III
Há duas maneiras de pedir uma decisão, em casos amorosos: falando ou escrevendo, Jacó não usou uma cousa nem outra; foi diretamente ao pai de Raquel, e obteve-a a troco de sete anos de trabalho, ao cabo dos quais, em vez de obter a Raquel, a amada, deram-lhe Lia, a remelosa. No fim de sete anos! Não estava o nosso Rochinha disposto a esperar tanto tempo.
"Nada", disse ele consigo uma semana depois, "isto há de acabar agora, imediatamente. Se não quer não queira..."
Não lhe dêem crédito; ele falava assim, para enganar-se a si próprio, para fazer crer que deixava o namoro, como se deixa um espetáculo aborrecido. Não lhe dêem crédito. Estava então em casa, à rua dos Inválidos, olhando para a ponta da chinela turca ou marroquina, que trazia nos pés, tendo na mão um retrato de Maria Luísa. Era uma fotografia que lhe dera a prima, um mês antes. A prima pedira-a a Maria Luísa, dizendo-lhe que era para dar a uma amiga; e Maria Luísa deu-lha; apenas a apanhou consigo, disse-lhe a amiga que não era para mimosear nenhuma amiga, mas ao próprio primo, que morria por ela. Então Maria Luísa estendeu a mão para tirar-lhe o retrato, protestou, arrufou-se, tudo isso tão mal fingido, que a amiga não teve remorsos do que fez e entregou o retrato ao primo. Era o retrato que ele tinha nas mãos, à rua dos Inválidos, sentado numa extensa cadeira americana; dividia os olhos entre o retrato e as chinelas, sem poder acabar de resolver-se a alguma cousa.
- Vá - disse ele enfim -; é preciso acabar com isto.
Levantou-se, foi à secretária, tirou uma folha de papel, passou-lhe as costas da mão por cima, e molhou a pena. "Vá", repetiu; mas repetiu somente, a pena não ia. Acendeu um cigarro, e nada; foi à janela, e nada. E, contudo, amava-a e muito; mas ou por isso, ou por outro motivo, não achava que dizer no papel. Chegou a pôr diante de si o retrato de Maria Luísa; foi pior. A imagem da moça peava-lhe todos os movimentos do espírito. Não podia ele compreender este fenômeno; atirou a pena irritado, e mudou de idéia: falar-lhe-ia diretamente.
Dous dias depois foi à casa de Toledo. Achou Maria Luísa na chácara, com a tia e outra senhora; e não deixou passar a primeira ocasião que se lhe ofereceu de dizer alguma cousa. Com efeito, é certo que abriu a boca, e pode afirmar-se que a palavra - Eu - rompeu-lhe dos lábios, mas tão a medo, e tão surda, que ela não a ouviu. Ou se a ouviu, disse-lhe cousa diferente; perguntou-lhe se tinha ido ao teatro.
- Não, senhora - disse ele.
- Pois nós fomos outro dia.
- Ah!
Maria Luísa começou a contar-lhe a peça, com tanta miudeza e cuidado, que o Rochinha ficou profundamente triste. Não viu, não reparou que a voz de Maria Luísa parecia às vezes alterada, que ela não ousava fitá-lo muito tempo, e que, apesar do cuidado com que reconstituía a peça, atrapalhou-se uma ou duas vezes. Não viu nada; estava entregue à ideia fixa, ou antes ao fixo sentimento que nutria por ela, e não viu nada. A noite caiu logo e não foi melhor para ele; Maria Luísa evitava-o, ou só lhe falava de cousas fúteis.
Não se deteve o Rochinha um dia mais. Naquela mesma noite minutou a carta decisiva. Era longa, difusa, cheia de repetições, mas ardente, e verdadeiramente sentida. No dia seguinte copiou-a, mandou-a... Custa-me dizê-lo, mas força é dizê-lo; mandou-a pela prima. Esta foi, nessa mesma noite, à casa de Maria Luísa; disse-lhe em particular que trazia um segredo, um mimo, uma cousa.
- Que é? - perguntou a amiga.
- Esta bocetinha.
