limitou-se a voltar-se para Valadares e perguntar:
- Que gente é esta?
- É da família do B...
B... era um deputado do Norte.
Valadares olhou pela vidraça.
- Vê, Daniel, vê, como é bonita!
Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a pequena era bonita; mas não soltou nenhuma exclamação.
As duas senhoras pouco tempo se demoraram; alguns minutos depois chegaram à porta para entrar no carro. A moça ficou justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela a fim de confirmar a primeira opinião e deu com os olhos dela que por acaso se cravaram nele. À claridade, a moça pareceu-lhe mais bonita do que a princípio; mas não teve tempo de admirá-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdém, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava aberta.
A velha entrou depois e o carro partiu logo; Daniel olhou para dentro: a moça ia conversando com a velha, e sem prestar atenção a cousa alguma.
Toda esta cena, aliás rápida, escapou a Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moça, sorriu-se e tirou o relógio do bolso dizendo:
- Vamos jantar?
- Vamos - disse Valadares.
Na ocasião em que iam descer para o Hotel Inglês (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calçada uma liga, abaixou-se e apanhou-a.
- Será a liga da pequena? - perguntou Valadares.
- Honny soit qui mal y pense! - respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no bolso.
Foram jantar.
Durante o jantar não se conversou mais no episódio da liga nem da moça do Norte. Apenas, quando veio o café, Daniel perguntou onde morava aquela família, e soube que em Mata-cavalos. A conversa não passou disso.
A verdade histórica pede que se diga que ainda durante essa tarde a lembrança da dona da liga perturbou um pouco o espírito de Daniel; mas posso afirmar que à noite já ele de nada mais se lembrava.
Quando voltou a casa, atirou a liga para dentro de uma secretária, e nisto ficou tudo.
III
As senhoras do carro moravam em Mata-cavalos.
A velha era irmã de um deputado do Norte; chamava-se Madalena e era viúva de um oficial do exército. Augusta, sua filha, contava perto de vinte anos, e era, no dizer dos que a conheciam, a mais bela cara da província. Mas não se lhe notavam somente as feições; Augusta distinguia-se principalmente pela graça e elegância das maneiras, a que dava realce um certo ar de altivez.
Tendo sido eleito deputado, o Dr. B..., irmão da velha e tio da moça, entendeu que aproveitaria o ensejo de ver a capital do império trazendo consigo as duas senhoras. A proposta foi aceita com entusiasmo por Madalena e simples agrado por Augusta.
Efetuou-se a viagem e na época em que começa esta narrativa já eles aqui se achavam havia dous meses, tendo vindo um mês antes da abertura das câmaras.
Augusta fez sensação nas salas em que apareceu; a beleza, a graça, as maneiras da moça a todos impressionavam e todavia eram comuns essas cousas na vida fluminense; mas em Augusta tudo isso trazia um ar característico, um cunho pessoal, que distinguia a moça das demais mulheres.
Impressionado pela distinção de Augusta, um desalmado rapaz disse-lhe uma noite que não supunha a província capaz de produzir obra tão prima, e que ela era com certeza a fênix das provincianas.
- A natureza compensa tudo - respondeu Augusta -; é possível que na província as senhoras como eu sejam raras, mas os homens como o senhor com certeza são raríssimos.
Esta resposta foi ouvida por um amigo do rapaz, que não tardou em espalhá-la, e dentro de pouco tempo foram comentadas as palavras da bela provinciana.
- De mais a mais tem espírito - observou um sujeito.
- Parece.
A vítima do dito estava presente, e disse:
- É pena, porque é bem bonita.
- É um realce - acudiu o primeiro -; e para resumir na mesma designação as suas graças e as suas arranhaduras, chamar-se-á a onça de Medicis.
O nome não pegou, porque dos cinco rapazes então presentes, apenas o autor da ideia sabia da existência de uma Vênus de Medicis, condição essencial para compreender o dito; contudo, foi este acolhido com o riso dos circunstantes, um desses risos esquerdos que não querem dizer cousa nenhuma.
A reputação de Augusta ficou firmada com mais um ou dous repentes iguais ao primeiro, de maneira que quando a gente a encontrava sentia-se tomada por dois sentimentos diversos: a fascinação e o temor. Admirava-se a moça como se admirava uma bela pantera.
Nenhum destes antecedentes era conhecido pelos dois rapazes com quem travamos conhecimento na rua do Ouvidor; Valadares, o único que conhecia a família, só a conhecia de vista, por tê-la encontrado em casa de terceiro.
