Conto

O Imortal

1882

O conto "O imortal" foi originalmente publicado em A Estação, em julho, agosto e setembro de 1882. É uma versão diferente do conto "Rui de Leão", publicado no Jornal das Famílias dez anos antes, que se inclui neste portal em "Contos avulsos - fase 2". Aqui, quem assina é Machado de Assis, enquanto a versão anterior era assinada por Max. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com a publicação original.

Capítulo primeiro

- Meu pai nasceu em 1600...

- Perdão, em 1800, naturalmente...

- Não, senhor - replicou o Dr. Leão, de um modo grave e triste -; foi em 1600.

Estupefação dos ouvintes, que eram dous, o coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.

- Não, senhor; nasceu em 1600.

Médico homeopata - a homeopatia começava a entrar nos domínios da nossa civilização -, este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas. Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. A gente da vila notou-lhe certa tristeza no gesto, algum retraimento nos hábitos, e até uma tal ou qual sequidão de palavras, sem embargo da perfeita cortesia; mas tudo foi atribuído ao acanho dos primeiros dias e às saudades da Corte. Contava trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava propagando o novo sistema.

Os dous ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo dono da casa, o coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso, mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600. Duzentos e cinquenta e cinco anos antes! Dous séculos e meio! Era impossível. Então, que idade tinha ele? E de que idade morreu o pai?

- Não tenho interesse em contar-lhes a vida de meu pai - respondeu o Dr. Leão -. Falaram-me no macróbio que mora nos fundos da matriz; disse-lhes que, em negócio de macróbios, conheci o que há mais espantoso no mundo, um homem imortal...

- Mas seu pai não morreu? - disse o coronel.

- Morreu.

- Logo, não era imortal - concluiu o tabelião triunfante -. Imortal se diz quando uma pessoa não morre, mas seu pai morreu.

- Querem ouvir-me?

- Homem, pode ser - observou o coronel meio abalado -. O melhor é ouvir a história. Só o que digo é que mais velho do que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de maduro. Seu pai devia estar também muito velho...?

- Tão moço como eu. Mas para que me fazem perguntas soltas? Para se espantarem cada vez mais, porque na verdade a história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-la em poucos minutos.

Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o Dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros capítulos.

II

- Meu pai nasceu em 1600, na cidade do Recife.

Aos vinte e cinco anos tomou o hábito franciscano, por vontade de minha avó, que era profundamente religiosa. Tanto ela como o marido eram pessoas de bom nascimento - "bom sangue", como dizia meu pai, afetando a linguagem antiga.

Meu avô descendia da nobreza de Espanha, e minha avó era de uma grande casa do Alentejo. Casaram-se ainda na Europa, e, anos depois, por motivos que não vêm ao caso dizer, transportaram-se ao Brasil, onde ficaram e morreram. Meu pai dizia que poucas mulheres tinha visto tão bonitas como minha avó. E olhem que ele amou as mais esplêndidas mulheres do mundo. Mas não antecipemos.

Tomou meu pai o hábito, no convento de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os holandeses, ainda uma vez, assaltaram a povoação. Os frades deixaram precipitadamente o convento; meu pai, mais remisso do que os outros (ou já com o intento de deitar o hábito às urtigas), deixou-se ficar na cela, de maneira que os holandeses o foram achar no momento em que recolhia alguns livros pios e objetos de uso pessoal. Os holandeses não o trataram mal. Ele os regalou com o melhor da ucharia franciscana, onde a pobreza é de regra. Sendo uso daqueles frades alternarem-se no serviço da cozinha, meu pai entendia da arte, e esse talento foi mais um encanto ao aparecer do inimigo.

No fim de duas semanas, o oficial holandês ofereceu-lhe um salvo-conduto, para ir aonde lhe parecesse; mas meu pai não o aceitou logo, querendo primeiro considerar se devia ficar com os holandeses, e, à sombra deles, desamparar a Ordem, ou se lhe era melhor buscar vida por si mesmo. Adotou o segundo alvitre, não só por ter o espírito aventureiro, curioso e audaz, como porque era patriota, e bom católico, apesar da repugnância à vida monástica, e não quisera misturar-se com o herege invasor. Aceitou o salvo-conduto e deixou Iguaraçu.

