Conto

Onze Anos Depois

1875
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em outubro e novembro de 1875, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

- Alves!

- Moreira!

Soltados estes dois gritos, os dois indivíduos a quem pertenciam aqueles nomes, trocaram um formidável abraço, com palmadas nas costas, a despeito de se passar a cena na rua do Ouvidor, às duas horas da tarde. Abraçados e palmejados os dois amigos (eram evidentemente amigos) tornaram a exclamar:

- Ora o Alves!

- Ora o Moreira!

- Há dez anos... Dez ou onze? Onze, creio eu, onze anos que nos não vemos... Foi em 1860 que eu saí daqui... e fui...

- Gozar a vida, maganão!

- Oh! Pouco! - disse Moreira suspirando... - Posso dizer que nada.

- Impossível!

- É a pura verdade. Alguma cousa me diverti, é certo; nem é possível que um homem, a não ser um misantropo, deixe de se divertir na Europa... Mas se soubesses a causa que me levou daqui...

- Que foi?

- Saberás depois. Por agora dize-me: estás casado?

- Há cinco anos.

- Tens algum filho?

- Não.

- Livre! Livre, e não foste ainda à Europa?

- Ainda não posso, mas não estou longe disso. Sabes que um advogado que não herdou bens de fortuna precisa primeiro acumular algum cabedalzinho; trato disso agora... Que calor! Anda tomar alguma cousa...

- Conversar apenas contigo - respondeu Moreira dando o braço ao amigo e dirigindo-se com ele para a casa do Carceller.

Ambos eles iam contentes e palreiros. Regulavam pela mesma idade, trinta a trinta e três anos; eram igualmente magros, não muito, e quase de igual altura. Moreira vestia mais apuradamente que Alves, trazia certo cunho parisiense, que de todo faltava ao amigo.

Moreira nada tomou no Carceller enquanto Alves sorvia deliciosamente um sorvete de ananás. Veio cada um deles com a história daqueles anos em que se não tinham visto. Alves tinha menos que contar; o principal assunto foi o casamento, que se passou de uma maneira singular, porque não precedeu nenhum namoro entre ele e a mulher. A mulher era uma moça assaz bonita, que vivia retiradamente com a mãe e parecia ter jurado não comungar nunca nos altares do matrimônio. Alves frequentava a casa, como advogado da mãe, num processo em que um sujeito possuidor de quinhentos contos queria tirar-lhe uma casa que valia vinte, e a que ele tinha tanto direito como o grão-turco. Alves venceu o processo, e não foi esse o único triunfo obtido, porque a mãe, no dia em que ele lhe foi levar notícia da sentença final, chamou-o de parte e disparou-lhe estas palavras:

- Doutor, se os laços da família nos ligarem, como já nos ligam os do coração...

Alves recuou. Dona Mariana olhava para ele como quem esperava uma resposta; o advogado não teve remédio senão dizer alguma cousa.

- Minha senhora - murmurou ele -, eu não teria dúvida nenhuma em corresponder ao que me propõe se o meu coração já não estivesse ligado a outra pessoa...

Dona Mariana suspirou.

- Bem sabe que estas cousas - continuou Alves - exigem como condição indispensável o concurso do coração.

Parou, cobrou ânimo e prosseguiu:

- No entanto, o seu afeto podia fazer muito em meu favor; e se eu não posso ter a honra de ser seu marido...

Aqui as sobrancelhas de D. Mariana descreveram a figura de dois acentos circunflexos, a boca assumiu a forma de um O, e o Dr. Alves, pasmado daquele pasmo, deu à sua fisionomia um ar de ponto de interrogação.

Deste ponto de interrogação passou a um ponto de admiração, quando D. Mariana lhe explicou que não era para ela que propunha o casamento, mas para sua filha, pois notara que o advogado alguma simpatia lhe votava, e ela por outro lado desejava vê-la feliz.

O Dr. Alves respirou e confirmou a simpatia a que aludira a Sra. D. Mariana, acrescentando que a maior fortuna da sua vida seria desposar a formosa D. Eulália.

