Conto

O Caso da Viúva

1881
Este conto foi originalmente publicado em A Estação em 15 e 31 de janeiro, em 15 e 28 de fevereiro e em 15 de março de 1881. O texto da presente edição foi cotejado com a publicação original.

Capítulo primeiro

Este conto deve ser lido especialmente pelas viúvas de vinte e quatro a vinte e seis anos. Não teria mais nem menos a viúva Camargo, D. Maria Luísa, quando se deu o caso que me proponho contar nestas páginas, um caso "triste e digno de memória" posto que menos sangrento que o de D. Inês. Vinte e seis anos; não teria mais, nem tanto; era ainda formosa como aos dezessete, com o acréscimo das roupas pretas que lhe davam grande realce. Era alva como leite, um pouco descolorida, olhos castanhos e preguiçosos, testa larga, e talhe direito. Confesso que essas indicações são mui gerais e vagas; mas conservo-as por isso mesmo, não querendo acentuar nada neste caso, tão verdadeiro como a vida e a morte. Direi somente que Maria Luísa nasceu com um sinalzinho cor-de-rosa, junto à boca, do lado esquerdo (única particularidade notada), e que foi esse sinal a causa de seus primeiros amores, aos dezoito anos.

- Que é que tem aquela moça ao pé da boca? - perguntava o estudante Rochinha a uma de suas primas, em certa noite de baile.

- Um sinal.

- Postiço?

- Não, de nascença.

- Feia cousa! - murmurou o Rochinha.

- Mas a dona não é feia - ponderou a prima -, é até bem bonita...

- Pode ser, mas o sinal é hediondo.

A prima, casada de fresco, olhou para o Rochinha com algum desdém, e disse-lhe que não desprezasse o sinal, porque talvez fosse ele a isca com que ela o pescasse, mais tarde ou mais cedo. O Rochinha levantou os ombros e falou de outro assunto; mas a prima era inexorável; ergueu-se, pediu-lhe o braço, levou-o até o lugar em que estava Maria Luísa, a quem o apresentou. Conversaram os três; tocou-se uma quadrilha, o Rochinha e Maria Luísa dançaram, depois conversaram alegremente.

- Que tal o sinal? - perguntou-lhe a prima, à porta da rua no fim do baile, enquanto o marido acendia um charuto e esperava a carruagem.

- Não é feio - respondeu o Rochinha -; dá-lhe até certa graça; mas daí à isca vai uma grande distância.

- A distância de uma semana - tornou a prima rindo. E sem aceitar-lhe a mão entrou na carruagem.

Ficou o Rochinha à porta, um pouco pensativo, não se sabe se pelo sinal de Maria Luísa, se pela ponta do pé da prima, que ele chegou a ver, quando ela entrou na carruagem. Também não se sabe se ele viu a ponta do pé sem querer, ou se buscou vê-la. Ambas as hipóteses são admissíveis aos dezenove anos de um rapaz acadêmico. O Rochinha estudava direito em São Paulo, e devia formar-se no ano seguinte; estava portanto nos últimos meses da liberdade escolástica; e fio que a leitora lhe perdoará qualquer intenção, se intenção houve naquela vista fugitiva. Mas, qualquer que fosse o motivo secreto, a verdade é que ele não ficou pensativo mais de dous minutos, acendeu um charuto e guiou para casa.

Esquecia-me dizer que a cena contada nos períodos anteriores passou-se na noite de 19 de janeiro de 1871, em uma casa do bairro do Andaraí. No dia seguinte, dia de São Sebastião, foi o Rochinha jantar com a prima; eram anos do marido desta. Achou lá Maria Luísa e o pai. Jantou-se, cantou-se, conversou-se, até meia noite, hora em que o Rochinha, esquecendo-se do sinalzinho da moça, achou que ela estava muito mais bonita do que lhe parecia no fim da noite passada.

- Um sinal que passa tão depressa de fealdade a beleza - observou o marido da prima -, pode-se dizer que é o sinal do teu cativeiro.

