Conto

O Caso da Viúva

1881

V

Não se faz uma declaração daquelas, em tais circunstâncias, sem grande esforço. Maria Luísa lutou primeiramente consigo, mas resolveu enfim, e, uma vez resoluta, não quis recuar um passo. O pai não percebeu o constrangimento da filha; e se não a viu jubilosa, atribuiu-o à natural gravidade do momento. Ele acreditara profundamente que ia fazer a felicidade da moça.

Naturalmente a notícia, apenas murmurada, causou assombro à prima do Rochinha, e desespero a este. O Rochinha não podia crer, ouvira dizer a duas pessoas, mas parecia-lhe falso.

- Não, impossível, impossível!

Mas logo depois lembrou-se de mil circunstâncias recentes, a frieza da moça, a falta de resposta, o desengano lento que lhe dera, e chegava a crer que efetivamente Maria Luísa ia casar com o outro. A prima dizia-lhe que não.

- Como não? - interrompeu ele -. Acho a cousa mais natural do mundo. Repare bem que ele tem muito mais do que eu, cinco ou seis vezes mais. Dizem que passa de seiscentos contos.

- Oh! - protestou a prima.

- Quê?

- Não diga isso; não calunie Maria Luísa.

O Rochinha estava desesperado e não atendeu à súplica; disse ainda algumas cousas duras, e saiu. A prima resolveu ir ter com a amiga para saber se era verdade; começava a crer que o fosse, e em tal caso já não podia fazer nada. O que não entendia era o repentino do casamento; não soube sequer do namoro.

Maria Luísa recebeu-a tranquila, a princípio, mas às interrupções e recriminações da amiga não pôde resistir por muito tempo. A dor comprimida fez explosão; e ela confessou tudo. Confessou que não gostava do Vieira, sem aliás lhe ter aversão ou antipatia; mas aceitara o casamento porque era um desejo do pai.

- Vou ter com ele - interrompeu a amiga -, vou dizer-lhe que...

- Não quero - interrompeu vivamente a filha de Toledo -; não quero que lhe diga nada.

- Mas então hás de sacrificar-te?...

- Que tem? Não é difícil o sacrifício; o meu noivo é um bom homem; creio até que pode fazer a felicidade de uma moça.

A prima do Rochinha estava impaciente, nervosa, desorientada; batia com o leque no joelho, levantava-se, sacudia a cabeça, fechava a mão; e tornava a dizer que ia ter com Toledo para contar-lhe a verdade. Mas a outra protestava sempre; e da última vez declarou-lhe peremptoriamente que seria inútil qualquer tentativa; estava disposta a casar com o Vieira, e nenhum outro.

A última palavra era clara e expressiva; mas por outro lado traiu-a, porque Maria não o pôde dizer sem visível comoção. A amiga compreendeu que o Rochinha era amado; ergueu-se e pegou-lhe nas mãos.

- Olhe, Maria Luísa, não direi nada, não farei nada. Sei que você gosta de outro, e sei quem é o outro. Por que há de fazer dous infelizes? Pense bem; não se precipite.

Maria Luísa estendeu-lhe a mão.

- Promete que refletirá? - disse-lhe a outra.

- Prometo.

- Reflita, e tudo se poderá arranjar, creio.

Saiu de lá contente, e disse tudo ao primo; contou-lhe que Maria Luísa não amava ao noivo; casava, porque lhe parecia que era agradável ao pai. Não esqueceu dizer que alcançara a promessa de Maria Luísa de que refletiria ainda sobre o caso.

- E basta que ela reflita - concluiu -, para que tudo se desfaça.

- Crê?

- Creio. Ela gosta de você; pode estar certo de que gosta e muito.

Um mês depois casavam-se Maria Luísa e Vieira.

VI

Segundo o Rochinha confessou à prima, a dor que ele padeceu com a notícia do casamento não podia ser descrita por nenhuma língua humana. E, salvo a exageração, a dor foi isso mesmo. O pobre rapaz rolou de uma montanha ao abismo, expressão velha, mas única que pode dar bem o abalo moral do Rochinha. A última conversa da prima com Maria Luísa tinha-o principalmente enchido de esperanças, que a filha de Toledo cruelmente desvaneceu. Um mês depois do casamento o Rochinha embarcava para a Europa.

