Capítulo primeiro
Este conto deve ser lido especialmente pelas viúvas de vinte e quatro a vinte e seis anos. Não teria mais nem menos a viúva Camargo, D. Maria Luísa, quando se deu o caso que me proponho contar nestas páginas, um caso "triste e digno de memória" posto que menos sangrento que o de D. Inês. Vinte e seis anos; não teria mais, nem tanto; era ainda formosa como aos dezessete, com o acréscimo das roupas pretas que lhe davam grande realce. Era alva como leite, um pouco descolorida, olhos castanhos e preguiçosos, testa larga, e talhe direito. Confesso que essas indicações são mui gerais e vagas; mas conservo-as por isso mesmo, não querendo acentuar nada neste caso, tão verdadeiro como a vida e a morte. Direi somente que Maria Luísa nasceu com um sinalzinho cor-de-rosa, junto à boca, do lado esquerdo (única particularidade notada), e que foi esse sinal a causa de seus primeiros amores, aos dezoito anos.
- Que é que tem aquela moça ao pé da boca? - perguntava o estudante Rochinha a uma de suas primas, em certa noite de baile.
- Um sinal.
- Postiço?
- Não, de nascença.
- Feia cousa! - murmurou o Rochinha.
- Mas a dona não é feia - ponderou a prima -, é até bem bonita...
- Pode ser, mas o sinal é hediondo.
A prima, casada de fresco, olhou para o Rochinha com algum desdém, e disse-lhe que não desprezasse o sinal, porque talvez fosse ele a isca com que ela o pescasse, mais tarde ou mais cedo. O Rochinha levantou os ombros e falou de outro assunto; mas a prima era inexorável; ergueu-se, pediu-lhe o braço, levou-o até o lugar em que estava Maria Luísa, a quem o apresentou. Conversaram os três; tocou-se uma quadrilha, o Rochinha e Maria Luísa dançaram, depois conversaram alegremente.
- Que tal o sinal? - perguntou-lhe a prima, à porta da rua no fim do baile, enquanto o marido acendia um charuto e esperava a carruagem.
- Não é feio - respondeu o Rochinha -; dá-lhe até certa graça; mas daí à isca vai uma grande distância.
- A distância de uma semana - tornou a prima rindo. E sem aceitar-lhe a mão entrou na carruagem.
Ficou o Rochinha à porta, um pouco pensativo, não se sabe se pelo sinal de Maria Luísa, se pela ponta do pé da prima, que ele chegou a ver, quando ela entrou na carruagem. Também não se sabe se ele viu a ponta do pé sem querer, ou se buscou vê-la. Ambas as hipóteses são admissíveis aos dezenove anos de um rapaz acadêmico. O Rochinha estudava direito em São Paulo, e devia formar-se no ano seguinte; estava portanto nos últimos meses da liberdade escolástica; e fio que a leitora lhe perdoará qualquer intenção, se intenção houve naquela vista fugitiva. Mas, qualquer que fosse o motivo secreto, a verdade é que ele não ficou pensativo mais de dous minutos, acendeu um charuto e guiou para casa.
Esquecia-me dizer que a cena contada nos períodos anteriores passou-se na noite de 19 de janeiro de 1871, em uma casa do bairro do Andaraí. No dia seguinte, dia de São Sebastião, foi o Rochinha jantar com a prima; eram anos do marido desta. Achou lá Maria Luísa e o pai. Jantou-se, cantou-se, conversou-se, até meia noite, hora em que o Rochinha, esquecendo-se do sinalzinho da moça, achou que ela estava muito mais bonita do que lhe parecia no fim da noite passada.
- Um sinal que passa tão depressa de fealdade a beleza - observou o marido da prima -, pode-se dizer que é o sinal do teu cativeiro.
O Rochinha aplaudiu este ruim trocadilho, sem entusiasmo, antes com certa hesitação. A prima, que estava presente, não lhe disse nada, mas sorria para si mesma. Era pouco mais velha que Maria Luísa, tinha sido sua companheira de colégio, quisera vê-la bem casada, e o Rochinha reunia algumas qualidades de um marido possível. Mas não foram só essas qualidades que a levaram a prendê-lo a Maria Luísa, e sim também a circunstância de que ele herdaria do pai algumas propriedades. Parecia-lhe que um bom marido é um excelente achado, mas que um bom marido não pobre - era um achado excelentíssimo. Assim ela só falava ao primo no sinal de Maria Luísa, como falava a Maria Luísa na elegância do primo.
- Não duvido - dizia esta daí a dias -; é elegante, mas parece-me assim...
- Assim como?
