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Conto

Qual Dos Dois?

1872
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em setembro, outubro, novembro e dezembro de 1872 e em janeiro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

A rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas cousas: o artigo de fundo dá o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim.

Não é, pois, de admirar que ali comece este romance, que é ao mesmo tempo o romance do Dr. Daniel C..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só processo, e a julgar pelo gênero de vida que leva não promete ser cousa que preste na ordem judicial. E no entanto não lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto pela profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o polo Ártico está do polo Antártico.

Falemos verdade: o grande obstáculo que havia em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucauld, isso que Madame de Schönberg dizia ser - "un sentiment si caché et si véritable". A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixões; e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia afoutamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse atenção.

Indiferente ao movimento político, a queda de um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo.

Nenhuma grande ordem de ideias chamava a sua atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa atividade, que não tinha.

- A vida é um ônibus - dizia ele -; cada um paga a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num ônibus anda-se quieto; deixem-me andar quieto.

Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se um pouco a uma certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita tranquilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade.

A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixões, mas faltava fecundá-lo.

Vivia Daniel na rua do Ouvidor; os seus horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz uma viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a rua do Ouvidor. Se a rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la. Depois da rua do Ouvidor só uma cousa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.

Era elegante por indiferença; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saía sem comoções.

Não havia memória de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos, nem com os amigos, que ele aliás confundia até o ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo. Não consta que, depois de formado, concluísse a leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o título dos que lia à noite para chamar o sono.

Tinha entretanto talento, como disse, e podia ser alguma cousa, na política, no foro, nas letras e até no amor, porque era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de 15 anos. Mas não amava, nem era amado.

Vivia com o pai; e completavam ambos toda a família. O contraste era expressivo; tão apático era um, quão ativo era o outro. O velho Marcos era negociante desde longa data; ganhara no comércio todos os seus cabedais; agora trabalhava para não vadiar. Entendia que o trabalho não era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao trabalho de provar o contrário, o bom do velho limitava-se a sorrir e a responder:

- Tens razão, meu peralta; tens razão porque eu não posso admitir que não tenhas razão, mas deixa-me continuar no erro.

Outro contraste: Marcos era sempre folgazão; Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolência. Mas como não se zangava também, não apresentava nenhum contraste.

Tinha ido a dois ou três saraus em toda a sua vida; não dançou, nem jogou, nem ceou; limitou-se a olhar, a fumar e a trocar algumas palavras. Não se demorou em nenhum deles mais de uma hora.

Tal é o Dr. Daniel a quem os leitores vão ver na rua do Ouvidor, à porta de uma loja de modas.

II

Era há cinco anos, e na época das câmaras. A rua do Ouvidor é nessa época o grande pasmatório da capital; ali vão ter os deputados e os curiosos, os políticos por ofício e por devoção. À porta da loja em que vemos Daniel estão dois deputados conversando; trata-se de uma interpelação para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distraído algumas mulheres que vão passando.

De quando em quando lhe chegam aos ouvidos algumas palavras truncadas da conversa política; a única impressão que produz no rapaz é um sorriso.

No fim de algum tempo, parou diante de Daniel um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas elegantemente vestido. Eu diria que era um dandy se a novíssima expressão francesa petit crevé não correspondesse melhor ao tipo do recém-chegado.

- Adeus, Daniel! - disse este.

- Como estás, Valadares? Que fazes?

- Faço horas para jantar. São três e meia, não? Queres tu vir jantar comigo?

- Pois sim.

Valadares encostou-se também ao mostrador, cavalgou o pince-nez, e pôs-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um silêncio de alguns minutos.

No entanto, a conversa dos deputados tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabeça justamente na ocasião em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.

Daniel sorriu.

- Quem são estes dois sujeitos? - perguntou Valadares.

- Deputados.

Novo silêncio, interrompido por Valadares.

- Sabes que o Abreu fugiu? - disse ele.

- Por quê?

- Achou-se alcançado na caixa do patrão; e não querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da cena.

A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do charuto.