O Rochinha aplaudiu este ruim trocadilho, sem entusiasmo, antes com certa hesitação. A prima, que estava presente, não lhe disse nada, mas sorria para si mesma. Era pouco mais velha que Maria Luísa, tinha sido sua companheira de colégio, quisera vê-la bem casada, e o Rochinha reunia algumas qualidades de um marido possível. Mas não foram só essas qualidades que a levaram a prendê-lo a Maria Luísa, e sim também a circunstância de que ele herdaria do pai algumas propriedades. Parecia-lhe que um bom marido é um excelente achado, mas que um bom marido não pobre - era um achado excelentíssimo. Assim ela só falava ao primo no sinal de Maria Luísa, como falava a Maria Luísa na elegância do primo.

- Não duvido - dizia esta daí a dias -; é elegante, mas parece-me assim...

- Assim como?

- Um pouco...

- Acaba.

- Um pouco estroina.

- Que tolice! É alegre, risonho, gosta de palestrar, mas é um bom rapaz, e, quando precisa, sabe ser sério. Tem só um defeito.

- Qual? - perguntou Maria Luísa, com curiosidade.

- Gosta de sinais cor de rosa ao canto da boca.

Maria Luísa deu uma resposta graciosamente brasileira, um muxoxo; mas a outra, que sabia muito bem a múltipla significação desse gesto, que tanto exprime o desdém, como a indiferença, como a dissimulação etc., não se deu por abalada e menos por vencida. Percebera que o muxoxo não era da primeira nem da segunda significação; notou-lhe uma mistura de desejo, de curiosidade, de simpatia, e jurou aos seus deuses transformá-lo em um beijo de esposa, com uma significação somente.

Não contava com a academia. O Rochinha partiu daí a algumas semanas para São Paulo, e, se deixou algumas saudades, não as contou Maria Luísa a ninguém; guardou-as consigo, mas guardou-as tão mal, que a outra as descobriu e leu.

"Está feito", pensou esta; "um ano passa-se depressa".

Reflexão errada, porque nunca houve ano mais vagaroso para Maria Luísa do que esse, ano trôpego, arrastado, feito para entristecer as mais robustas esperanças. Mas também que impaciência alegre quando se aproximou a vinda do Rochinha! Não o encobria da amiga, que teve o cuidado de o escrever ao primo, o qual respondeu com esta frase: "Se há por lá saudades, também as há por aqui e muitas: mas não diga nada a ninguém". A prima, com uma perfídia sem nome, foi contá-lo a Maria Luísa, e com uma cegueira de igual quilate declarou isso mesmo ao primo, que, pela mais singular das complacências, encheu-se de satisfação. Quem quiser que o entenda.

II

Veio o Rochinha de São Paulo, e daí em diante ninguém o tratou senão por Dr. Rochinha, ou quando menos, Dr. Rocha; mas já agora, para não alterar a linguagem do primeiro capítulo, continuarei a dizer simplesmente o Rochinha, familiaridade tanto mais desculpável, quanto mais a autoriza a própria prima dele.

- Doutor! - disse ela -. Creio que sim, mas lá para as outras; para mim há de ser sempre o Rochinha.

Veio pois o Rochinha de São Paulo, diploma na algibeira, saudades no coração.

Oito dias depois encontrava-se com Maria Luísa, casualmente, na rua do Ouvidor, à porta de uma confeitaria; ia com o pai, que o recebeu muito amavelmente, não menos que ela, posto que de outra maneira. O pai chegou a dizer-lhe que todas as semanas, às quintas-feiras, estava em casa.