A prima deste não rompeu as relações com Maria Luísa, mas as relações esfriaram um pouco; e nesse estado duraram as cousas até seis meses. Um dia encontraram-se casualmente, falaram de objetos frívolos, mas a tristeza de Maria Luísa era tamanha, que feriu a atenção da amiga.

- Estás doente? - disse esta.

- Não.

- Mas tens alguma cousa?

- Não, nada.

A amiga supôs que houvesse algum desacordo conjugal, e, porque era muito curiosa, não deixou de ir alguns dias depois à casa de Maria Luísa. Não viu desacordo nenhum, mas muita harmonia entre ambos, e extrema benevolência da parte do marido. A tristeza de Maria Luísa tinha momentos, dias, semanas, em que se manifestava de um modo intenso; depois apagava-se ou diminuía, e tudo voltava ao estado habitual.

Um dia, estando em casa da amiga, Maria Luísa ouviu ler uma carta do Rochinha, vinda nesse dia da Europa. A carta tratava de cousas graves; não era alegre nem triste. Maria Luísa empalideceu muito, e mal pôde dominar a comoção. Para distrair-se abriu um álbum de retratos; o quarto ou quinto retrato era do Rochinha; fechou apressadamente e despediu-se.

"Maria Luísa ainda gosta dele", pensou a amiga.

Pensou isto, e não era pessoa que se limitasse a pensá-lo: escreveu-o logo ao primo, acrescentando esta reflexão: "Se o Vieira fosse um homem polido, espichava a canela e você..."

O Rochinha leu a carta com grande saudade e maior satisfação; mas fraqueou logo, e achou que a notícia era naturalmente falsa ou exagerada. A prima enganava-se, decerto; tinha o intenso desejo de os ver casados, e buscava alimentar a chama para o fim de uma hipótese possível. Não era outra cousa. E foi essa a linguagem da resposta que lhe deu.

Ao cabo de um ano de ausência, voltou o Rochinha da Europa. Vinha alegre, juvenil, curado; mas, por mais que viesse curado, não pôde ver sem comoção Maria Luísa, daí a cinco dias, na rua. E a comoção foi ainda maior, quando ele reparou que a moça empalidecera muito.

"Ama-me ainda", pensou ele.

E esta ideia luziu no cérebro dele e o acendeu de muita luz e vida. A ideia de ser amado, apesar do marido, e apesar do tempo (um ano!), deu ao Rochinha uma alta ideia de si mesmo. Pareceu-lhe que, rigorosamente, o marido era ele. E (cousa singular!) falou do encontro à prima sem lhe dar notícia da comoção dele e de Maria Luísa, nem da suspeita que lhe ficara de que a paixão de Maria Luísa não morrera. A verdade é que os dous encontraram-se segunda vez e terceira, em casa da prima do Rochinha, e a quarta vez na casa do próprio Vieira. Toledo era morto. Da quarta vez à quinta vez, a distância é tão curta, que não vale a pena falar disso, senão para o fim de dizer que vieram logo atrás a sexta, a sétima e outras.

Para dizer a verdade toda, as visitas do Rochinha não foram animadas nem até desejadas por Maria Luísa, mas por ele mesmo e pelo Vieira, que desde o primeiro dia achou-o extremamente simpático. O Rochinha desfazia-se, na verdade, com o marido de Maria Luísa; tinha para ele as mais finas atenções, e desde o primeiro dia desacanhou-o, por meio de uma bonomia, que foi a porta aberta da intimidade.

Maria Luísa, ao contrário, recebeu as primeiras visitas do Rochinha com muita reserva e frieza. Achou-as até de mau gosto. Mas é difícil conservar uma opinião, quando há contra ela um sentimento forte e profundo. A assiduidade amaciou as asperezas, e acabou por avigorar a chama primitiva. Maria Luísa não tardou em sentir que a presença do Rochinha lhe era necessária, e até pela sua parte dava todas as mostras de uma paixão verdadeira, com a restrição única de que era extremamente cautelosa, e, quando preciso, dissimulada.

