Conto

O Programa

1882
Este conto foi originalmente publicado em A Estação, em dezembro de 1882 e em janeiro e fevereiro de 1883. O texto desta edição foi cotejado com a publicação original.

Também eu nasci na Arcádia.
Schiller

Capítulo primeiro

Lição de mestre-escola

- Rapazes, também eu fui rapaz - disse o mestre, o Pitada, um velho mestre de meninos da Gamboa, no ano de 1850 -; fui rapaz, mas rapaz de muito juízo, muito juízo... Entenderam?

- Sim, senhor.

- Não entrei no mundo como um desmiolado, dando por paus e por pedras, mas com um programa na mão... Sabem o que é um programa?

- Não, senhor.

- Programa é o rol das cousas que se hão de fazer em certa ocasião; por exemplo, nos espetáculos, é a lista do drama, do entremez, do bailado, se há bailado, um passo a dous, ou cousa assim... É isso que se chama programa. Pois eu entrei no mundo com um programa na mão; não entrei assim à toa, como um preto fugido, ou pedreiro sem obra, que não sabe aonde vai. Meu propósito era ser mestre de meninos, ensinar alguma cousa pouca do que soubesse, dar a primeira forma ao espírito do cidadão... Dar a primeira forma (entenderam?), dar a primeira forma ao espírito do cidadão...

Calou-se o mestre alguns minutos, repetindo consigo essa última frase, que lhe pareceu engenhosa e galante. Os meninos que o escutavam (eram cinco e dos mais velhos, dez e onze anos) não ousavam mexer com o corpo nem ainda com os olhos; esperavam o resto. O mestre, enquanto virava e revirava a frase, respirando com estrépito, ia dando ao peito da camisa umas ondulações que, em falta de outra distração, recreavam interiormente os discípulos. Um destes, o mais travesso, chegou ao desvario de imitar a respiração grossa do mestre, com grande susto dos outros, pois uma das máximas da escola era que, no caso de se não descobrir o autor de um delito, fossem todos castigados; com este sistema, dizia o mestre, anima-se a delação, que deve ser sempre uma das mais sólidas bases do Estado bem constituído. Felizmente, ele nada viu, nem o gesto do temerário, um pirralho de dez anos, que não entendia nada do que ele estava dizendo, nem o beliscão de outro pequeno, o mais velho da roda, um certo Romualdo, que contava onze anos e três dias; o beliscão, note-se, era uma advertência para chamá-lo à circunspecção.

- Ora, que fiz eu para vir a esta profissão? - continuou o Pitada -. Fiz isto: desde os meus quinze ou dezesseis anos, organizei o programa da vida: estudos, relações, viagens, casamento, escola; todas as fases da minha vida foram assim previstas, descritas e formuladas com antecedência...

Daqui em diante, o mestre continuou a exprimir-se em tal estilo, que os meninos deixaram de entendê-lo. Ocupado em escutar-se, não deu pelo ar estúpido dos discípulos, e só parou quando o relógio bateu meio-dia. Era tempo de mandar embora esse resto da escola, que tinha de jantar para voltar às duas horas. Os meninos saíram pulando, alegres, esquecidos até da fome que os devorava, pela idéia de ficar livres de um discurso que podia ir muito mais longe. Com efeito, o mestre fazia isso algumas vezes; retinha os discípulos mais velhos para ingerir-lhes uma reflexão moral ou uma narrativa ligeira e sã. Em certas ocasiões, só dava por si muito depois da hora do jantar. Desta vez não a excedera, e ainda bem.

II

De como Romualdo engendrou um programa

A idéia do programa fixou-se no espírito do Romualdo. Três ou quatro anos depois, repetia ele as próprias palavras do mestre; aos dezessete, ajuntava-lhes alguns reparos e observações. Tinha para si que era a melhor lição que se podia dar aos rapazes, muito mais útil do que o latim que lhe ensinavam então.

Uma circunstância local incitou o jovem Romualdo a formular também o seu programa, resoluto a cumpri-lo: refiro-me à residência de um ministro, na mesma rua. A vista do ministro, das ordenanças, do coupé, da farda, acordou no Romualdo uma ambição. Por que não seria ele ministro? Outra circunstância. Morava defronte uma família abastada, em cuja casa eram frequentes os bailes e recepções. De cada vez que o Romualdo assistia, de fora, a uma dessas festas solenes, à chegada dos carros, à descida das damas, ricamente vestidas, com brilhantes no colo e nas orelhas, algumas no toucado, dando o braço a homens encasacados e aprumados, subindo depois a escadaria, onde o tapete amortecia o rumor dos pés, até irem para as salas alumiadas, com os seus grandes lustres de cristal, que ele via de fora, como via os espelhos, os pares que iam de um a outro lado, etc.; de cada vez que um tal espetáculo lhe namorava os olhos, Romualdo sentia em si a massa de um anfitrião, como esse que dava o baile, ou do marido de algumas daquelas damas titulares. Por que não seria uma cousa ou outra?

