III
Cerca de dois meses depois do jantar em casa de Alves, fazia Moreira consigo as seguintes reflexões, à proporção que ia engolindo o café em casa do tio, no Aterrado:
"É evidente que eu gosto dela alguma cousa, não muito, um gostar a frio que me não tira a razão nem a serenidade. Ela não desgosta de mim; creio até que gosta muito, quase tanto como no outro tempo, e é claro que se casou só por fazer a vontade à mãe. Se não houvesse casado, é duvidoso que eu tomasse tal encargo; já agora não me caso mais, salvo por negócio. Mas quem me pode impedir que a ame, que seja amado, que sejamos felizes?"
Aqui saboreou um gole de café e continuou:
"O Alves não há de certamente gostar disto; mas também não é necessário dizer-lho; é até prudente não lhe dizer nada. A minha consciência..."
Um gole de café.
"A minha consciência está a dizer-me que ele é meu amigo, e que fui e sou talvez amigo dele; mas há um rifão que diz: amigos, amigos, negócios à parte. Ele é que errou em casar com uma moça de quem eu gostava; tudo isto é agora uma mera consequência."
Moreira esvaziou a xícara, acendeu um charuto, e pensou seriamente em escrever uma carta a Eulália. Fechou a porta do quarto, travou da pena e escreveu o rascunho da carta que se vai ler:
Eulália,
Quem diria que onze anos depois nos havíamos de encontrar em semelhante situação? Foram onze séculos de martírio para mim, que vaguei tão longe do lugar onde tu vivias, onde vivia a minha única felicidade. Poupo-te a história aflitiva desse longo prazo de amarguras; calcula pelo que padeceste também. Sim, ouso afirmar que padeceste, porque o leio nos teus olhos, porque o meu coração me diz que ainda me amas, e que, assim como eu me não esqueci de ti, assim tu te não esqueceste de mim.
Oh! Se assim não fora! Se ao cabo de tanto tempo de estranhas e irreparáveis mágoas, meu coração viesse achar o teu coração gelado e sem o mínimo vestígio de amor, juro-te, Eulália, que me mataria. Era muito que o destino nos separasse; era muito, mas podia sofrer-se. O que, porém, está acima de todas as forças humanas, das minhas forças pelo menos, era que tu me esquecesses! Odeia-me, se queres, mas lembra-te de mim!
Bem vejo que a nossa situação é hoje melindrosa e singularmente infeliz; mas um raio de luz me basta. Nada mais quero, para ser o mais venturoso dos mortais, do que a certeza do teu afeto e um sincero olhar de benevolência.
Ama aquele que sempre te amou.
Teu até a morte.
M.
Releu Moreira esta epístola e achou-a boa para o caso. Não é preciso apontar ao leitor a diferença do monólogo e da epístola: ele a terá notado por si mesmo.
Não se demorou Moreira em copiar a carta; fê-lo com a sua letra mais trêmula e comovida; fechou-a, e acabava de a pôr na carteira, quando lhe foi anunciada a visita de Alves.
Foi recebê-lo com a maior alegria no rosto.
- Não achas novidade que eu aqui viesse depois de tantas promessas inúteis? - perguntou o advogado logo que viu assomar à porta da sala a figura do amigo.
- Novidade decerto que é.
- Uma ideia.
- Ah! Vejamos.
- Vamos para Petrópolis sábado. Queres vir conosco?
- Sábado?
- Sim.
- Não sei se posso; em todo caso, farei os esforços possíveis...
- Esforços! - disse Alves encolhendo os ombros -. Quem te ouvir, dirá que tens graves negócios em mão.
- Talvez.
- Imagino.
- Pois bem, iremos todos no sábado - disse Moreira depois de alguns instantes de reflexão.
- Vou apenas estar uns quinze dias; aproveito as férias - explicou Alves levantando-se e pegando no chapéu.
- Já?
- Já. Vou a São Cristóvão; aproveitei esta ocasião para fazer-te a visita e o pedido. Vais lá de noite?
- É provável.
Era definitivo, leitor; ele não tinha outro projeto senão ir lá de noite, e quanto à viagem a Petrópolis, achou desde o princípio que era uma grande fortuna. Os três dias passaram-se depressa; às duas horas da tarde de sábado estavam os três na barca; a barca saiu, chegou a Mauá, saiu o trem, fez-se enfim a viagem até à cidade sem notável incidente.
Perdão: houve um incidente.
Na estação do caminho de ferro, vendo Moreira que o amigo conversava com um amigo, entregou a Eulália o lenço que lhe havia caído.