- Nem está longe disso - respondeu a mãe.

- Deveras?...

- Parece-me que sim.

A boa velha calou-se alguns instantes, abriu as asas a um suspiro, que naturalmente ficou vagabundo no ar, e a despeito da cabeleira postiça que trazia e da tosse que a mortificava, fez ao futuro genro estas revelações:

- Fez mal em atribuir-me um pensamento que não tive; eu não me propunha a casar, nem me casarei jamais, enquanto me restar memória do meu prezado Tibúrcio, que está no céu. Propostas tive decerto, e mais de uma, e não há muitos meses, mas uma viúva de quarenta anos não deve casar (ela tinha cinquenta e oito). De que me serviria agora unir os meus dias a um mancebo! Cedo envelheceria e ele aí ficava na força da idade a pagar com desprezos o amor que eu lhe tivesse...

O Dr. Alves lembrava-se apenas deste resumo do discurso que lhe fizera D. Mariana, o qual não durou menos de dezoito minutos. A razão era clara; todo ele era agora Eulália; amava a moça em segredo, e nunca chegara a declarar-se por ver que ela se mostrava fria com ele. Seu propósito era, apenas acabasse o processo, não frequentar mais a casa; imagina-se facilmente o alvoroço com que ele ouviu a proposta de D. Mariana no momento em que todas as suas mal nascidas esperanças haviam morrido em botão.

Dois dias depois, a boa velha deu parte ao Dr. Alves de que Eulália estava disposta a casar com ele.

- Não te direi - disse Alves, concluindo a história que acabo de resumir, e que ele contou ao amigo, à mesa da casa do Carceller -, não te direi que Eulália se mostrasse loucamente apaixonada por mim. Não havia sequer paixão. Havia porém boa vontade; o meu amor fez o resto; casamo-nos, e hoje creio que sou feliz. Minha sogra morreu alguns meses depois, e, como boa alma que era, agradeceu-me o ter dado à filha a felicidade de que ela era digna, e pediu-me que fosse sempre esposo exemplar.

Ouviu Moreira toda esta história com a natural curiosidade que inspiram os acontecimentos da vida de um amigo com quem a gente se encontra no fim de onze anos. Não teve de referir nenhuma história de casamento; mas falou de amores fortuitos, de que fora herói durante a sua viagem na Europa.

Não quer isto dizer que não tivesse também a sua página séria no livro da vida. Uma teve, mas anterior à viagem.

- Qual? - perguntou Alves.

- Cousas que lá vão.

- Não me contaste nada desse tempo...

- Não pude contar; tinha então a dor no coração. Foi essa página, séria e triste, a causa da minha saída do Brasil.

- Ah!

Um silêncio.

- Mas que foi?

- Que seria? Amores.

- Amores, tu!

- Pois então? - disse Moreira, alguma vez me havia de chegar. Gostava de uma moça, quase uma menina, 17 anos incompletos.

- E ela?

- Morria por mim. Minha intenção era casar-me; assim o disse a meu tio e a minha mãe. Opuseram-se ambos, pela razão de que me destinavam a uma prima. Insisti; resistiram ambos; até que, para ver-me livre da situação em que me achava, entendi que era melhor abrir as asas e correr mundo.

- Aposto eu que, ao pisar terras de Europa, nunca mais te lembraste dela?

- Oh! Não! Ainda me lembrei uns quinze dias; depois vieram acontecimentos estranhos e de todo a esqueci... De todo, repara bem, porque se perguntares o nome dela, não sei se te possa dizer.

- Sempre o mesmo!

- Não; muito outro; acho-me de todo mudado.

A conversa continuou por este teor até muito mais tarde do que os dois amigos imaginavam ali ficar. Foram desenterrados muitos episódios do passado, tanto por um como por outro, e ambos tinham muita cousa que dizer. Afinal separaram-se, não sem custo, porque Alves queria a todo transe que Moreira fosse jantar com ele e Moreira igualmente tinha vontade disso. Havia, porém, uma circunstância: o tio de Moreira, o comendador Pinto, esperava-o em casa. Foram obrigados a separarem-se.