- Um pouco...
- Acaba.
- Um pouco estroina.
- Que tolice! É alegre, risonho, gosta de palestrar, mas é um bom rapaz, e, quando precisa, sabe ser sério. Tem só um defeito.
- Qual? - perguntou Maria Luísa, com curiosidade.
- Gosta de sinais cor de rosa ao canto da boca.
Maria Luísa deu uma resposta graciosamente brasileira, um muxoxo; mas a outra, que sabia muito bem a múltipla significação desse gesto, que tanto exprime o desdém, como a indiferença, como a dissimulação etc., não se deu por abalada e menos por vencida. Percebera que o muxoxo não era da primeira nem da segunda significação; notou-lhe uma mistura de desejo, de curiosidade, de simpatia, e jurou aos seus deuses transformá-lo em um beijo de esposa, com uma significação somente.
Não contava com a academia. O Rochinha partiu daí a algumas semanas para São Paulo, e, se deixou algumas saudades, não as contou Maria Luísa a ninguém; guardou-as consigo, mas guardou-as tão mal, que a outra as descobriu e leu.
"Está feito", pensou esta; "um ano passa-se depressa".
Reflexão errada, porque nunca houve ano mais vagaroso para Maria Luísa do que esse, ano trôpego, arrastado, feito para entristecer as mais robustas esperanças. Mas também que impaciência alegre quando se aproximou a vinda do Rochinha! Não o encobria da amiga, que teve o cuidado de o escrever ao primo, o qual respondeu com esta frase: "Se há por lá saudades, também as há por aqui e muitas: mas não diga nada a ninguém". A prima, com uma perfídia sem nome, foi contá-lo a Maria Luísa, e com uma cegueira de igual quilate declarou isso mesmo ao primo, que, pela mais singular das complacências, encheu-se de satisfação. Quem quiser que o entenda.
II
Veio o Rochinha de São Paulo, e daí em diante ninguém o tratou senão por Dr. Rochinha, ou quando menos, Dr. Rocha; mas já agora, para não alterar a linguagem do primeiro capítulo, continuarei a dizer simplesmente o Rochinha, familiaridade tanto mais desculpável, quanto mais a autoriza a própria prima dele.
- Doutor! - disse ela -. Creio que sim, mas lá para as outras; para mim há de ser sempre o Rochinha.
Veio pois o Rochinha de São Paulo, diploma na algibeira, saudades no coração.
Oito dias depois encontrava-se com Maria Luísa, casualmente, na rua do Ouvidor, à porta de uma confeitaria; ia com o pai, que o recebeu muito amavelmente, não menos que ela, posto que de outra maneira. O pai chegou a dizer-lhe que todas as semanas, às quintas-feiras, estava em casa.
O pai era negociante, mas não abastado nem próspero. A casa dava-lhe para viver, e não viver mal. Chamava-se Toledo, e contava pouco mais de cinquenta anos; era viúvo; morava com uma irmã viúva, que lhe servia de mãe à filha. Maria Luísa era o seu encanto, o seu amor, a sua esperança. Havia da parte dele uma espécie de adoração, que entre as pessoas da amizade passara a provérbio e exemplo. Ele tinha para si que o dia em que a filha lhe não desse o beijo da saída era um dia fatal; e não atribuía a outra cousa o menor contratempo que lhe sobreviesse. Qualquer desejo de Maria Luísa era para ele um decreto do céu, que urgia cumprir, custasse o que custasse. Daí vinha que a própria Maria Luísa evitava muita vez falar-lhe de alguma cousa que desejava, desde que a satisfação exigisse da parte do pai um sacrifício qualquer. Porque também ela adorava o pai, e nesse ponto nenhum devia nada ao outro. Ela o acompanhava até a porta da chácara todos os dias, para lhe dar o ósculo da partida; ela o ia esperar para dar o ósculo da chegada.
- Papaizinho, como passou? - dizia ela batendo-lhe na face. E, de braço dado, atravessavam toda a chácara, unidos, palreiros, alegres, como dous namorados felizes. Um dia Maria Luísa, em conversa, à sobremesa, com pessoas de fora, manifestou grande curiosidade de ver a Europa. Era pura conversa, sem outro alcance; contudo, não passaram despercebidas ao pai as suas palavras. Três dias depois, Toledo consultou seriamente a filha se queria ir daí a quinze dias para a Europa.
- Para a Europa? - perguntou ela um tanto espantada.
- Sim. Vamos?