Valadares continuou:

- Nem sabes a causa disto?

- A Mariquinhas?

- Justo.

- Era previsto. Quando fugires também...

- Eu?

- Tu.

- Mas se eu não tenho caixa à minha disposição...

- Não se foge só do Rio de Janeiro, foge-se também do mundo.

- Um suicídio?

- Isso mesmo.

- Assim era eu tolo!

- Quando fugires ao planeta, eu saberei logo que é por causa da Luisinha.

- Não digas mal da pequena...

- Bem sei que é um anjo - disse Daniel -; mas isso não impede que lhe sacrifiques a vida; acho até natural...

- Com que cara ficarás quando eu te der uma notícia...

- Que notícia?

- Vou casar.

- Com ela?

- Pateta! Vou casar com uma conhecida nossa: uma das Seabras.

- Qual delas?

- A Amélia.

- Creio que são minhas primas remotas.

- Vê lá se um homem às portas do casamento pode lá matar-se por...

Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta do pé, e replicou:

- Mas isso e o que eu digo é a mesma cousa. Casar é fugir ao mundo; a bênção nupcial não é mais do que uma encomendação em regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, é justamente por causa da Luisinha, cujos caprichos já não estão de acordo com os teus sentimentos.

Pode-se afirmar que esta meia dúzia de palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silêncio e não respondeu mais às mil razões que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amélia e ao rompimento com a Luísa.

Desculpem-me se reúno no mesmo período estes dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortesã. Estavam unidas também na memória do rapaz, andam por aí ligados na vida; eu não faço mais do que copiar.

Valadares acabava de dar as mil razões do seu casamento quando à porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a portinhola e saíram de dentro duas senhoras: uma velha ainda conservada e uma rapariga de cerca de vinte anos.

Um dos deputados que estavam à porta conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mão. Saiu primeiramente a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.

Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de examinar os pés às mulheres.

- A mulher - dizia ele - é um livro; o pé é o índice do livro.

E já por aqui vê o leitor que Daniel tinha outra mania, que era a dos aforismos e sentenças.

Com a mania de examinar o pé às mulheres, Daniel não soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube apenas que tinha um bonito pé. Quando quis olhar-lhe para a cara, já ela havia entrado na loja. Mas nem procurou vê-la através da vidraça; limitou-se a voltar-se para Valadares e perguntar:

- Que gente é esta?

- É da família do B...

B... era um deputado do Norte.

Valadares olhou pela vidraça.

- Vê, Daniel, vê, como é bonita!

Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a pequena era bonita; mas não soltou nenhuma exclamação.

As duas senhoras pouco tempo se demoraram; alguns minutos depois chegaram à porta para entrar no carro. A moça ficou justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela a fim de confirmar a primeira opinião e deu com os olhos dela que por acaso se cravaram nele. À claridade, a moça pareceu-lhe mais bonita do que a princípio; mas não teve tempo de admirá-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdém, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava aberta.

A velha entrou depois e o carro partiu logo; Daniel olhou para dentro: a moça ia conversando com a velha, e sem prestar atenção a cousa alguma.

Toda esta cena, aliás rápida, escapou a Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moça, sorriu-se e tirou o relógio do bolso dizendo:

- Vamos jantar?

- Vamos - disse Valadares.

Na ocasião em que iam descer para o Hotel Inglês (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calçada uma liga, abaixou-se e apanhou-a.

- Será a liga da pequena? - perguntou Valadares.

- Honny soit qui mal y pense! - respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no bolso.

Foram jantar.

Durante o jantar não se conversou mais no episódio da liga nem da moça do Norte. Apenas, quando veio o café, Daniel perguntou onde morava aquela família, e soube que em Mata-cavalos. A conversa não passou disso.

A verdade histórica pede que se diga que ainda durante essa tarde a lembrança da dona da liga perturbou um pouco o espírito de Daniel; mas posso afirmar que à noite já ele de nada mais se lembrava.

Quando voltou a casa, atirou a liga para dentro de uma secretária, e nisto ficou tudo.

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