- Mas irás ver-me hoje de noite?

- Talvez.

- Em todo caso, jantas amanhã comigo?

- Sim.

- Até logo.

- Até logo.

II

Alves foi para casa sinceramente alegre por ter encontrado um amigo de tantos anos. Moreira sentiu o mesmo durante dez ou doze minutos, porque, ao cabo desse tempo, indo já a entrar a um tilbury, bateu com a mão na cabeça e exclamou:

- Eulália! Mas parece que ela era também Eulália! A descrição da mãe, a tristeza da moça... Será a mesma?

O cocheiro, ouvindo este monólogo do freguês, que apenas tinha um pé no estribo e outro no chão, entendeu que tratava com um alienado; e ia já tocar o cavalo, quando Moreira entrou de todo no carro e sentou-se na almofada, dizendo:

- Aterrado!

O cocheiro tinha razões para não conduzir malucos; quis murmurar uma desculpa, mas não teve ânimo; o receio de irritar o freguês tapou-lhe a boca. Lançou-lhe um olhar de esguelha e chicoteou o animal.

Moreira ficava todo entregue a uma nova ordem de ideias. Teve prazer em ver o amigo; mas a ideia de ir ver de novo a antiga namorada foi para ele prazer maior. Acrescentarei até que mil planos formulou ele na fantasia, cada qual mais atrevido e menos fiel à amizade. Quando deu acordo de si estava no fim do Aterrado, e ele morava nas imediações do Gás; teve de retroceder; entrou em casa, jantou com o tio, e pois que está fazendo a digestão, deixemo-lo em paz durante algumas linhas.

Alves foi para casa, onde a mulher já o esperava havia muito para jantar. No meio do jantar entendeu Alves que devia explicar à mulher a causa da demora, e falou de um amigo que não via há onze anos, e que chegara da Europa no último paquete.

- Quis que ele viesse jantar conosco - disse Alves -, mas não pôde; afirmou-me, porém, que virá amanhã, e que hoje de noite talvez nos visite.

Eulália ouviu todas estas explicações do marido com algum sobressalto; mas qual não foi o sobressalto quando ele disse:

- Hás de gostar muito do Moreira!

Moreira! Onze anos! Europa! Estas três expressões dizem ao leitor que a moça era efetivamente a namorada do nosso viajante, pois se o não fosse não se sobressaltaria. Quis todavia saber o nome todo do amigo de Alves, e quando o ouviu, se alguma dúvida tivera, nenhuma lhe ficou.

Seria ela bonita aos 17 anos? É provável; aos 28, que agora tinha, era extremamente formosa. Tinha-se desenvolvido toda a mulher. A sua beleza era dessas que muito ganham com a severidade do gesto, e Eulália era quase sempre severa, ou melhor, triste, metida consigo. Fora sempre dócil para com o marido, meiga às vezes, mas nunca se mostrou apaixonada nem alegre.

Alves não reparou na impressão que causaram na mulher as suas notícias a respeito de Moreira. Continuou a falar dele com o mesmo entusiasmo e volubilidade. Nada lhe disse, todavia, acerca da paixão; foi ela que encaminhou a conversa por esse lado.

- Mas por que motivo esteve ele tanto tempo fora? - perguntou.

- Naturalmente porque se deu bem - respondeu Alves partindo uma pera e acompanhando com os olhos o movimento da faca, e portanto sem ver a expressão de ansiosa curiosidade da mulher.

Houve um silêncio.

- A cousa que o levou é que foi curiosa - disse repentinamente ele.

- Que foi?

- Uma paixão.

- Ah!

- Mas paixão que acabou logo, ao que parece - disse Alves.

- Fraca devia ser.

- Cousas da mocidade.

Eulália não fez nenhuma outra observação. Alves não deu fé da impressão que as suas palavras haviam causado na mulher. A tarde passou-se sem novidade; de noite apareceu Moreira, conforme havia prometido.