O pai era negociante, mas não abastado nem próspero. A casa dava-lhe para viver, e não viver mal. Chamava-se Toledo, e contava pouco mais de cinquenta anos; era viúvo; morava com uma irmã viúva, que lhe servia de mãe à filha. Maria Luísa era o seu encanto, o seu amor, a sua esperança. Havia da parte dele uma espécie de adoração, que entre as pessoas da amizade passara a provérbio e exemplo. Ele tinha para si que o dia em que a filha lhe não desse o beijo da saída era um dia fatal; e não atribuía a outra cousa o menor contratempo que lhe sobreviesse. Qualquer desejo de Maria Luísa era para ele um decreto do céu, que urgia cumprir, custasse o que custasse. Daí vinha que a própria Maria Luísa evitava muita vez falar-lhe de alguma cousa que desejava, desde que a satisfação exigisse da parte do pai um sacrifício qualquer. Porque também ela adorava o pai, e nesse ponto nenhum devia nada ao outro. Ela o acompanhava até a porta da chácara todos os dias, para lhe dar o ósculo da partida; ela o ia esperar para dar o ósculo da chegada.

- Papaizinho, como passou? - dizia ela batendo-lhe na face. E, de braço dado, atravessavam toda a chácara, unidos, palreiros, alegres, como dous namorados felizes. Um dia Maria Luísa, em conversa, à sobremesa, com pessoas de fora, manifestou grande curiosidade de ver a Europa. Era pura conversa, sem outro alcance; contudo, não passaram despercebidas ao pai as suas palavras. Três dias depois, Toledo consultou seriamente a filha se queria ir daí a quinze dias para a Europa.

- Para a Europa? - perguntou ela um tanto espantada.

- Sim. Vamos?

Não respondeu Maria Luísa imediatamente, tão vacilante se viu entre o desejo secreto e o inesperado da proposta. Como refletisse um pouco, perguntou a si mesma se o pai podia sem sacrifício realizar a viagem, mas sobretudo não atinou com a razão desta.

- Para a Europa? - repetiu.

- Sim, para a Europa - disse o pai rindo -; mete-se a gente no paquete, e desembarca lá. É a cousa mais simples do mundo.

Maria Luísa ia dizer-lhe talvez que sim; mas recordou-se subitamente das palavras que proferira dias antes, e suspeitou que o pai faria apenas um sacrifício pecuniário e pessoal, para o fim de lhe cumprir o desejo. Então abanou a cabeça com um risinho triunfante.

- Não, senhor, deixemo-nos da Europa.

- Não?

- Nem por sombras.

- Mas tu morres por lá ir...

- Não morro, não senhor, tenho vontade de ver a Europa e hei de vê-la algum dia, mas muito mais tarde... muito mais tarde.

- Bem, então vou só - redarguiu o pai com um sorriso.

- Pois vá - disse Maria Luísa erguendo os ombros.

E assim acabou o projeto europeu. Não só a filha percebeu o motivo da proposta do pai, como este compreendeu que esse motivo fora descoberto; nenhum deles, todavia, aludiu ao sentimento secreto do outro.

Toledo recebeu o Rochinha, com muita afabilidade, quando este lá foi numa quinta-feira, duas semanas depois do encontro na rua do Ouvidor. A prima de Rochinha também foi, e a noite passou-se alegremente para todos. A reunião era limitada; os homens jogavam o voltarete, as senhoras conversavam de rendas e vestidos. O Rochinha e mais dois ou três rapazes, não obstante essa regra, preferiam o círculo das damas, no qual, além dos vestidos e rendas, também se falava de outras damas e de outros rapazes. A noite não podia ser mais cheia.

Não gastemos tempo em episódios miúdos; imitemos o Rochinha, que ao cabo de quatro semanas preferiu uma declaração franca à multidão de olhares e boas palavras. Com efeito, ele chegara ao estado agudo do amor; a ferida era profunda, e sangrava; urgiu estancá-la e curá-la. Urgia tanto mais fazer-lhe a declaração, quanto que da última vez que esteve com ela, encontrara-a um pouco acanhada e calada, e, à despedida, não teve o mesmo aperto de mão do costume, um certo aperto misterioso, singular, que se não aprende e se repete com muita exatidão, e pontualidade, em certos casos de paixão concentrada ou não concentrada. Pois nem esse aperto de mão; a de Maria Luísa parecia-lhe fria e fugidia.

"Que lhe fiz eu?", dizia ele consigo, ao retirar-se para casa.