Deu-lhe uma bocetinha de tartaruga fechada, acrescentando que só a abrisse no quarto, ao deitar, e não falasse dela a ninguém.
- Um mistério - concluiu Maria Luísa.
Cumpriu o que prometera à outra; abriu a bocetinha, no quarto, e viu dentro um papel. Era uma carta, sem sobrescrito; suspeitou logo o que fosse, fechou o papel na boceta, pô-la de lado, e foi despir-se. Estava nervosa, inquieta. Tinha uns esquecimentos longos; destoucou-se, por exemplo, em três tempos, intervalando-os de um comprido olhar apático cravado no espelho. Numa dessas vezes sentou-se numa cadeira, e ficou à toa com os braços caídos no regaço; repentinamente ergueu-se e murmurou:
- Impossível! Acabemos com isto.
Foi acabar de despir-se, mas dessa vez de um modo febril, impaciente, como quem busca fugir de si própria. Ainda aí, ao calçar a chinelinha de marroquim, esqueceu-se e ficou um instante com os olhos no pé nu, alvo de leite, traçado de linhas azuis. Enfim preparou-se para dormir. Sobre o toucador continuava a boceta, fechada, com um certo ar de mistério e desafio. Maria Luísa não olhava para ela; ia de um para outro lado, evitando-a, naturalmente receosa de fraquear e ler.
Rezou. Tinha a um canto do quarto um pequeno oratório com uma imagem da Conceição, à qual rezou com fervor, e pode ser que lhe pedisse força para resistir à tentação de ler a carta. Acabou de rezar, e abriu uma janela. A noite estava serena, o ar, límpido, as estrelas, de uma nitidez encantadora. Maria Luísa achou na vista do céu e da noite uma força dissolvente da coragem que até então soubera ter. A vista da natureza grande e bela chamou-a à própria natureza, e o coração pulou-lhe no peito com violência singular. Então pareceu-lhe ver a figura do Rochinha, bonito, elegante, cortês, apaixonado; recordou as diferentes fases das relações, desde o baile em que dançaram juntos. Iam já longos meses desde essa noite, ela recordava-se de todas as circunstâncias da apresentação. Pensou finalmente na conversa da véspera, do ar preocupado que vira nele, da indecisão, do acanhamento, como se quisesse dizer-lhe alguma cousa, e receasse fazê-lo.
"Amar-me-á muito?", perguntou Maria Luísa a si mesma.
E esta pergunta trouxe-lhe a consideração de que, se ele a amasse muito, podia padecer igualmente muito, com a simples e formal recusa da carta. Que tinha que a lesse? Era até conveniente fazê-lo, para saber na realidade o que é que ele sentia, e que resposta daria ela à amiga. Foi dali ao toucador, onde estava a boceta, abriu-a, tirou a carta e leu-a.
Leu-a é pouco; Maria Luísa releu a carta não uma, senão três vezes. Era a primeira carta de amor que recebia, circunstância sem valor, ou de valor escasso, se fosse uma simples folha de papel escrita, sem nenhuma correspondência no coração dela. Mas como explicar que alguns minutos depois de reler a carta, Maria Luísa se deixou cair na cama, com a cabeça no travesseiro, a chorar silenciosamente? Era claro que entre o coração dela e a carta existia algum vínculo misterioso.
No dia seguinte, Maria Luísa levantou-se cedo, com os olhos murchos e tristes; disse ao pai e à tia que não pudera dormir uma parte da noite, por causa dos mosquitos. Era uma explicação; o pai e a tia aceitaram-na. Mas o pai cuidou dar-lhe um cordial, segredando ao ouvido da filha uma palavra - esta palavra:
- Creio que é hoje.
- Hoje? - repetiu ela.
- O pedido.
- Ah!
Toledo franziu a testa, ao ver que a filha empalidecera, e ficou triste. Maria Luísa compreendeu, sorriu e lançou-lhe os braços ao pescoço.
- Acho que ele escolheu mau dia - disse ela -; a insônia pôs-me doente... Que é isso? Que cara é essa?
- Tu estás mentindo, minha filha... Se não é de teu gosto, fala; estamos em tempo.