Não se lembrava ele, quando me contou essas cousas, não se lembrava mais do número de dias que despendeu sozinho por lugares ermos, fugindo de propósito ao povoado, não querendo ir a Olinda ou Recife, onde estavam os holandeses. Comidas as provisões que levava, ficou dependente de alguma caça silvestre e frutas. Deitara, com efeito, o hábito às urtigas; vestia uns calções flamengos, que o oficial lhe dera, e uma camisola ou jaquetão de couro. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que o recebeu muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Meu pai era talvez o mais insinuante dos homens. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente o chefe, um guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em casamento. Já então minha avó era morta, e meu avô, desterrado para a Holanda, notícias que meu pai teve, casualmente, por um antigo servo da casa. Deixou-se estar, pois, na aldeia, com o gentio, até o ano de 1642, em que o guerreiro faleceu. Este caso do falecimento é que é maravilhoso: peço-lhes a maior atenção.

O coronel e o tabelião aguçaram os ouvidos, enquanto o Dr. Leão extraía pausadamente uma pitada e inseria-a no nariz, com a pachorra de quem está negaceando uma cousa extraordinária.

III

Uma noite, o chefe indígena - chamava-se Pirajuá - foi à rede de meu pai, anunciou-lhe que tinha de morrer, pouco depois de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para acompanhá-lo fora, antes do momento último. Meu pai ficou alvoroçado, não por lhe dar crédito, mas por supô-lo delirante. Sobre a madrugada, o sogro veio ter com ele.

- Vamos - disse-lhe.

- Não, agora não: estás fraco, muito fraco...

- Vamos! - repetiu o guerreiro.

E, à luz de uma fogueira expirante, viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e um certo ar diabólico, em todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, acompanhou-o na direção de um córrego. Chegando ao córrego, seguiram pela margem esquerda, acima, durante um tempo que meu pai calculou ter sido um quarto de hora. A madrugada acentuava-se; a lua fugia diante dos primeiros anúncios do sol. Contudo, e apesar da vida do sertão que meu pai levava desde alguns tempos, a aventura assustava-o; seguia vigiando o sogro, com receio de alguma traição. Pirajuá ia calado, com os olhos no chão, e a fronte carregada de pensamentos, que podiam ser cruéis ou somente tristes. E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:

- Aqui.

Estavam diante de três pedras, dispostas em triângulo. Pirajuá sentou-se numa, meu pai noutra. Depois de alguns minutos de descanso:

- Arreda aquela pedra - disse o guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.

Meu pai levantou-se e foi à pedra. Era pesada, resistiu ao primeiro impulso; mas meu pai teimou, aplicou todas as forças, a pedra cedeu um pouco, depois mais, enfim foi removida do lugar.

- Cava o chão - disse o guerreiro.

Meu pai foi buscar uma lasca de pau, uma taquara ou não sei quê, e começou a cavar o chão. Já então estava curioso de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma idéia - algum tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, cavou, cavou, até que sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma igaçaba. Não o tirou, não chegou mesmo a arredar a terra em volta dele. O guerreiro aproximou-se, desatou o pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou um boião. Este boião tinha a boca tapada com outro pedaço de couro.

- Vem cá - disse o guerreiro.

Sentaram-se outra vez. O guerreiro tinha o boião sobre os joelhos, tapado, misterioso, aguçando a curiosidade de meu pai, que ardia por saber o que havia ali dentro.

- Pirajuá vai morrer - disse ele -; vai morrer para nunca mais. Pirajuá ama guerreiro branco, esposo de Maracujá, sua filha; e vai mostrar um segredo como não há outro.

Meu pai estava trêmulo. O guerreiro desatou lentamente o couro que tapava o boião. Destapado, olhou para dentro, levantou-se, e veio mostrá-lo a meu pai. Era um líquido amarelado, de um cheiro acre e singular.

- Quem bebe isto, um gole só, nunca mais morre.

- Oh! Bebe, bebe! - exclamou meu pai com vivacidade.