E buscava recordar todas as palavras do último encontro, os gestos, e nada lhe parecia autorizar qualquer suspeita ou ressentimento que explicasse a súbita frieza de Maria Luísa. Como já então houvesse entrado na confidência dos seus sentimentos à prima, disse-lhe o que se passara, e a prima, que reunia ao desejo de ver casada a amiga, certo pendor às intrigas amorosas, meteu-se a caminho para a casa desta. Não lhe custou muito descobrir a Maria Luísa a secreta razão de sua visita, mas, pela primeira vez, achou a outra reservada.

- Você é bem cruel - dizia-lhe rindo -; sabe que o pobre rapaz não suspira senão por um ar de sua graça, e trata-o como se fosse o seu maior inimigo.

- Pode ser. Onde é que você comprou esta renda?

- No Godinho. Mas, vamos; você acha o Rochinha feio?

- Ao contrário, é um bonito rapaz.

- Bonito, bem educado, inteligente...

- Não sei como é que você ainda gosta desse chapéu tão fora da moda...

- Qual fora da moda!

- O brinco é que ficou muito bonito.

- É uma pérola...

- Pérola este brinco de brilhante?

- Não; falo do Rochinha. É uma verdadeira pérola; você não sabe quem está ali. Vamos lá; creio que não lhe tem ódio...

- Ódio por quê?

- Mas...

Quis a má fortuna do Rochinha que a tia de Maria Luísa viesse ter com ela, de maneira que a prima dele não pôde acabar a pergunta que ia fazer, e que era simplesmente esta: - Mas amor? - pergunta decisiva, a que Maria Luísa devia responder, ainda que fosse com o silêncio. Não produzindo esta entrevista o desejado efeito, antes parecendo confirmar os receios do Rochinha, entendeu este que era melhor e mais pronto ir diretamente ao fim, e declarar-lhe ele mesmo o que sentia, solicitando uma resposta franca e definitiva. Foi o que fez na seguinte semana.

III

Há duas maneiras de pedir uma decisão, em casos amorosos: falando ou escrevendo, Jacó não usou uma cousa nem outra; foi diretamente ao pai de Raquel, e obteve-a a troco de sete anos de trabalho, ao cabo dos quais, em vez de obter a Raquel, a amada, deram-lhe Lia, a remelosa. No fim de sete anos! Não estava o nosso Rochinha disposto a esperar tanto tempo.

"Nada", disse ele consigo uma semana depois, "isto há de acabar agora, imediatamente. Se não quer não queira..."

Não lhe dêem crédito; ele falava assim, para enganar-se a si próprio, para fazer crer que deixava o namoro, como se deixa um espetáculo aborrecido. Não lhe dêem crédito. Estava então em casa, à rua dos Inválidos, olhando para a ponta da chinela turca ou marroquina, que trazia nos pés, tendo na mão um retrato de Maria Luísa. Era uma fotografia que lhe dera a prima, um mês antes. A prima pedira-a a Maria Luísa, dizendo-lhe que era para dar a uma amiga; e Maria Luísa deu-lha; apenas a apanhou consigo, disse-lhe a amiga que não era para mimosear nenhuma amiga, mas ao próprio primo, que morria por ela. Então Maria Luísa estendeu a mão para tirar-lhe o retrato, protestou, arrufou-se, tudo isso tão mal fingido, que a amiga não teve remorsos do que fez e entregou o retrato ao primo. Era o retrato que ele tinha nas mãos, à rua dos Inválidos, sentado numa extensa cadeira americana; dividia os olhos entre o retrato e as chinelas, sem poder acabar de resolver-se a alguma cousa.

- Vá - disse ele enfim -; é preciso acabar com isto.

Levantou-se, foi à secretária, tirou uma folha de papel, passou-lhe as costas da mão por cima, e molhou a pena. "Vá", repetiu; mas repetiu somente, a pena não ia. Acendeu um cigarro, e nada; foi à janela, e nada. E, contudo, amava-a e muito; mas ou por isso, ou por outro motivo, não achava que dizer no papel. Chegou a pôr diante de si o retrato de Maria Luísa; foi pior. A imagem da moça peava-lhe todos os movimentos do espírito. Não podia ele compreender este fenômeno; atirou a pena irritado, e mudou de idéia: falar-lhe-ia diretamente.