- Já lhe disse que é muito e muito do meu gosto.
- Juras?
- Que idéia! Juro.
Riu-se ainda uma vez abanando a cabeça, com um ar de repreensão, mas parece que fazia violência a si mesma, porque desde logo deixou o pai. Se a leitora imagina que Maria Luísa foi outra vez chorar, mostra que ainda a não conhece; Maria Luísa foi descansar o espírito, longe de um objeto que a mortificava; ao mesmo tempo foi cogitar na resposta que daria ao Rochinha, cuja carta não leu mais em todo aquele dia - não se sabe se para não aumentar a aflição, ou unicamente para não a decorar de todo. Uma e outra cousa eram possíveis.
IV
Naquele dia efetivamente foi à casa de Toledo um dos homens que a frequentavam desde algum tempo. Era um cearense, abastado e sério. Chamava-se Vieira, contava trinta e oito para quarenta anos. A fisionomia era comum, mas exprimia certa bondade; as maneiras, acanhadas, mas discretas. Tinha as qualidades sólidas, não as brilhantes; e, se podia fazer a felicidade de uma consorte, não era precisamente o sonho de uma moça.
Vieira fora apresentado em casa de Toledo por um amigo de ambos, e a seu pedido. Vira uma vez Maria Luísa, à saída do teatro, e deixou-se impressionar fortemente. Chegara do Norte havia dous meses, e estava prestes a voltar, mas o encontro do teatro dispô-lo a demorar-se algum tempo. Sabemos ou adivinhamos o resto. Vieira principiou a frequentar a casa de Toledo, com assiduidade, mas sem adiantar nada, já porque o natural acanhamento lho impedia, já porque Maria Luísa não dava entradas a declarações. Era a amável dona da casa, que se dividia por todos com agrado e solicitude.
Se lhes disser que Maria Luísa não percebeu nada nos olhos de Vieira, no fim de poucos dias, digo uma cousa que nenhuma das leitoras acredita, porque todas elas sabem o contrário. Percebeu-o, efetivamente; mas não ficou abalada. Talvez o animou, olhando frequentes vezes para ele, não por mal, mas para saber se ele estava olhando também, o que, em certos casos, dizia uma dama, é o caminho de um namoro cerrado. Naquele foi somente a ilusão de Vieira, que concluiu dos olhos da moça, dos sorrisos e da afabilidade uma disposição matrimonial que não existia. Convém notar que a paixão de Vieira foi a maior contribuição do erro; a paixão cegava-o. Um dia, pois, estando em casa de Toledo, pediu licença para ir lá no dia seguinte tratar de negócios importantes. Toledo disse que sim; mas Vieira não foi; adoecera.
- Que diacho pode ele querer tratar comigo? - pensou o pai de Maria Luísa.
E, encontrando o amigo comum que introduzira Vieira em sua casa, perguntou-lhe se sabia alguma cousa. O amigo sorriu.
- Que é? - insistiu Toledo.
- Não sei se posso dizer; ele lhe dirá de viva voz.
- Se é indiscrição, não teimo.
O amigo esteve algum tempo calado, sorriu outra vez, hesitou, até que lhe disse o motivo da visita, pedindo-lhe a maior reserva.
- Sou confidente do Vieira; está loucamente apaixonado.
Toledo sentiu-se alvoroçado com a revelação. Vieira merecera-lhe simpatia desde os primeiros dias do conhecimento; achava-lhe qualidades sérias e dignas. Não era criança, mas os quarenta anos ou trinta e oito que podia ter não se manifestavam por nenhum cabelo grisalho ou cansaço de fisionomia; esta, ao contrário, era fresca, os cabelos eram do mais puro castanho. E todas essas circunstâncias eram realçadas pelos bens da fortuna, vantagem que Toledo, como pai, considerava de primeira ordem. Tais foram os motivos que o levaram a falar do Vieira à filha, antes mesmo que ele lha fosse pedir. Maria Luísa não se mostrou espantada da revelação.
- Gosta de mim o Vieira? - respondeu ela ao pai -. Creio que já o sabia.
- Mas sabias que ele gosta muito?
- Muito, não.