Mas, se em vez de seguirem para o Hotel Inglês, tivessem entrado na loja, depois da partida do carro, ouviriam este diálogo dos dois deputados a meia voz:
- Como vão os seus negócios com a Augusta? - perguntou o mais velho dos dois.
- Na mesma - respondeu o mais moço.
- Então nenhuma esperança?
- Esperança sempre. Já lhe disse uma vez e repito: eu tenho a ambição de ser ministro de Estado, ou embaixador ou qualquer outra cousa por este gênero; não tanto porque esses cargos pudessem legitimamente seduzir a ambição política; mas principalmente porque talvez assim obtenha as boas graças de Augusta.
- Disse-me isso uma vez - respondeu o outro -; mas cuidei que fosse simplesmente gracejo; há de lembrar-se que o disse rindo. Desta vez fala-me com seriedade. Será certo que as suas ambições têm esse principal motivo?
- Estou.
O interlocutor sorriu, e replicou:
- Espécie nova: político por amor. Há de ser bonito num romance, mas no parlamento é...
- Ridículo, bem sei.
- Justamente.
- E, no entanto, é verdade.
Houve um instante de silêncio.
- Luís - disse o interlocutor do namorado -, deixe-me dar-lhe este nome: tenho o direito da idade. Como contaremos com você, se o seu procedimento depende todo do capricho de uma moça?
- Nem por isso deixei de ser até hoje aliado fiel e ativo. Cuida que quando subo à tribuna não vou levado por uma convicção sincera? Vou; mas, se emprego às vezes demasiado ardor, confesso que uma parte dele é o resultado da intenção em que estou de fundar uma posição dominante... por causa dela.
- Mas não vejo...
- Vejo eu. Cuido que desse modo poderei vencer-lhe o orgulho.
O velho abanou a cabeça e franziu os lábios com um gesto de desagrado.
Mas a conversa parou aqui.
Luís saiu para o hotel em que morava; o velho foi jantar com um dos chefes da oposição.
Ao despedirem-se, disse o velho ao rapaz:
- Então amanhã é a interpelação.
- Amanhã.
IV
Oito dias depois destas cenas, estando Daniel almoçando em casa, e só, porque eram 11 horas e o velho Marcos almoçava às 8, apareceu Valadares alegre e rubicundo.
Daniel ofereceu-lhe almoço.
- Aceito porque ainda não almocei, e confesso que não pretendia fazê-lo por não ter vontade nenhuma. Mas pode ser que a tua companhia me abra o apetite. O velho está cá?
- Não.
Valadares sentou-se à mesa e começou a almoçar.
Durante os primeiros minutos apenas trocaram raros monossílabos. Daniel acabou primeiro e acendeu um charuto.
- Que novidade há? - perguntou ele.
- Uma grande novidade - respondeu Valadares.
- Imagino.
- Verás: uma novidade incrível e entretanto verdadeira, uma novidade, que não o é para ti, porque já te dei parte dela, mas então foi um pouco vagamente.
- Vamos ver o que é.
- Caso-me.
- Ah!
- Caso-me daqui a um mês.
- Estimo muito.
Valadares cruzou o talher e recebeu a xícara de café que lhe ofereceu o servente.
- Caso-me com a Amélia Seabra, e deste modo fico aparentado contigo. Ora, queres que te diga? Por muito superior que seja um homem, esta ideia de casamento é sempre uma grande preocupação. De cada vez que me levanto da cama pergunto a mim mesmo se é certo que dentro de pouco tempo estarei eternamente unido a uma mulher. Eternamente! Eu que nunca dei ao amor mais de dois meses de vida. Que te parece?
- Nada.
Valadares engoliu rapidamente o café, recuou a cadeira, e acendeu também um charuto.
- Dou um baile, sabes? - disse ele a Daniel -; e peço-te por especial obséquio que assistas a ele.
Daniel fez um gesto de assentimento.
- Creio que terei muita gente - continuou Valadares -; conto já com dois ministros e quatro senadores; são convites de meu sogro. Eu apenas me encarrego de convidar os rapazes. A propósito, lá teremos a pequena da liga.
- Que pequena?
- Ora, aquela que deixou cair a liga na rua do Ouvidor... Não te lembras?
- Ah!
Daniel recordou-se então do incidente da rua do Ouvidor.
- Que fizeste da liga? - perguntou Valadares.
- Creio que a pus na secretária.
Levantaram-se da mesa.
Indo para o seu gabinete, Daniel abriu a secretária e encontrou ainda a liga perdida por Augusta.
- Maganão! - disse Valadares-. Guardaste-a!
- Por distração... - respondeu Daniel.
E tornou a fechar a secretária.