A moça agradeceu com uma leve inclinação de cabeça; pegou no lenço e sentiu um corpo estranho. Era papel; era naturalmente uma carta; fez-se vermelha e foi dar o braço ao marido.
Durante a viagem Moreira procurou muitas vezes, com os olhos, os olhos de Eulália; apenas uma vez os encontrou, mas tão medrosos eram, que para logo fugiram para se cravarem no marido. Este sorriu, com a benevolência e o amor de costume; a felicidade de Alves estava toda na mulher; vê-la feliz e contente era a sua maior fortuna.
No dia seguinte ao da chegada a Petrópolis foram os três, logo de manhã, dar um passeio de carro. A manhã estava deliciosa. Mas o que fez espantar o namorado não foi a manhã, foi Eulália. A moça parecia singularmente alegre, alegre como a não vira desde que de novo a encontrara. Esta mesma mudança fazia admirar não menos o marido; mas a admiração deste era mesclada de ainda maior contentamento que o de Moreira. As férias começavam bem; todos pareciam felizes.
Tão felizes que Alves tornou por vezes a ser o que fora no tempo de solteiro: palrador e amavelmente indiscreto.
- Que estás tu a olhar para aquelas moças? - perguntou ele ao amigo, cujos olhos disfarçadamente observavam um rancho de damas.
- Eu? - disse Moreira, olhando ao mesmo tempo para Eulália.
- Que tem? Não é natural? - perguntou esta sorrindo-se para o seu antigo namorado.
Moreira embasbacou.
Que era aquilo? Um remoque? Uma queixa? Moreira perdia-se em conjecturas. O passeio foi assim cortado de incidentes mais ou menos enigmáticos. A tarde, entretanto, foi melhor; a moça mostrou-se com ele muito amena e afetuosa, o que, no parecer do namorado, fez subir as suas ações cento por cento.
Mas a resposta da carta?
"É impossível", pensou Moreira, "que a resposta dela não passe destes agradinhos, muito bons decerto, mas insuficientes para eu saber se ela efetivamente aceita o que lhe disse... Preciso a todo o transe de uma resposta."
Pensar isto e escrever um bilhetinho foi tudo a mesma cousa. A nova missiva continha apenas estas palavras.
Minha vida! Que resposta me dás? Devo eu morrer ou viver? Venha a morte, embora, mas sem torturas...
Teu, sempre teu,
M.
Este bilhete foi deitado de passagem no regaço da moça; ela de novo estremeceu e corou. Alves estava então de costas e nada viu. Moreira foi ter com ele e perguntou-lhe se havia já lido o Jornal do Commercio desse dia. Travou então conversa a respeito de um artigo que lá vinha a respeito de não sei que negócio ministerial, cousa que não interessava absolutamente a Moreira, mas que ele parecia discutir com muito ardor.
Estavam nisto quando Eulália soltou um pequeno grito. Alves voltou-se rapidamente e foi ter com a mulher.
- Que foi?
- Nada; uma pontada.
Alves ajoelhou-se diante dela, levou-lhe a mão ao coração, que batia algum tanto agitado.
- Estás melhor? - perguntou ele.
- Estou.
- Anda descansar.
- Não; passou.
Dizendo isto, a moça cravou os olhos no marido, cuja aflição estava expressa no rosto.
- Não é nada - repetiu.
E, para mostrar que nada era, levantou-se e deu-lhe o braço. Saíram até o jardim; Moreira acompanhou-os ao lado e mostrando como podia o interesse que lhe causava a saúde da moça, mas um tanto surpreso com o incidente. A carta nada continha que lhe pudesse causar abalo; a primeira, sim. Demais, a carta estava já guardada, porque ele a não viu na mão de Eulália.
No fim de uma hora, voltaram para casa; Eulália foi para os seus aposentos; Alves acompanhou-a; Moreira retirou-se para o hotel onde alugara um aposento.
"Que diabo seria aquilo?", pensava ele. "Natural não me parece que fosse; a causa é que eu não posso atinar qual seja. Esperemos a resposta; é impossível que se demore mais."
A tarde passou sem carta.
IV
Na manhã seguinte, logo depois do almoço, Moreira foi visitar o advogado. Alves tinha saído; Moreira encontrou Eulália na sala.
A moça estremeceu.
- Eulália! - disse ele com voz tímida.
E ia naturalmente continuar este discurso que prometia ser ardente e impetuoso, quando apareceu à porta uma senhora; era uma amiga de Eulália.