Maria Luísa aterrou-se logo que conheceu o estado do seu coração. Ela não amava o marido, mas estimava-o muito, e respeitava-o. O renascimento do amor antigo pareceu-lhe uma perfídia; e, desorientada, chegou a ter ideia de contar tudo a Vieira; mas retraiu-se. Tentou então outro caminho, e começou a fugir das ocasiões de ver o antigo namorado; plano que não durou muito tempo. A assiduidade do Rochinha teve interrupções, mas não cessou nunca de todo, e ao fim de mais algumas semanas, estavam as cousas como no primeiro dia.

Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração; os de Maria Luísa, por mais que esta fizesse, contaram ao Rochinha tudo, ou quase tudo o que se passava no interior da casa, a paixão e a luta com o dever. E o Rochinha alegrou-se com a denúncia, e pagou aos delatores com a moeda que mais os podia seduzir, por modo que eles daí em diante não tiveram outra cousa mais conveniente do que prosseguir na revelação começada.

Um dia, animado por um desses colóquios, o Rochinha lembrou-se de dizer a Maria Luísa que ele ia outra vez para a Europa. Era falso; não pensara sequer em semelhante cousa; mas se ela, aterrada com a ideia da separação, lhe pedisse que não partisse, o Rochinha teria grande satisfação, e não precisava de outra prova de amor. Maria Luísa, com efeito, empalideceu.

- Vou naturalmente no primeiro paquete do mês que vem - continuou ele.

Maria Luísa baixara os olhos; estava ofegante, e lutava consigo mesma. O pedido para que ele ficasse esteve quase a saltar-lhe do coração, mas não chegou nunca aos lábios. Não lhe pediu nada, deixou-se estar pálida, inquieta, a olhar para o chão, sem ousar encará-lo. Era positivo o efeito da notícia; e o Rochinha não esperou mais nada para pegar-lhe na mão. Maria Luísa estremeceu toda, e ergueu-se. Não lhe disse nada, mas afastou-se logo. Momentos depois, saía ele reflexionando deste modo:

- Faça o que quiser, ama-me. E até parece que muito. Pois...

VII

Oito dias depois, soube-se que Maria Luísa e o marido iam para Teresópolis ou Nova Friburgo. Dizia-se que era moléstia de Maria Luísa, e conselho dos médicos. Não se dizia, contudo, os nomes dos médicos; e é possível que esta circunstância não fosse necessária. A verdade é que eles partiram rapidamente, com grande mágoa e espanto do Rochinha, espanto que, aliás, não durou muito tempo. Ele pensou que a viagem era um meio de lhe fugir a ele, e concluiu que não podia haver melhor prova da intensidade da paixão de Maria Luísa.

Não é impossível que isto fosse verdade; essa foi também a opinião da amiga; essa será a opinião da leitora. O certo é que eles seguiram e por lá ficaram, enquanto o Rochinha meditava na escolha da enfermidade que o levaria também a Nova Friburgo ou Teresópolis. Andava nessa indagação, quando se recebeu na corte a notícia de que o Vieira sucumbira a uma congestão cerebral.

"Feliz Rochinha!", pensou cruelmente a prima, ao saber da morte do Vieira.

Maria Luísa desceu logo depois de enterrar o marido. Vinha sinceramente triste; mas excepcionalmente bela, graças às roupas pretas.

Parece que, chegada a narrativa a este ponto, dispensar-se-ia o auxílio do narrador, e as cousas iam por si mesmas. Mas onde ficaria o caso da viúva, que deu que falar a um bairro inteiro? A amiga perguntou-lhe um dia se queria enfim casar com o Rochinha, agora, que nada mais se opunha ao consórcio de ambos.

- Ele é que o pergunta? - disse ela.

- Quem o pergunta sou eu - disse a outra -; mas há quem ignore a paixão dele?

- Crês que me ame?

- Velhaca! Tu sabes bem que sim. Vamos lá; queres casar?

Maria Luísa deu um beijo na amiga; foi a sua resposta. A amiga, contente, enfim, de realizar a sua primitiva ideia, correu à casa do primo. Rochinha hesitou, olhou para o chão, torceu a corrente do relógio entre os dedos, abriu um livro de desenhos, arranjou um cigarro, e acabou dizendo que...

- Quê? - perguntou ansiosa a prima.

Que não, que não tinha ideia de casar.

A estupefação da prima daria outra novela. Tal foi o caso da viúva.

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