Dous dias depois foi à casa de Toledo. Achou Maria Luísa na chácara, com a tia e outra senhora; e não deixou passar a primeira ocasião que se lhe ofereceu de dizer alguma cousa. Com efeito, é certo que abriu a boca, e pode afirmar-se que a palavra - Eu - rompeu-lhe dos lábios, mas tão a medo, e tão surda, que ela não a ouviu. Ou se a ouviu, disse-lhe cousa diferente; perguntou-lhe se tinha ido ao teatro.

- Não, senhora - disse ele.

- Pois nós fomos outro dia.

- Ah!

Maria Luísa começou a contar-lhe a peça, com tanta miudeza e cuidado, que o Rochinha ficou profundamente triste. Não viu, não reparou que a voz de Maria Luísa parecia às vezes alterada, que ela não ousava fitá-lo muito tempo, e que, apesar do cuidado com que reconstituía a peça, atrapalhou-se uma ou duas vezes. Não viu nada; estava entregue à ideia fixa, ou antes ao fixo sentimento que nutria por ela, e não viu nada. A noite caiu logo e não foi melhor para ele; Maria Luísa evitava-o, ou só lhe falava de cousas fúteis.

Não se deteve o Rochinha um dia mais. Naquela mesma noite minutou a carta decisiva. Era longa, difusa, cheia de repetições, mas ardente, e verdadeiramente sentida. No dia seguinte copiou-a, mandou-a... Custa-me dizê-lo, mas força é dizê-lo; mandou-a pela prima. Esta foi, nessa mesma noite, à casa de Maria Luísa; disse-lhe em particular que trazia um segredo, um mimo, uma cousa.

- Que é? - perguntou a amiga.

- Esta bocetinha.

Deu-lhe uma bocetinha de tartaruga fechada, acrescentando que só a abrisse no quarto, ao deitar, e não falasse dela a ninguém.

- Um mistério - concluiu Maria Luísa.

Cumpriu o que prometera à outra; abriu a bocetinha, no quarto, e viu dentro um papel. Era uma carta, sem sobrescrito; suspeitou logo o que fosse, fechou o papel na boceta, pô-la de lado, e foi despir-se. Estava nervosa, inquieta. Tinha uns esquecimentos longos; destoucou-se, por exemplo, em três tempos, intervalando-os de um comprido olhar apático cravado no espelho. Numa dessas vezes sentou-se numa cadeira, e ficou à toa com os braços caídos no regaço; repentinamente ergueu-se e murmurou:

- Impossível! Acabemos com isto.

Foi acabar de despir-se, mas dessa vez de um modo febril, impaciente, como quem busca fugir de si própria. Ainda aí, ao calçar a chinelinha de marroquim, esqueceu-se e ficou um instante com os olhos no pé nu, alvo de leite, traçado de linhas azuis. Enfim preparou-se para dormir. Sobre o toucador continuava a boceta, fechada, com um certo ar de mistério e desafio. Maria Luísa não olhava para ela; ia de um para outro lado, evitando-a, naturalmente receosa de fraquear e ler.

Rezou. Tinha a um canto do quarto um pequeno oratório com uma imagem da Conceição, à qual rezou com fervor, e pode ser que lhe pedisse força para resistir à tentação de ler a carta. Acabou de rezar, e abriu uma janela. A noite estava serena, o ar, límpido, as estrelas, de uma nitidez encantadora. Maria Luísa achou na vista do céu e da noite uma força dissolvente da coragem que até então soubera ter. A vista da natureza grande e bela chamou-a à própria natureza, e o coração pulou-lhe no peito com violência singular. Então pareceu-lhe ver a figura do Rochinha, bonito, elegante, cortês, apaixonado; recordou as diferentes fases das relações, desde o baile em que dançaram juntos. Iam já longos meses desde essa noite, ela recordava-se de todas as circunstâncias da apresentação. Pensou finalmente na conversa da véspera, do ar preocupado que vira nele, da indecisão, do acanhamento, como se quisesse dizer-lhe alguma cousa, e receasse fazê-lo.