Moreira mandou interiormente a tal amiga a todos os diabos, e saiu logo depois. Uma hora depois, voltou à casa de Alves; achou-o lá, e recebeu a notícia de que este tencionava voltar para a Corte no dia seguinte.
- Já! - exclamou Moreira, naturalmente admirado da alteração do programa.
- É preciso; tenho um negócio urgente - disse o advogado -. Tu ficas?
- Talvez.
- Em todo caso, preciso falar-te.
- Estou às tuas ordens.
- Será logo à tarde.
Moreira saiu daí a pouco.
"A rapariga é mais fina do que eu pensava", ia pensando Moreira, "ou eu sou o mais feliz dos homens. Naturalmente ela fica; tem aqui pessoas de amizade. Eu também sou pessoa de amizade, e cá fico."
Sobre esta frágil base de uma conjectura, edificou Moreira um castelo de esperanças; falou distraidamente a quantas pessoas encontrou, e meteu-se em casa à espera do amigo.
O amigo não se demorou.
Estava justamente Moreira a pensar nele quando a figura de Alves apareceu à porta do quarto.
- Entra.
- Ninguém nos ouve?
- Ninguém.
Alves fechou a porta do quarto com a chave e pô-la no bolso. Moreira olhou para ele espantado, e ia naturalmente perguntar-lhe a causa daquele gesto, quando o advogado lhe tirou de todo a voz com outro gesto ainda mais significativo: tirou um revólver da algibeira e pô-lo ao pé de si na mesa. Sentou-se e começou a falar.
Antes porém de dizer o que disse Alves ao seu amigo Moreira, voltemos um pouco atrás e digamos ao leitor o acontecimento que deu caso ao outro que vai principiar.
Na véspera, logo depois de se retirar a seus aposentos, Eulália mandou chamar o marido. Este ia justamente para lá.
- Que queres? - perguntou Alves com solicitude.
Eulália caiu-lhe nos braços lavada em lágrimas.
- Que tens? - perguntou o marido ansioso.
Eulália não pôde logo falar. Alves estava aflito.
- Vamos, não chores, que tens? - disse ele.
- Deixa-me chorar - murmurou a moça -; estas lágrimas são de alegria.
- De alegria?
- Sim; amo-te.
Alves perguntou-lhe sorrindo:
- Só agora?
- Não; mas só agora o sei - respondeu Eulália, enxugando os olhos -. Amo-te deveras; não o tinha compreendido até hoje. És bom, amante, generoso, como nenhum outro homem.
Alves sentiu-se comovido e desviou o rosto.
- Oh! Não te escondas! - exclamou ela -; eu sei o que vales!
- Mas por que razão?...
- Vais saber tudo - disse a moça, sentando-se e convidando-o a sentar-se ao pé de si.
Alves sentou-se ao pé da mulher.
- Não me casei contigo por amor, sabes - disse ela -; conquistaste-me depois o coração a pouco e pouco. Não que eu o soubesse; eu mesma não esperava na vitória que ias obtendo. A razão por que me não casei por amor foi que circunstâncias estranhas me haviam separado de um homem com quem eu então desejava unir-me. Daí veio a tristeza em que eu vivia sempre, que minha mãe não podia explicar, e que tu buscaste apagar por todos os meios que a tua generosidade e o teu amor te sugeriam.
- Esse homem?...
- Esse homem é o teu amigo Moreira.
Alves deu um salto da cadeira em que se achava assentado. Eulália fez-lhe um gesto para que se sentasse de novo.
- Mas a que vem esta história? - perguntou Alves.
- Antes de dizer mais nada, promete-me que me hás de obedecer.
- Mas...
- Prometes-me?
- Prometo.
- Pois bem, esse homem voltou da Europa e tu trouxeste-o à nossa casa. Onze anos eram passados depois que ele havia partido. Era teu amigo e eu não lhe era estranha ao coração: dois motivos que, juntos, deviam servir de barreira entre ele e a nossa porta. Veio contudo à nossa casa, muitas vezes; devia respeitar-me; não me respeitou...
Dizendo isto, abriu Eulália uma caixinha e tirou de dentro uma carta, a primeira carta de Moreira, que entregou aberta ao marido.
Alves atirou-se com sofreguidão ao fatal papel; leu-o, machucou-o entre as mãos, levantou-se exasperado. Eulália pediu-lhe que se sentasse outra vez.
- Não lhe respondi - disse ela -; era claro que não devia responder. Devia mostrar-te a carta logo ou rasgá-la; não tive ânimo de ta mostrar, nem me pareceu conveniente rasgá-la; podia ter necessidade de dizer tudo. Ele insistiu na resposta, e ontem, na nossa sala, atirou-me este bilhete. Foi a indignação que me causou a perfídia do homem que tão serenamente conversava contigo, quando buscava atraiçoar-te, foi essa indignação que me fez soltar aquele grito.