Não é preciso dizer ao leitor que, apesar dos onze anos passados e da mudança que parecia ter-se operado no espírito de Moreira, alguma cousa devia ele sentir ao transpor a soleira da porta do advogado. Não era amor, era antes curiosidade. A curiosidade porém não foi tão prontamente satisfeita como ele quisera, porque Eulália não apareceu na sala. Durante meia hora a conversa entre os dois amigos foi a mais aborrecida do mundo, não por culpa do advogado, que fazia largamente as despesas dela, mas por causa de Moreira, que apenas contribuía com monossílabos.

Enfim apareceu Eulália.

Se nenhum deles estivesse prevenido, é provável que se desse algum desses lances de teatro que são o sinal de inesperadas catástrofes; ambos eles porém estavam prevenidos; o encontro não produziu nenhuma exclamação.

O que houve, sim, foi uma grande impressão em ambos, maior nela que nele, ou antes diferente, porque em Eulália falou principalmente a lembrança do passado, em Moreira falou a admiração do presente. A gentil menina que ele deixara aparecia-lhe agora formosa e imponente mulher.

Esta impressão dominou tudo mais. Isto, e certo interesse que tinha o ex-namorado de se mostrar acabrunhado, fez com que o Moreira da noite não parecesse o mesmo da manhã. Alves notou essa diferença e atribuiu-a ao natural acanhamento a que o obrigava a presença da mulher.

Nem por isso deixou Moreira de contar alguns episódios (imaginários) da sua viagem pela Europa, os quais tendiam todos não só a dar a melhor ideia dos seus costumes, mas também a mostrar à moça que a imagem dela o acompanhou a toda a parte.

Alves notou essa diferença de estilo e de história; mas ainda aqui era ela natural. Poderia ele contar em presença de sua esposa as aventuras de que lhe falou no café de manhã?

Evidentemente não.

- Patife! - murmurou-lhe uma vez ao ouvido em ocasião em que Eulália se levantara; - quem te ouvir pensará que és um santarrão.

E nunca melhor nome assentou num homem do que o que lhe dera o advogado. Moreira era verdadeiramente um patife, um gentil patife se querem; mas em todo caso patife. Em tão pouco tempo mostrou ele aos olhos do leitor que nem amara a moça como parecera, nem era amigo do seu amigo. Patife embora, ou por isso mesmo, aceitou Moreira uma xícara de chá, e prometeu ir lá jantar no dia seguinte.

No dia seguinte foi tão alvoroçado, mais alvoroçado do que na véspera. A razão era que lhe pareceu não estar de todo extinto no coração da moça o fogo que ele lhe acendera outrora. A leitora curiosa deseja naturalmente saber se Moreira se enganava. Não lhe sei dizer senão que nesse dia Eulália não apareceu absolutamente ao ex-namorado; pretextou uma dor de cabeça e meteu-se na cama.

O jantar, já se vê que não foi tão alegre como os dois amigos esperavam que fosse. Não o foi o jantar; mas foi-o com certeza a sobremesa. Encetavam a sobremesa quando Eulália apareceu na sala de jantar, com grande espanto de um e de outro, e ainda mais alegria que espanto. Moreira entendeu que alguma faísca, adormecida na cinza, de novo se ateara no coração da moça.

Seria assim?

Naquele dia era temerário julgá-lo; mas quinze dias depois estaria na verdade quem dissesse que os onze anos de ausência não haviam de todo vencido o primeiro amor de Eulália. Leu-lho o namorado nos olhos e muito antes havia-o ela lido no seu próprio coração.

A luta não podia ser mais cruel para uma moça honesta como ela, assaz discreta para ver que o esposo a amava como no primeiro dia e que antes de tudo estavam os seus deveres. Longos e cruéis foram os padecimentos íntimos de Eulália. Ninguém os suspeitou contudo; porque o seu ar de costume não era alegre, e ela esforçava-se por mostrar boa cara a todos, e guardava-se para sofrer na solidão.

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