"Amar-me-á muito?", perguntou Maria Luísa a si mesma.

E esta pergunta trouxe-lhe a consideração de que, se ele a amasse muito, podia padecer igualmente muito, com a simples e formal recusa da carta. Que tinha que a lesse? Era até conveniente fazê-lo, para saber na realidade o que é que ele sentia, e que resposta daria ela à amiga. Foi dali ao toucador, onde estava a boceta, abriu-a, tirou a carta e leu-a.

Leu-a é pouco; Maria Luísa releu a carta não uma, senão três vezes. Era a primeira carta de amor que recebia, circunstância sem valor, ou de valor escasso, se fosse uma simples folha de papel escrita, sem nenhuma correspondência no coração dela. Mas como explicar que alguns minutos depois de reler a carta, Maria Luísa se deixou cair na cama, com a cabeça no travesseiro, a chorar silenciosamente? Era claro que entre o coração dela e a carta existia algum vínculo misterioso.

No dia seguinte, Maria Luísa levantou-se cedo, com os olhos murchos e tristes; disse ao pai e à tia que não pudera dormir uma parte da noite, por causa dos mosquitos. Era uma explicação; o pai e a tia aceitaram-na. Mas o pai cuidou dar-lhe um cordial, segredando ao ouvido da filha uma palavra - esta palavra:

- Creio que é hoje.

- Hoje? - repetiu ela.

- O pedido.

- Ah!

Toledo franziu a testa, ao ver que a filha empalidecera, e ficou triste. Maria Luísa compreendeu, sorriu e lançou-lhe os braços ao pescoço.

- Acho que ele escolheu mau dia - disse ela -; a insônia pôs-me doente... Que é isso? Que cara é essa?

- Tu estás mentindo, minha filha... Se não é de teu gosto, fala; estamos em tempo.

- Já lhe disse que é muito e muito do meu gosto.

- Juras?

- Que idéia! Juro.

Riu-se ainda uma vez abanando a cabeça, com um ar de repreensão, mas parece que fazia violência a si mesma, porque desde logo deixou o pai. Se a leitora imagina que Maria Luísa foi outra vez chorar, mostra que ainda a não conhece; Maria Luísa foi descansar o espírito, longe de um objeto que a mortificava; ao mesmo tempo foi cogitar na resposta que daria ao Rochinha, cuja carta não leu mais em todo aquele dia - não se sabe se para não aumentar a aflição, ou unicamente para não a decorar de todo. Uma e outra cousa eram possíveis.

IV

Naquele dia efetivamente foi à casa de Toledo um dos homens que a frequentavam desde algum tempo. Era um cearense, abastado e sério. Chamava-se Vieira, contava trinta e oito para quarenta anos. A fisionomia era comum, mas exprimia certa bondade; as maneiras, acanhadas, mas discretas. Tinha as qualidades sólidas, não as brilhantes; e, se podia fazer a felicidade de uma consorte, não era precisamente o sonho de uma moça.

Vieira fora apresentado em casa de Toledo por um amigo de ambos, e a seu pedido. Vira uma vez Maria Luísa, à saída do teatro, e deixou-se impressionar fortemente. Chegara do Norte havia dous meses, e estava prestes a voltar, mas o encontro do teatro dispô-lo a demorar-se algum tempo. Sabemos ou adivinhamos o resto. Vieira principiou a frequentar a casa de Toledo, com assiduidade, mas sem adiantar nada, já porque o natural acanhamento lho impedia, já porque Maria Luísa não dava entradas a declarações. Era a amável dona da casa, que se dividia por todos com agrado e solicitude.