Foi um movimento de afeto, um ato irrefletido de verdadeira amizade filial, porque só um instante depois é que meu pai advertiu que não tinha, para crer na notícia que o sogro lhe dava, senão a palavra do mesmo sogro, cuja razão supunha perturbada pela moléstia. Pirajuá sentiu o espontâneo da palavra de meu pai, e agradeceu-lha; mas abanou a cabeça.

- Não - disse ele -; Pirajuá não bebe, Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, muita lua. Pirajuá quer descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este segredo a guerreiro branco; está aqui; foi feito por um velho pajé de longe, muito longe... Guerreiro branco bebe, não morre mais.

Dizendo isto, tornou a tapar a boca do boião, e foi metê-lo outra vez dentro da igaçaba. Meu pai fechou depois a boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro clarão do sol vinha apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a rede, Pirajuá faleceu.

Meu pai não acreditou na virtude do elixir. Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma exceção na lei da morte. Era naturalmente algum remédio, se não fosse algum veneno; e neste caso, a mentira do índio estava explicada pela turvação mental que meu pai lhe atribuiu. Mas, apesar de tudo, nada disse aos demais índios da aldeia, nem à própria esposa. Calou-se; nunca me revelou o motivo do silêncio; creio que não podia ser outro senão o próprio influxo do mistério.

Tempos depois, adoeceu, e tão gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do lugar anunciou a Maracujá que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em uma página de lágrimas, no rosto da consorte, e sentiu em si mesmo que estava acabado. Era forte, valoroso, capaz de encarar todos os perigos; não se aterrou, pois, com a idéia de morrer, despediu-se dos vivos, fez algumas recomendações e preparou-se para a grande viagem.

Alta noite, lembrou-se do elixir, e perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. Já agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe, dizia ele consigo, se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática? O primeiro que curou a febre maligna fez um prodígio. Tudo é incrível antes de divulgado. E, pensando assim, resolveu transportar-se ao lugar da pedra, à margem do arroio; mas não quis ir de dia, com medo de ser visto. De noite, ergueu-se, e foi, trôpego, vacilante, batendo o queixo. Chegou à pedra, arredou-a, tirou o boião, e bebeu metade do conteúdo. Depois sentou-se para descansar. Ou o descanso, ou o remédio, alentou-o logo. Ele tornou a guardar o boião; daí a meia hora estava outra vez na rede. Na seguinte manhã estava bom...

- Bom de todo? - perguntou o tabelião João Linhares, interrompendo o narrador.

- De todo.

- Era algum remédio para febre...

- Foi isto mesmo o que ele pensou, quando se viu bom. Era algum remédio para febre e outras doenças; e nisto ficou; mas, apesar do efeito da droga, não a descobriu a ninguém. Entretanto, os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse; qual era no tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, perpetuamente moço. A vida do mato começara a aborrecê-lo; ficara ali por gratidão ao sogro; as saudades da civilização vieram tomá-lo. Um dia, a aldeia foi invadida por uma horda de índios de outra, não se sabe por que motivo, nem importa ao nosso caso. Na luta pereceram muitos, meu pai foi ferido, e fugiu para o mato. No dia seguinte veio à aldeia, achou a mulher morta. As feridas eram profundas; curou-as com o emprego de remédios usuais; e restabeleceu-se dentro de poucos dias. Mas os sucessos confirmaram-no no propósito de deixar a vida semisselvagem e tornar à vida civilizada e cristã. Muitos anos se tinham passado depois da fuga do convento de Iguaraçu; ninguém mais o reconheceria. Um dia de manhã deixou a aldeia, com o pretexto de ir caçar; foi primeiro ao arroio, desviou a pedra, abriu a igaçaba, tirou o boião, onde deixara um resto do elixir. A idéia dele era fazer analisar a droga na Europa, ou mesmo em Olinda ou no Recife, ou na Bahia, por algum entendido em cousas de química e farmácia. Ao mesmo tempo não podia furtar-se a um sentimento de gratidão; devia àquele remédio a saúde. Com o boião ao lado, a mocidade nas pernas e a resolução no peito, saiu dali, caminho de Olinda e da eternidade.

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