As novelas não serviam menos a incutir no ânimo do Romualdo tão excelsas esperanças. Ele aprendia nelas a retórica do amor, a alma sublime das cousas, desde o beijo materno até o último graveto do mato, que eram para ele, irmãmente, a mesma produção divina da natureza. Além das novelas, havia os olhos das rapariguinhas da mesma idade, que eram todos bonitos, e, cousa singular, da mesma cor, como se fossem um convite para o mesmo banquete, escrito com a mesma tinta. Outra cousa que também influiu muito na ambição do Romualdo foi o sol, que ele imaginava ter sido criado unicamente com o fim de o alumiar, não alumiando aos outros homens, senão porque era impossível deixar de fazê-lo, como acontece a uma banda musical que, tocando por obséquio a uma porta, é ouvida em todo o quarteirão.

Temos, pois, que os esplendores sociais, as imaginações literárias, e, finalmente, a própria natureza persuadiram ao jovem Romualdo a cumprir a lição do mestre. Um programa! Como é possível atravessar a vida, uma longa vida, sem programa? Viaja-se mal sem itinerário; o imprevisto tem cousas boas que não compensam as más; o itinerário, reduzindo as vantagens do casual e do desconhecido, diminui os seus inconvenientes, que são em maior número e insuportáveis. Era o que sentia Romualdo aos dezoito anos, não por essa forma precisa, mas outra, que não se traduz bem senão assim. Os antigos, que ele começava a ver através das lunetas de Plutarco, pareciam-lhe não ter começado a vida sem programa. Outra indução que tirava de Plutarco é que todos os homens de outrora foram nada menos do que aqueles mesmos heróis biografados. Obscuros, se os houve, não passaram de uma ridícula minoria.

- Vá um programa - disse ele -; obedeçamos ao conselho do mestre.

E formulou um programa. Estava então entre dezoito e dezenove anos. Era um guapo rapaz, ardente, resoluto, filho de pais modestíssimos, mas cheio de alma e ambição. O programa foi escrito no coração, o melhor papel, e com a vontade, a melhor das penas: era uma página arrancada ao livro do destino. O destino é obra do homem. Napoleão fez com a espada uma coroa, dez coroas. Ele, Romualdo, não só seria esposo de alguma daquelas formosas damas, que vira subir para os bailes, mas possuiria também o carro que costumava trazê-las. Literatura, ciência, política, nenhum desses ramos deixou de ter uma linha especial. Romualdo sentia-se bastante apto para uma multidão de funções e aplicações, e achava mesquinho concentrar-se numa cousa particular. Era muito governar os homens ou escrever Hamlet; mas por que não reuniria a alma dele ambas as glórias, por que não seria um Pitt e um Shakespeare, obedecido e admirado? Romualdo ideava por outras palavras a mesma cousa. Com o olhar fito no ar, e uma certa ruga na testa, antevia todas essas vitórias, desde a primeira décima poética até o carro do ministro de Estado. Era belo, forte, moço, resoluto, apto, ambicioso, e vinha dizer ao mundo, com a energia moral dos que são fortes: lugar para mim! Lugar para mim, e dos melhores!

III

Agora tu, Calíope, me ensina...

Não se pode saber com certeza - com a certeza necessária a uma afirmação que tem de correr mundo - se a primeira estrofe do Romualdo foi anterior ao primeiro amor, ou se este precedeu a poesia. Suponhamos que foram contemporâneos. Não é inverossímil, porque se a primeira paixão foi uma pessoa vulgar e sem graça, a primeira composição poética era um lugar-comum.