Depois do encontro com Augusta, era a primeira vez que ela lhe voltava ao pensamento. Daniel recordava o gesto de supremo desdém e indiferença com que ela desviara os olhos e entrara no carro.
Se a preguiça, como quer o moralista, destrói todas as paixões, confessemo-lo que o faz lentamente e não de um lance. Daniel ainda tinha em si uma boa dose de orgulho, que resistia à ação do elemento dissolvente. A lembrança de Augusta foi de orgulho ofendido. O seu amor-próprio sofreu naquele momento com a evocação da cena da rua do Ouvidor.
- Com que então a moça da liga vai ao teu baile...
- Vai; é também convite de meu sogro. Sogro! Acho uma novidade nisto; parece-me que vou mudar de terra. Meu sogro! Não pensei nunca que tivesse de dar este nome a alguém. E no entanto... É o que te há de acontecer.
Daniel levantou os ombros.
- A mim? - disse ele -; se toda a humanidade esperar por mim para casar, podemos dar por extinta a raça humana.
- Era justamente o que eu dizia...
- Importa-me pouco o que tu dizias...
- Verás... verás...
Valadares saiu pouco depois e foi direitinho, não para a casa da noiva, mas para a casa de alguém já indicada neste romance.
Hão de ter notado que Valadares em toda a conversa sobre o casamento só de passagem aludira à mulher. Contrário a todos os noivos, a futura esposa não lhe merecera cinco minutos de atenção nas suas expansões com um amigo. Nem mais nem menos, tratava-se de um desses mercados a que, por cortesia, se chama - casamento de conveniência -, dois vocábulos inimigos que a civilização aliou.
Valadares tinha chegado àquele ponto em que se bifurca a estrada da vida de um estroina: de um lado, o casamento de conveniência, do outro a perdição completa. É difícil naquela situação encontrar uma mulher que se disponha a dar a mão ao estroina; achou-a Valadares.
Estas mesmas reflexões fê-las consigo Daniel, apenas se separou do outro, e, fazendo-as, comentou-as por modo que eu estenderia muito estas páginas se eu quisesse desenvolver as suas reflexões.
Não se davam com Daniel as circunstâncias de Valadares. Daniel era mais que tudo um homem extremamente pessoal. O casamento impor-lhe-ia uma preocupação que ele não queria ter; quanto aos prazeres do lar doméstico, eram cousa frívola para ele.
Quando o velho Marcos, ouvindo dele a notícia de que Valadares se ia casar, insinuou ao filho que o exemplo era bom de seguir:
- Pois não fosse! - respondeu Daniel, oferecendo um charuto ao pai.
V
O casamento de Valadares produziu grande impressão dans un certain monde, não acreditaram nele à primeira notícia, mas afinal não havia contestação que o boêmio, o estroina, o desalmado Valadares ia tomar estado.
A alguns parecia um sacrilégio, outros acharam que era simplesmente um milagre.
- Com que direito - dizia a Luisinha já citada -, com que direito nos arrancam as pérolas do nosso adereço?
Havia um adereço em que Valadares era pérola.
Os rapazes já enraizados no país de Citera, davam o noivo por maluco, posto que, no ânimo de alguns, o casamento era natural à vista dos bens de noiva.
Enfim, apesar de mil comentários e algumas apostas, Valadares casou.
Foi excelente a reunião em casa do sogro. Lá se achou, como prometera, o misantropo Daniel e mais o pai, que foi um dos padrinhos de casamento.
A noiva de Valadares era uma rapariga bonita, mas extremamente faceira, e apesar da especialidade do dia, em que todas as mulheres se parecem, era fácil adivinhar nela uma casquilha de primeira ordem. Via-se que era uma menina que casara para adquirir a liberdade de arruar. Caía em boas mãos.
Daniel, segundo o seu costume, não dançava; divertia-se em ver dançar os outros.
A família do deputado B... entrou às 10 horas; acompanhava-a Luís, o interpelante oposicionista que já encontramos na rua do Ouvidor.
Augusta estava radiante; a sua beleza, que reunia magnificamente a graça e a severidade, era dessas que centuplicam com as luzes da sala e perdem com a luz do dia. Quer isto dizer que, se Daniel a achara bonita na rua do Ouvidor, achou-a divinamente bela no salão dos Seabras.
Quando ela entrou fez sensação. Todos se curvavam involuntariamente por onde ela passava, semelhante à Vênus clássica, cuja divindade se percebia simplesmente pelo andar. Daniel achava-se encostado a uma porta por onde Augusta entrou na sala da dança. Não se curvou, nem deu sinal de si. Augusta pareceu recordar-se das feições do rapaz, e demorou-se alguns segundos a olhar para ele, mas para logo retirou os olhos, repetindo o mesmo gesto de desdém que tanto impressionara o filho do velho Marcos.