- Pois é verdade. O pior é a figura que estou fazendo...
- Como?
- Falando de cousas sabidas, e... pode ser que ajustadas.
Maria Luísa baixou os olhos, sem dizer nada; pareceu-lhe que o pai não rejeitava a pretensão do Vieira, e temeu desenganá-lo logo dizendo-lhe que não correspondia às afeições do namorado. Esse gesto, além do inconveniente de calar a verdade, teve o de fazer supor o que não era. Toledo imaginou que era vergonha da filha, e uma espécie de confissão. E foi por isso que tomou a falar-lhe, daí a dois dias, com prazer, louvando muito as qualidades do Vieira, o bom conceito em que era tido, as vantagens do casamento. Não seria capaz de impor à filha, nem esse nem outro; mas visto que ela gostava... Maria Luísa sentiu-se fulminada. Adorava e conhecia o pai; sabia que ele não falaria de cousa que lhe não supusesse aceita, e sentiu qual era a sua persuasão. Era fácil retificá-lo; uma só palavra bastava a restituir a verdade. Mas aí entrou Maria Luísa noutra dificuldade; o pai, logo que supôs aceita à filha a candidatura do Vieira, manifestou todo o prazer que lhe daria o consórcio; e esta circunstância é que deteve a moça, e foi a origem dos sucessos posteriores.
A doença de Vieira durou perto de três semanas; Toledo visitou-o duas vezes. No fim daquele tempo, após curta convalescença, Vieira mandou pedir ao pai de Maria Luísa que lhe marcasse dia para a entrevista, que não pudera realizar por motivo da enfermidade. Toledo designou outro dia, e foi a isso que aludiu no fim do capítulo passado.
O pedido do casamento foi feito nos termos usuais, e recebido com muita benevolência pelo pai, que declarou, entretanto, nada decidido sem que fosse do agrado da filha. Maria Luísa declarou que era muito de seu agrado; e o pai respondeu isso mesmo ao pretendente.
V
Não se faz uma declaração daquelas, em tais circunstâncias, sem grande esforço. Maria Luísa lutou primeiramente consigo, mas resolveu enfim, e, uma vez resoluta, não quis recuar um passo. O pai não percebeu o constrangimento da filha; e se não a viu jubilosa, atribuiu-o à natural gravidade do momento. Ele acreditara profundamente que ia fazer a felicidade da moça.
Naturalmente a notícia, apenas murmurada, causou assombro à prima do Rochinha, e desespero a este. O Rochinha não podia crer, ouvira dizer a duas pessoas, mas parecia-lhe falso.
- Não, impossível, impossível!
Mas logo depois lembrou-se de mil circunstâncias recentes, a frieza da moça, a falta de resposta, o desengano lento que lhe dera, e chegava a crer que efetivamente Maria Luísa ia casar com o outro. A prima dizia-lhe que não.
- Como não? - interrompeu ele -. Acho a cousa mais natural do mundo. Repare bem que ele tem muito mais do que eu, cinco ou seis vezes mais. Dizem que passa de seiscentos contos.
- Oh! - protestou a prima.
- Quê?
- Não diga isso; não calunie Maria Luísa.
O Rochinha estava desesperado e não atendeu à súplica; disse ainda algumas cousas duras, e saiu. A prima resolveu ir ter com a amiga para saber se era verdade; começava a crer que o fosse, e em tal caso já não podia fazer nada. O que não entendia era o repentino do casamento; não soube sequer do namoro.
Maria Luísa recebeu-a tranquila, a princípio, mas às interrupções e recriminações da amiga não pôde resistir por muito tempo. A dor comprimida fez explosão; e ela confessou tudo. Confessou que não gostava do Vieira, sem aliás lhe ter aversão ou antipatia; mas aceitara o casamento porque era um desejo do pai.
- Vou ter com ele - interrompeu a amiga -, vou dizer-lhe que...
- Não quero - interrompeu vivamente a filha de Toledo -; não quero que lhe diga nada.
- Mas então hás de sacrificar-te?...
- Que tem? Não é difícil o sacrifício; o meu noivo é um bom homem; creio até que pode fazer a felicidade de uma moça.