Alves leu o bilhete de Moreira, que nada adiantava depois da carta, apenas a reincidência e a pertinácia de um aparente amigo. Houve naturalmente uma explosão de cólera; Eulália buscou tranquilizá-lo e o conseguiu.
- Devo antes agradecer - disse ela - a indignidade daquele homem; foi ela que me deixou ver claro no meu coração; minha virtude era bastante; mas a certeza de que eu te amava deveras, o teu verdadeiro amor, a superioridade do teu caráter, tudo isso junto realçou as forças da minha virtude...
A resposta de Alves foi abraçá-la com ternura. Em seguida caminhou para a porta.
- Onde vais? - perguntou Eulália.
Alves parou.
- Prometeste obedecer-me - observou a moça.
- Impossível! - bradou Alves.
- Oh! Eu nada te diria se não tivesse certeza de que evitarias alguma catástrofe. Por Deus te peço; basta o nosso desprezo...
Alves resistiu; Eulália rogou; ambos chegaram finalmente a um acordo: Alves evitaria qualquer lance sanguinolento. Foi depois desta cena que o advogado foi ter com Moreira.
V
Moreira ficou naturalmente assombrado quando viu o gesto do advogado.
- Que é isto? - disse ele enfim.
- Nada; apenas precauções - respondeu Alves pacificamente.
Moreira compreendera tudo; preparou-se para a negativa. Mas até que ponto estaria Alves informado dos seus atos? Esta era a dúvida. Entretanto começou Alves a falar:
- Sabes que opinião fiz de ti desde longos anos?
Moreira fez um gesto afirmativo.
- Sabes que opinião formo hoje? Hoje penso que és um miserável.
Moreira estremeceu e fez um gesto para se levantar.
Alves apontou-lhe o revólver.
- Senta-te - disse-lhe.
E continuou:
- És um miserável, como poucos. Estás convencido disso; não me demoro em recordar as tuas ações. Venho por outra cousa.
Moreira estava pálido; dissuadira-se da ideia de que ele vinha assassiná-lo; mas ocorreu-lhe a de que ele viria obrigá-lo a um duelo sem testemunhas, e Moreira tinha ideias e temperamento de todo o ponto opostos ao duelo.
Alves continuou:
- Vais escrever e assinar um papel assim concebido: "Reconheço que devo a vida à misericórdia de Fernando Alves, cuja honra pretendi em vão macular como um miserável infame que sou."
- É impossível! - clamou Moreira levantando-se de um pulo.
Alves sorriu-se.
- Nesse caso morres - disse ele -, porque eu não saio daqui sem obter uma destas duas cousas: ou o papel ou a tua vida.
Moreira deu alguns passos agitado e trêmulo de medo e cólera. De repente uma ideia lhe passou pela cabeça: atirar-se ao amigo e esganá-lo, com tal ímpeto que não lhe desse tempo de resistir, e menos ainda de o atacar. Relanceou um olhar para o advogado, e aproximando-se vagarosamente da mesa, deu um salto sobre o inimigo.
Alves previra aquilo mesmo, de maneira que Moreira antes de o segurar como queria, foi obrigado a recuar diante do revólver encostado ao peito.
Moreira soltou um rugido.
- Afadigas-te sem proveito - observou tranquilamente o advogado -; nada podes obter senão uma das duas cláusulas que te propus. Escolhe.
Moreira era antes de tudo covarde. A hesitação dele não provinha de outra cousa senão do medo que lhe causava o efeito da declaração que se lhe pedia. Uma vez porém adquirida a certeza de que a morte seria a punição da recusa, era claro que ele escreveria o papel.
Entretanto, lançou-se aos pés de Alves, confessou-lhe tudo, pediu-lhe perdão. Alves mostrou-se inflexível. Era força ceder; Moreira cedeu. Com a mão trêmula, lançou mão da pena e escreveu o que lhe ditou o advogado, assinou o escrito e entregou-lho.
- Muito bem - disse Alves -; a letra está um pouco trêmula, mas logo se reconhece o medo que tinhas no coração. Agora, miserável, à primeira tentativa posso desonrar-te e matar-te.
Alves abriu a porta e saiu.
Moreira ficou abatido durante meia hora; veio depois uma reação, levantou-se da cadeira, quebrou uma cadeira, ameaçou, lastimou-se... mas tudo em vão. O mal estava feito e a punição era absoluta.