"Por que este gesto?", perguntava Daniel a si mesmo. Nunca a tinha visto, nem pretendido. De onde vinha essa espécie de prevenção contra ele? A curiosidade e o amor-próprio do rapaz estavam sofrivelmente aguçados.
Augusta entrou na sala pelo braço do tio; Luís dava o braço a Madalena.
Quando Valadares a viu entrar, foi ter com Daniel.
- Tive uma ideia - disse ele ao amigo.
- No dia de hoje nenhuma ideia pode ser boa.
- Pois é. Casa-te com Augusta.
A dança interrompeu o diálogo.
Daniel colocou-se de modo que visse Augusta; esta dançava com Valadares.
Durante a maior parte da quadrilha, os olhos de Daniel não se encontraram com os de Augusta; mas no fim, por simples acaso, a moça olhou para o rapaz, e sustentou por alguns instantes o olhar dele. Pareciam interrogar um ao outro. Desta vez foi Daniel o primeiro que afastou os olhos, e retirou-se.
Saiu dali, foi para uma sala intermediária, e ali atirou-se a um divã.
Estava só.
Consultou o relógio, olhou para o teto, examinou as luvas, concertou a gravata, levantou-se, deu alguns passos, e tornou a sentar-se até que a quadrilha acabou.
A sala foi invadida por alguns pares.
Posto que fosse perfeito homem de sociedade, nada o aborrecia mais que o frufru das sedas, o estalar dos leques, o murmúrio das conversações, todos esses rumores de uma festa alegre, que destoavam com o seu espírito reservado e solitário.
O fastio começou a invadi-lo; dentro de uma hora, se lhe não tivessem mão, estaria entre os lençóis.
Levantou-se e ia dirigir-se para a outra sala, quando lhe apareceu o pai dando o braço a Madalena. Marcos chamou-o. Daniel aproximou-se; o velho apresentou o filho à mãe de Augusta.
Daniel recebeu a apresentação com frieza; porém, Madalena foi tão amável que era impossível esquivar-se-lhe. Consequentemente, conversaram os três durante algum tempo.
O grupo foi aumentado daí a alguns minutos com a chegada de Valadares, que trazia Augusta pelo braço. Nova apresentação e desta vez mais solene para os dois apresentados. Nenhuma palavra foi trocada além do simples cumprimento que Daniel dirigiu a Augusta e que esta ouviu inclinando levemente a cabeça e olhando-lhe para os pés.
Não tinha que ver: aquelas duas criaturas antipatizavam um com o outro. Não se casava a altivez de uma com o orgulho de outra. Era o caso do provérbio: "duro com duro..."
Mas se ambos antipatizavam a tal ponto, nem por isso Daniel deixava de admirar a beleza de Augusta, e Augusta, a desdenhosa severidade de Daniel; e essa mesma admiração os afastava mais; porque a admiração é um preito; e, nas poucas e curtas vezes que se haviam encontrado, claramente se percebia em cada um deles a consciência da superioridade.
Não era entretanto do mesmo modo que Augusta olhava para Luís; para este olhava com certa compaixão. Parecia ter pena dele. Quando este lhe falava, ela respondia com bondade e doçura, mas a doçura e a bondade de quem trata com um inferior, o que contrastava com o respeito do namorado político. E, no entanto, o crime dele era simplesmente gostar dela, e havê-la pedido em casamento, ao que ela se escusou, dizendo que era melhor ficarem simples amigos.
Luís não dançava; tinha, como Daniel, a opinião de que a dança é um prazer dos olhos.
No fim, porém, de meia hora, Valadares foi ter com Daniel insistindo para que ele dançasse ao menos uma quadrilha, ao que ele recusou. Como estivessem a discutir este importantíssimo ponto, passou Augusta, e Valadares interrompeu-a para dizer-lhe oficiosamente:
- O Dr. Daniel incumbiu-me de lhe pedir esta quadrilha para ele.
Daniel mordeu os beiços.
Augusta respondeu olhando para Valadares.
- Mas eu não danço mais.
- Por quê?
- Estou cansada.
Daniel interveio.
- O Valadares - disse ele - pediu-lhe espontaneamente uma honra que eu não ousava desejar, nem esperar.
- Estou cansada - repetiu secamente Augusta, a quem Valadares deu o braço, escapando assim a uma repreensão do amigo.
Daí a um quarto de hora Daniel desapareceu do baile.
Despontava-lhe já uma espécie de ódio contra Augusta. Seria esse o caminho do amor?