A prima do Rochinha estava impaciente, nervosa, desorientada; batia com o leque no joelho, levantava-se, sacudia a cabeça, fechava a mão; e tornava a dizer que ia ter com Toledo para contar-lhe a verdade. Mas a outra protestava sempre; e da última vez declarou-lhe peremptoriamente que seria inútil qualquer tentativa; estava disposta a casar com o Vieira, e nenhum outro.
A última palavra era clara e expressiva; mas por outro lado traiu-a, porque Maria não o pôde dizer sem visível comoção. A amiga compreendeu que o Rochinha era amado; ergueu-se e pegou-lhe nas mãos.
- Olhe, Maria Luísa, não direi nada, não farei nada. Sei que você gosta de outro, e sei quem é o outro. Por que há de fazer dous infelizes? Pense bem; não se precipite.
Maria Luísa estendeu-lhe a mão.
- Promete que refletirá? - disse-lhe a outra.
- Prometo.
- Reflita, e tudo se poderá arranjar, creio.
Saiu de lá contente, e disse tudo ao primo; contou-lhe que Maria Luísa não amava ao noivo; casava, porque lhe parecia que era agradável ao pai. Não esqueceu dizer que alcançara a promessa de Maria Luísa de que refletiria ainda sobre o caso.
- E basta que ela reflita - concluiu -, para que tudo se desfaça.
- Crê?
- Creio. Ela gosta de você; pode estar certo de que gosta e muito.
Um mês depois casavam-se Maria Luísa e Vieira.
VI
Segundo o Rochinha confessou à prima, a dor que ele padeceu com a notícia do casamento não podia ser descrita por nenhuma língua humana. E, salvo a exageração, a dor foi isso mesmo. O pobre rapaz rolou de uma montanha ao abismo, expressão velha, mas única que pode dar bem o abalo moral do Rochinha. A última conversa da prima com Maria Luísa tinha-o principalmente enchido de esperanças, que a filha de Toledo cruelmente desvaneceu. Um mês depois do casamento o Rochinha embarcava para a Europa.
A prima deste não rompeu as relações com Maria Luísa, mas as relações esfriaram um pouco; e nesse estado duraram as cousas até seis meses. Um dia encontraram-se casualmente, falaram de objetos frívolos, mas a tristeza de Maria Luísa era tamanha, que feriu a atenção da amiga.
- Estás doente? - disse esta.
- Não.
- Mas tens alguma cousa?
- Não, nada.
A amiga supôs que houvesse algum desacordo conjugal, e, porque era muito curiosa, não deixou de ir alguns dias depois à casa de Maria Luísa. Não viu desacordo nenhum, mas muita harmonia entre ambos, e extrema benevolência da parte do marido. A tristeza de Maria Luísa tinha momentos, dias, semanas, em que se manifestava de um modo intenso; depois apagava-se ou diminuía, e tudo voltava ao estado habitual.
Um dia, estando em casa da amiga, Maria Luísa ouviu ler uma carta do Rochinha, vinda nesse dia da Europa. A carta tratava de cousas graves; não era alegre nem triste. Maria Luísa empalideceu muito, e mal pôde dominar a comoção. Para distrair-se abriu um álbum de retratos; o quarto ou quinto retrato era do Rochinha; fechou apressadamente e despediu-se.
"Maria Luísa ainda gosta dele", pensou a amiga.
Pensou isto, e não era pessoa que se limitasse a pensá-lo: escreveu-o logo ao primo, acrescentando esta reflexão: "Se o Vieira fosse um homem polido, espichava a canela e você..."
O Rochinha leu a carta com grande saudade e maior satisfação; mas fraqueou logo, e achou que a notícia era naturalmente falsa ou exagerada. A prima enganava-se, decerto; tinha o intenso desejo de os ver casados, e buscava alimentar a chama para o fim de uma hipótese possível. Não era outra cousa. E foi essa a linguagem da resposta que lhe deu.