Se lhes disser que Maria Luísa não percebeu nada nos olhos de Vieira, no fim de poucos dias, digo uma cousa que nenhuma das leitoras acredita, porque todas elas sabem o contrário. Percebeu-o, efetivamente; mas não ficou abalada. Talvez o animou, olhando frequentes vezes para ele, não por mal, mas para saber se ele estava olhando também, o que, em certos casos, dizia uma dama, é o caminho de um namoro cerrado. Naquele foi somente a ilusão de Vieira, que concluiu dos olhos da moça, dos sorrisos e da afabilidade uma disposição matrimonial que não existia. Convém notar que a paixão de Vieira foi a maior contribuição do erro; a paixão cegava-o. Um dia, pois, estando em casa de Toledo, pediu licença para ir lá no dia seguinte tratar de negócios importantes. Toledo disse que sim; mas Vieira não foi; adoecera.

- Que diacho pode ele querer tratar comigo? - pensou o pai de Maria Luísa.

E, encontrando o amigo comum que introduzira Vieira em sua casa, perguntou-lhe se sabia alguma cousa. O amigo sorriu.

- Que é? - insistiu Toledo.

- Não sei se posso dizer; ele lhe dirá de viva voz.

- Se é indiscrição, não teimo.

O amigo esteve algum tempo calado, sorriu outra vez, hesitou, até que lhe disse o motivo da visita, pedindo-lhe a maior reserva.

- Sou confidente do Vieira; está loucamente apaixonado.

Toledo sentiu-se alvoroçado com a revelação. Vieira merecera-lhe simpatia desde os primeiros dias do conhecimento; achava-lhe qualidades sérias e dignas. Não era criança, mas os quarenta anos ou trinta e oito que podia ter não se manifestavam por nenhum cabelo grisalho ou cansaço de fisionomia; esta, ao contrário, era fresca, os cabelos eram do mais puro castanho. E todas essas circunstâncias eram realçadas pelos bens da fortuna, vantagem que Toledo, como pai, considerava de primeira ordem. Tais foram os motivos que o levaram a falar do Vieira à filha, antes mesmo que ele lha fosse pedir. Maria Luísa não se mostrou espantada da revelação.

- Gosta de mim o Vieira? - respondeu ela ao pai -. Creio que já o sabia.

- Mas sabias que ele gosta muito?

- Muito, não.

- Pois é verdade. O pior é a figura que estou fazendo...

- Como?

- Falando de cousas sabidas, e... pode ser que ajustadas.

Maria Luísa baixou os olhos, sem dizer nada; pareceu-lhe que o pai não rejeitava a pretensão do Vieira, e temeu desenganá-lo logo dizendo-lhe que não correspondia às afeições do namorado. Esse gesto, além do inconveniente de calar a verdade, teve o de fazer supor o que não era. Toledo imaginou que era vergonha da filha, e uma espécie de confissão. E foi por isso que tomou a falar-lhe, daí a dois dias, com prazer, louvando muito as qualidades do Vieira, o bom conceito em que era tido, as vantagens do casamento. Não seria capaz de impor à filha, nem esse nem outro; mas visto que ela gostava... Maria Luísa sentiu-se fulminada. Adorava e conhecia o pai; sabia que ele não falaria de cousa que lhe não supusesse aceita, e sentiu qual era a sua persuasão. Era fácil retificá-lo; uma só palavra bastava a restituir a verdade. Mas aí entrou Maria Luísa noutra dificuldade; o pai, logo que supôs aceita à filha a candidatura do Vieira, manifestou todo o prazer que lhe daria o consórcio; e esta circunstância é que deteve a moça, e foi a origem dos sucessos posteriores.

A doença de Vieira durou perto de três semanas; Toledo visitou-o duas vezes. No fim daquele tempo, após curta convalescença, Vieira mandou pedir ao pai de Maria Luísa que lhe marcasse dia para a entrevista, que não pudera realizar por motivo da enfermidade. Toledo designou outro dia, e foi a isso que aludiu no fim do capítulo passado.

O pedido do casamento foi feito nos termos usuais, e recebido com muita benevolência pelo pai, que declarou, entretanto, nada decidido sem que fosse do agrado da filha. Maria Luísa declarou que era muito de seu agrado; e o pai respondeu isso mesmo ao pretendente.

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