Em 1858, data da estreia literária, existia ainda uma folha, que veio a morrer antes de 1870, o Correio Mercantil. Foi por aí que o nosso Romualdo declarou ao mundo que o século era enorme, que as barreiras todas estavam por terra, que, enfim, era preciso dar ao homem a coroa imortal que lhe competia. Eram trinta ou quarenta versos, feitos com ímpeto, broslados de adjetivos e imprecações, muitos sóis, basto condor, inúmeras cousas robustas e esplêndidas. Romualdo dormiu mal a noite; apesar disso, acordou cedo, vestiu-se, saiu; foi comprar o Correio Mercantil. Leu a poesia à porta mesmo da tipografia, à rua da Quitanda; depois dobrou cautelosamente o jornal, e foi tomar café. No trajeto da tipografia ao botequim não fez mais do que recitar mentalmente os versos; só assim se explicam dous ou três encontrões que deu em outras pessoas. Em todo caso, no botequim, uma vez sentado, desdobrou a folha e releu os versos, lentamente, umas quatro vezes seguidas; com uma que leu depois de pagar a xícara de café, e a que já lera à porta da tipografia, foram nada menos de seis leituras, no curto espaço de meia hora; fato tanto mais de espantar quanto que ele tinha a poesia de cor. Mas o espanto desaparece desde que se adverte na diferença que vai do manuscrito ou decorado ao impresso. Romualdo lera, é certo, a poesia manuscrita; e, à força de a ler, tinha-a "impressa na alma", para falar a linguagem dele mesmo. Mas o manuscrito é vago, derramado; e o decorado assemelha-se a histórias velhas, sem data, nem autor, ouvidas em criança; não há por onde se lhe pegue, nem mesmo a túnica flutuante e cambiante do manuscrito. Tudo muda com o impresso. O impresso fixa. Aos olhos de Romualdo era como um edifício levantado para desafiar os tempos; a igualdade das letras, a reprodução dos mesmos contornos davam aos versos um aspecto definitivo e acabado. Ele mesmo descobriu-lhes belezas não premeditadas; em compensação, deu com uma vírgula mal posta, que o desconsolou.

No fim daquele ano tinha o Romualdo escrito e publicado algumas vinte composições diversas sobre os mais variados assuntos. Congregou alguns amigos - da mesma idade -, persuadiu a um tipógrafo, distribuiu listas de assinaturas, recolheu algumas, e fundou um periódico literário, o Mosaico, em que fez as suas primeiras armas da prosa. A idéia secreta do Romualdo era criar alguma cousa semelhante à Revista dos Dous Mundos, que ele via em casa do advogado de quem era amanuense. Não lia nunca a Revista, mas ouvira dizer que era uma das mais importantes da Europa, e entendeu fazer cousa igual na América.

Posto que esse brilhante sonho fenecesse com o mês de maio de 1859, não acabaram com ele as labutações literárias O mesmo ano de 1859 viu o primeiro tomo das Verdades e quimeras. Digo o primeiro tomo, porque tais eram a indicação tipográfica, e o plano do Romualdo. Que é a poesia, dizia ele, senão uma mistura de quimera e verdade? O Goethe chamando às suas memórias Verdade e poesia, cometeu um pleonasmo ridículo: o segundo vocábulo bastava a exprimir os dous sentidos do autor. Portanto, quaisquer que tivessem de ser as fases do seu espírito, era certo que a poesia traria em todos os tempos os mesmos caracteres essenciais: logo podia intitular Verdades e quimeras as futuras obras poéticas. Daí a indicação de primeiro tomo dada ao volume de versos com que o Romualdo brindou as letras no mês de dezembro de 1859. Esse mês foi para ele ainda mais brilhante e delicioso que o da estréia no Correio Mercantil.

- Sou autor impresso - dizia rindo, quando recebeu os primeiros exemplares da obra.

E abria um e outro, folheava de diante para trás e de trás para diante, corria os olhos pelo índice, lia três, quatro vezes o prólogo, etc. Verdades e quimeras! Via esse título nos periódicos, nos catálogos, nas citações, nos florilégios de poesia nacional; enfim, clássico. Via citados também os outros tomos, com a designação numérica de cada um, em caracteres romanos, t. II, t. III, t. IV, t. IX. Que podiam escrever um dia as folhas públicas senão um estribilho? "Cada ano que passa pode-se dizer que este distinto e infatigável poeta nos dá um volume das suas admiráveis Verdades e quimeras; foi em 1859 que encetou essa coleção, e o efeito não podia ser mais lisonjeiro para um estreante, que etc., etc."

Lisonjeiro, na verdade. Toda a imprensa saudou com benevolência o primeiro livro de Romualdo; dous amigos disseram mesmo que ele era o Gonzaga do Romantismo. Em suma, um sucesso.

IV

Quinze anos, bonita e rica

A "pessoa vulgar e sem graça" que foi o primeiro amor de Romualdo passou naturalmente como a chama de um fósforo. O segundo amor veio no tempo em que ele se preparava para ir estudar em São Paulo, e não pôde ir adiante.