Ao cabo de um ano de ausência, voltou o Rochinha da Europa. Vinha alegre, juvenil, curado; mas, por mais que viesse curado, não pôde ver sem comoção Maria Luísa, daí a cinco dias, na rua. E a comoção foi ainda maior, quando ele reparou que a moça empalidecera muito.
"Ama-me ainda", pensou ele.
E esta ideia luziu no cérebro dele e o acendeu de muita luz e vida. A ideia de ser amado, apesar do marido, e apesar do tempo (um ano!), deu ao Rochinha uma alta ideia de si mesmo. Pareceu-lhe que, rigorosamente, o marido era ele. E (cousa singular!) falou do encontro à prima sem lhe dar notícia da comoção dele e de Maria Luísa, nem da suspeita que lhe ficara de que a paixão de Maria Luísa não morrera. A verdade é que os dous encontraram-se segunda vez e terceira, em casa da prima do Rochinha, e a quarta vez na casa do próprio Vieira. Toledo era morto. Da quarta vez à quinta vez, a distância é tão curta, que não vale a pena falar disso, senão para o fim de dizer que vieram logo atrás a sexta, a sétima e outras.
Para dizer a verdade toda, as visitas do Rochinha não foram animadas nem até desejadas por Maria Luísa, mas por ele mesmo e pelo Vieira, que desde o primeiro dia achou-o extremamente simpático. O Rochinha desfazia-se, na verdade, com o marido de Maria Luísa; tinha para ele as mais finas atenções, e desde o primeiro dia desacanhou-o, por meio de uma bonomia, que foi a porta aberta da intimidade.
Maria Luísa, ao contrário, recebeu as primeiras visitas do Rochinha com muita reserva e frieza. Achou-as até de mau gosto. Mas é difícil conservar uma opinião, quando há contra ela um sentimento forte e profundo. A assiduidade amaciou as asperezas, e acabou por avigorar a chama primitiva. Maria Luísa não tardou em sentir que a presença do Rochinha lhe era necessária, e até pela sua parte dava todas as mostras de uma paixão verdadeira, com a restrição única de que era extremamente cautelosa, e, quando preciso, dissimulada.
Maria Luísa aterrou-se logo que conheceu o estado do seu coração. Ela não amava o marido, mas estimava-o muito, e respeitava-o. O renascimento do amor antigo pareceu-lhe uma perfídia; e, desorientada, chegou a ter ideia de contar tudo a Vieira; mas retraiu-se. Tentou então outro caminho, e começou a fugir das ocasiões de ver o antigo namorado; plano que não durou muito tempo. A assiduidade do Rochinha teve interrupções, mas não cessou nunca de todo, e ao fim de mais algumas semanas, estavam as cousas como no primeiro dia.
Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração; os de Maria Luísa, por mais que esta fizesse, contaram ao Rochinha tudo, ou quase tudo o que se passava no interior da casa, a paixão e a luta com o dever. E o Rochinha alegrou-se com a denúncia, e pagou aos delatores com a moeda que mais os podia seduzir, por modo que eles daí em diante não tiveram outra cousa mais conveniente do que prosseguir na revelação começada.
Um dia, animado por um desses colóquios, o Rochinha lembrou-se de dizer a Maria Luísa que ele ia outra vez para a Europa. Era falso; não pensara sequer em semelhante cousa; mas se ela, aterrada com a ideia da separação, lhe pedisse que não partisse, o Rochinha teria grande satisfação, e não precisava de outra prova de amor. Maria Luísa, com efeito, empalideceu.
- Vou naturalmente no primeiro paquete do mês que vem - continuou ele.
Maria Luísa baixara os olhos; estava ofegante, e lutava consigo mesma. O pedido para que ele ficasse esteve quase a saltar-lhe do coração, mas não chegou nunca aos lábios. Não lhe pediu nada, deixou-se estar pálida, inquieta, a olhar para o chão, sem ousar encará-lo. Era positivo o efeito da notícia; e o Rochinha não esperou mais nada para pegar-lhe na mão. Maria Luísa estremeceu toda, e ergueu-se. Não lhe disse nada, mas afastou-se logo. Momentos depois, saía ele reflexionando deste modo:
- Faça o que quiser, ama-me. E até parece que muito. Pois...