Não respondeu Maria Luísa imediatamente, tão vacilante se viu entre o desejo secreto e o inesperado da proposta. Como refletisse um pouco, perguntou a si mesma se o pai podia sem sacrifício realizar a viagem, mas sobretudo não atinou com a razão desta.
- Para a Europa? - repetiu.
- Sim, para a Europa - disse o pai rindo -; mete-se a gente no paquete, e desembarca lá. É a cousa mais simples do mundo.
Maria Luísa ia dizer-lhe talvez que sim; mas recordou-se subitamente das palavras que proferira dias antes, e suspeitou que o pai faria apenas um sacrifício pecuniário e pessoal, para o fim de lhe cumprir o desejo. Então abanou a cabeça com um risinho triunfante.
- Não, senhor, deixemo-nos da Europa.
- Não?
- Nem por sombras.
- Mas tu morres por lá ir...
- Não morro, não senhor, tenho vontade de ver a Europa e hei de vê-la algum dia, mas muito mais tarde... muito mais tarde.
- Bem, então vou só - redarguiu o pai com um sorriso.
- Pois vá - disse Maria Luísa erguendo os ombros.
E assim acabou o projeto europeu. Não só a filha percebeu o motivo da proposta do pai, como este compreendeu que esse motivo fora descoberto; nenhum deles, todavia, aludiu ao sentimento secreto do outro.
Toledo recebeu o Rochinha, com muita afabilidade, quando este lá foi numa quinta-feira, duas semanas depois do encontro na rua do Ouvidor. A prima de Rochinha também foi, e a noite passou-se alegremente para todos. A reunião era limitada; os homens jogavam o voltarete, as senhoras conversavam de rendas e vestidos. O Rochinha e mais dois ou três rapazes, não obstante essa regra, preferiam o círculo das damas, no qual, além dos vestidos e rendas, também se falava de outras damas e de outros rapazes. A noite não podia ser mais cheia.
Não gastemos tempo em episódios miúdos; imitemos o Rochinha, que ao cabo de quatro semanas preferiu uma declaração franca à multidão de olhares e boas palavras. Com efeito, ele chegara ao estado agudo do amor; a ferida era profunda, e sangrava; urgiu estancá-la e curá-la. Urgia tanto mais fazer-lhe a declaração, quanto que da última vez que esteve com ela, encontrara-a um pouco acanhada e calada, e, à despedida, não teve o mesmo aperto de mão do costume, um certo aperto misterioso, singular, que se não aprende e se repete com muita exatidão, e pontualidade, em certos casos de paixão concentrada ou não concentrada. Pois nem esse aperto de mão; a de Maria Luísa parecia-lhe fria e fugidia.
"Que lhe fiz eu?", dizia ele consigo, ao retirar-se para casa.
E buscava recordar todas as palavras do último encontro, os gestos, e nada lhe parecia autorizar qualquer suspeita ou ressentimento que explicasse a súbita frieza de Maria Luísa. Como já então houvesse entrado na confidência dos seus sentimentos à prima, disse-lhe o que se passara, e a prima, que reunia ao desejo de ver casada a amiga, certo pendor às intrigas amorosas, meteu-se a caminho para a casa desta. Não lhe custou muito descobrir a Maria Luísa a secreta razão de sua visita, mas, pela primeira vez, achou a outra reservada.
- Você é bem cruel - dizia-lhe rindo -; sabe que o pobre rapaz não suspira senão por um ar de sua graça, e trata-o como se fosse o seu maior inimigo.
- Pode ser. Onde é que você comprou esta renda?
- No Godinho. Mas, vamos; você acha o Rochinha feio?
- Ao contrário, é um bonito rapaz.
- Bonito, bem educado, inteligente...
- Não sei como é que você ainda gosta desse chapéu tão fora da moda...
- Qual fora da moda!
- O brinco é que ficou muito bonito.
- É uma pérola...
- Pérola este brinco de brilhante?
- Não; falo do Rochinha. É uma verdadeira pérola; você não sabe quem está ali. Vamos lá; creio que não lhe tem ódio...
- Ódio por quê?
- Mas...
Quis a má fortuna do Rochinha que a tia de Maria Luísa viesse ter com ela, de maneira que a prima dele não pôde acabar a pergunta que ia fazer, e que era simplesmente esta: - Mas amor? - pergunta decisiva, a que Maria Luísa devia responder, ainda que fosse com o silêncio. Não produzindo esta entrevista o desejado efeito, antes parecendo confirmar os receios do Rochinha, entendeu este que era melhor e mais pronto ir diretamente ao fim, e declarar-lhe ele mesmo o que sentia, solicitando uma resposta franca e definitiva. Foi o que fez na seguinte semana.