Tinha preparatórios, o Romualdo; e, havendo adquirido com o advogado certo gosto ao ofício, entendeu que sempre era tempo de ganhar um diploma. Foi para São Paulo, entregou-se aos estudos com afinco, dizendo consigo e a ninguém mais que ele seria citado algum dia entre os Nabucos, os Zacarias, os Teixeiras de Freitas, etc. Jurisconsulto! E soletrava esta palavra com amor, com paciência, com delícia, achando-lhe a expressão profunda e larga. Jurisconsulto! Os Zacarias, os Nabucos, os Romualdos! E estudava, metia-se pelo direito dentro, impetuoso.

Não esqueçamos duas cousas: que ele era rapaz, e tinha a vocação das letras. Rapaz, amou algumas moças, páginas acadêmicas, machucadas de mãos estudiosas. Durante os dous primeiros anos nada há que apurar que mereça a pena e a honra de uma transcrição. No terceiro ano... O terceiro ano oferece-nos uma lauda primorosa. Era uma moça de quinze anos, filha de um fazendeiro de Guaratinguetá, que tinha ido à capital da província. Romualdo, de escassa bolsa, trabalhando muito para ganhar o diploma, compreendeu que o casamento era uma solução. O fazendeiro era rico. A moça gostava dele: era o primeiro amor dos seus quinze anos.

"Há de ser minha!", jurou Romualdo a si mesmo.

As relações entre eles vieram por um sobrinho do fazendeiro, Josino M..., colega de ano do Romualdo, e, como ele, cultor das letras. O fazendeiro retirou-se para Guaratinguetá; era obsequiador, exigiu do Romualdo a promessa de que, nas férias, iria vê-lo. O estudante prometeu que sim; e nunca o tempo lhe correu mais devagar. Não eram dias, eram séculos. O que lhe valia é que, ao menos, davam para construir e reconstruir os seus admiráveis planos de vida. A escolha entre o casar imediatamente ou depois de formado não foi cousa que se fizesse do pé para a mão: comeu-lhe algumas boas semanas. Afinal, assentou que era melhor o casamento imediato. Outra questão que lhe tomou tempo foi a de saber se concluiria os estudos no Brasil ou na Europa. O patriotismo venceu; ficaria no Brasil. Mas, uma vez formado, seguiria para Europa, onde estaria dous anos, observando de perto as cousas políticas e sociais, adquirindo a experiência necessária a quem viria ser ministro de Estado. Eis o que por esse tempo escreveu a um amigo do Rio de Janeiro:

... Prepara-te, pois, meu bom Fernandes, para irmos daqui a algum tempo viajar; não te dispenso, nem aceito desculpa. Não nos faltarão meios, graças a Deus, e meios de viajar à larga... Que felicidade! Eu, Lucinda, o bom Fernandes...

Bentas férias! Ei-las que chegam; ei-las que tomam do Romualdo e do Josino, e os levam à fazenda da namorada. Agora não os solto mais, disse o fazendeiro.

Lucinda apareceu aos olhos do nosso herói com todos os esplendores de uma madrugada. Foi assim que ele definiu esse momento, em uns versos publicados daí a dias no Eco de Guaratinguetá. Ela era bela, na verdade, viva e graciosa, rosada e fresca, todas as qualidades amáveis de uma menina. A comparação da madrugada, por mais cediça que fosse, era a melhor de todas.

Se as férias gastaram tempo em chegar, uma vez chegadas, voaram depressa. Tinham asas os dias, asas de pluma angélica, das quais, se alguma cousa lhe ficou ao nosso Romualdo, não passou de ser um certo aroma delicioso e fresco. Lucinda, em casa, pareceu-lhe ainda mais bela do que a vira na capital da província. E note-se que a boa impressão que ele lhe fizera a princípio cresceu também, e extraordinariamente, depois da convivência de algumas semanas. Em resumo, e para poupar estilo, os dous amavam-se. Os olhos de ambos, incapazes de guardar o segredo dos respectivos corações, contaram tudo uns aos outros, e com tal estrépito, que os olhos de um terceiro ouviram também. Esse terceiro foi o primo de Lucinda, o colega de ano de Romualdo.

- Vou dar-te uma notícia agradável - disse o Josino ao Romualdo, uma noite, no quarto em que dormiam -. Adivinha o que é.

- Não posso.

- Vamos ter um casamento daqui a meses...

- Quem?

- O juiz municipal.

- Com quem casa?

- Com a prima Lucinda.

Romualdo deu um salto, pálido, fremente; depois conteve-se, e começou a disfarçar. Josino, que trazia o plano de cor, confiou ao colega um romance em que o juiz municipal fazia o menos judiciário dos papéis, e a prima aparecia como a mais louca das namoradas. Concluiu dizendo que a demora do casamento era porque o tio, profundo católico, mandara pedir ao papa a fineza de vir casar a filha em Guaratinguetá. O papa chegaria em maio ou junho. Romualdo, entre pasmado e incrédulo, não tirava os olhos do colega; este soltou, enfim, uma risada. Romualdo compreendeu tudo e contou-lhe tudo.

Cinco dias depois, veio ele à Corte, lacerado de saudades e coroado de esperanças. Na Corte, começou a escrever um livro, que era nada menos que o próprio caso de Guaratinguetá: um poeta de grande talento, futuro ministro, futuro homem de Estado, coração puro, caráter elevado e nobre, que amava uma moça de quinze anos, um anjo, bela como a aurora, santa como a Virgem, alma digna de emparelhar com a dele, filha de um fazendeiro, etc. Era só pôr os pontos nos is. Este romance, à medida que ele o ia escrevendo, lia-o ao amigo Fernandes, o mesmo a quem confiara o projeto do casamento e da viagem à Europa, como se viu daquele trecho de uma carta. "Não nos faltarão meios, graças a Deus, e meios de viajar à larga... Que felicidade! Eu, Lucinda, o bom Fernandes..." Era esse.

- Então, pronto? Palavra? Vais conosco? - dizia-lhe na Corte o Romualdo.

- Pronto.

- Pois é cousa feita. Este ano, em chegando as férias, vou a Guaratinguetá, e peço-a... Eu podia pedi-la antes, mas não me convém. Então é que hás de pôr o caiporismo na rua...

- Ele volta depois - suspirava o Fernandes.

- Não volta; digo-te que não volta; fecho-lhe a porta com chave de ouro.

E toca a escrever o livro, a contar a união das duas almas, perante Deus e os homens, com muito luar claro e transparente, muita citação poética, algumas em latim. O romance foi acabado em São Paulo, e mandado para o Eco de Guaratinguetá, que começou logo a publicá-lo, recordando que o autor era o mesmo dos versos dados por ele no ano anterior.

Romualdo consolou-se do vagar dos meses, da tirania dos professores e do fastio dos livros, carteando-se com o Fernandes e falando ao Josino, só e unicamente a respeito da gentil paulista. Josino contou-lhe muita reminiscência caseira, episódios da infância de Lucinda, que o Romualdo escutava cheio de um sentimento religioso, mesclado de um certo desvanecimento de marido. E tudo era mandado depois ao Fernandes, em cartas que não acabavam mais, de cinco em cinco dias, pela mala daquele tempo. Eis o que dizia a última das cartas, escrita ao entrar das férias:

Vou agora a Guaratinguetá. Conto pedi-la daqui a pouco; e, em breve, estarei casado na Corte; e daqui a algum tempo mar em fora. Prepara as malas, patife; anda, tratante, prepara as malas. Velhaco! É com o fim de viajar que me animaste no namoro? Pois agora aguenta-te...

E três laudas mais dessas ironias graciosas, meigas indignações de amigo, que o outro leu, e a que respondeu com estas palavras: "Pronto para o que der e vier!"

Não, não ficou pronto para o que desse e viesse; não ficou pronto, por exemplo, para a cara triste, abatida, com que dous meses depois lhe entrou em casa, à rua da Misericórdia, o nosso Romualdo. Nem para a cara triste, nem para o gesto indignado com que atirou o chapéu ao chão. Lucinda traíra-o! Lucinda amava o promotor! E contou-lhe como o promotor, mancebo de vinte e seis anos, nomeado poucos meses antes, tratara logo de cortejar a moça, e tão tenazmente que ela em pouco tempo estava caída.

- E tu?

- Que havia de fazer?

- Teimar, lutar, vencer.

- Pensas que não? Teimei; fiz o que era possível, mas... Ah! Se tu soubesses que as mulheres... Quinze anos! Dezesseis anos, quando muito! Pérfida desde o berço... Teimei... Pois não havia de teimar? E tinha por mim o Josino, que lhe disse as últimas. Mas que queres? O tal promotor das dúzias... Enfim, vão casar.

- Casar?

- Casar, sim! - berrou o Romualdo, irritado.

E roía as unhas, calado ou dando umas risadinhas concentradas, de raiva; depois, passava a mão pelos cabelos, dava socos, deitava-se na rede, a fumar cinco, dez, quinze cigarros...

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A-