Conto

O Carro Número 13

1868
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em março de 1868, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

V

Era Luís Marcondes, que chegava da Europa.

- Que é isto? Já de volta? - perguntou-lhe Amaro.

- É verdade; para variar. Eu é que me admiro de achar-te na Corte, quando já te fazia na fazenda.

- Não, não fui à Soledade depois que voltei; e vais espantar-te da razão; vou casar-me.

- Casas-te!

- É verdade.

- Com a mão esquerda, morganaticamente...

- Não, publicamente, e com a mão direita.

- É assombroso.

- Dizes isso porque não conheces a minha noiva; é um anjo.

- Então dou-te os meus parabéns.

- Hei de apresentar-te hoje. E para festejar a tua chegada jantas comigo.

- Sim.

À mesa do jantar, Amaro contou a Marcondes a história das cartas; e leu-lhas ambas.

- Bravo! - disse Marcondes -. Que lhe respondeste?

- Nada.

- Nada! És um grosseirão e um tolo. Pois uma mulher escreve-te, mostra-se apaixonada por ti, e tu nada lhe respondes? Não fará isso o Marcondes. Desculpa se te falo em verso... O velho Horácio...

Estava iminente um discurso. Faria, para atalhá-lo, apresentou-lhe a lista e Marcondes passou rapidamente do velho Horácio a um assado com batatas.

- Mas - continuou o amigo de Amaro - não me dirás por que motivo lhe não respondeste?

- Eu sei lá. Primeiramente porque não estou acostumado a esta espécie de romances vivos, começando por cartas anônimas, e depois porque vou casar...

- A isso respondo eu que uma vez é a primeira, e que o ires casar não impede nada. Indo daqui para Botafogo, não há motivo nenhum que me impeça de entrar no Passeio Público ou na Biblioteca Nacional... Queres tu ceder-me o romance?

- Isso nunca: seria uma deslealdade...

- Pois então responde.

- Mas que lhe hei de dizer?

- Dize-lhe que a amas.

- É impossível; ela não pode acreditar...

- Pateta! - disse Marcondes pondo vinho nos cálices -. Dize-lhe que a simples leitura das cartas te puseram a cabeça a arder, e que já sentes que hás de vir a amá-la, se já não a amas... e neste sentido escreve-lhe três ou quatro laudas.

- Então achas que eu devo...

- Sem dúvida alguma.

- Para falar a verdade eu tenho certa curiosidade...

- Pois avante.

Amaro escreveu nessa mesma tarde uma carta concebida nestes termos, que Marcondes aprovou integralmente:

Senhora.

Quem quer que seja, é uma alma grande e um coração de fogo. Só um grande amor pode aconselhar um passo destes tão arriscado.
Li e reli as suas duas cartas; e hoje, quer que lhe diga? Penso nelas exclusivamente; fazem-me o efeito de um sonho. Eu pergunto a mim mesmo se é possível que eu inspirasse tal amor, e agradeço aos deuses o ter-me demorado aqui na Corte, pois que tive ocasião de ser feliz.
Na minha solidão as suas cartas são um íris de esperança e de felicidade.
Mas eu seria mais completamente feliz se pudesse conhecê-la; se me fosse dado vê-la de perto, adorar sob a forma humana este mito que a minha imaginação está criando.
Ousarei esperá-lo?
É já grande atrevimento conceber semelhante ideia; mas espero que me perdoará, porque o amor perdoa tudo.
Em qualquer caso, fique certa de que eu sinto-me com forças para corresponder ao seu amor, e adorá-la como merece.
Uma palavra sua, e ver-me-á correr por entre os mais insuperáveis obstáculos.

A carta foi para o correio com as indicações necessárias; e Amaro, que ainda hesitou no momento de mandá-la, dirigiu-se à noite para casa da noiva em companhia de Luís Marcondes.

VI

Antonina recebeu o noivo com a mesma alegria do costume. Marcondes agradou a todas as pessoas da casa pelo gênio galhofeiro que tinha, e apesar da tendência para os discursos intermináveis.

Quando, pelas onze horas e meia da noite, saíram de casa de Carvalho, Marcondes apressou-se a dizer ao amigo:

- A tua noiva é linda.

- Não achas?

- Decerto. E parece que te quer muito...

- É por isso que eu lamento ter escrito aquela carta - disse Amaro suspirando.

- Olha que parvo! -exclamou Marcondes -. Por que motivo há de Deus dar nozes a quem não tem dentes?

- Acreditas que ela responda?

- Se responde! Eu estou traquejado nisto, meu rico!

- Que responderá ela?

- Mil cousas bonitas.

- Mas afinal em que dará tudo isto? - perguntou Amaro -. Eu creio que ela gosta de mim... Não te parece?

- Já te disse que sim!

- Estou ansioso por ver a resposta.

- E eu também...

Marcondes dizia consigo mesmo:

"Era bem bom que eu tomasse para mim este romance, porque o palerma estraga tudo."

Amaro percebeu que o amigo hesitava em dizer-lhe alguma cousa.

- Em que pensas? - perguntou-lhe.

- Penso que tu és um palerma; e sou capaz de continuar o teu romance por minha conta.

- Isso não! Já agora deixa-me acabar. Vamos ver que resposta vem. Quero que me ajudes, sim?

- Pronto, com a condição de que não hás de ser tolo.

Separaram-se.

Amaro foi para casa, e tarde conciliou o sono. A história das cartas enchia-lhe o espírito; imaginava a mulher misteriosa, construía dentro de si uma figura ideal; dava-lhe cabelos de ouro...

VII

A próxima carta da misteriosa mulher era um hino de amor e de alegria; ela agradecia ao seu amado aquelas linhas; prometia que só deixaria a carta quando morresse.

Havia porém dous períodos que aguaram o prazer de Amaro Faria. Um dizia assim: "Há dias vi-o passar na rua do Ouvidor com uma família. Disseram-me que o senhor vai casar com uma das moças. Sofri horrivelmente; vai casar, quer dizer que a ama... e esta certeza mata-me!"

O outro período pode resumir-se a estes termos: "Quanto ao pedido que me faz de querer ver-me, respondo-lhe que não há de ver-me nunca; nunca, ouviu? Basta que saiba que eu o amo, muito mais do que há de amá-lo a viúva Antonina. Perca a esperança de ver-me".

- Estás vendo - disse Amaro Faria a Marcondes mostrando-lhe a carta-, está tudo perdido.

- Oh! Pateta! - disse-lhe Marcondes -. Tu não vês que esta mulher não diz o que sente? Pois acreditas que isto seja a expressão exata do pensamento dela? Acho a situação excelente para responderes; trata bem o período do teu casamento, e insiste de novo no desejo de contemplá-la.

Amaro Faria aceitou facilmente este conselho; o seu espírito o predispunha para aceitá-lo.

No dia seguinte uma nova epístola do fazendeiro da Soledade foi para a caixa do correio.

Os pontos capitais da carta foram tratados por mão de mestre. O instinto de Amaro supria-lhe a experiência.

Quanto à noiva, dizia ele que era exato que ia casar-se, e que naturalmente a moça com quem o viu a sua incógnita amadora era Antonina; entretanto, se era certo que o casamento fazia-se por inclinação, não era de estranhar que um novo amor viesse substituir aquele; e a própria demora do enlace era uma prova de que o destino lhe preparava uma felicidade maior no amor da autora das cartas.

Por fim, Amaro pedia instantemente para vê-la, ainda que fosse um minuto, porque, dizia ele, queria guardar na memória as feições que devia adorar eternamente.

A incógnita respondeu, e a carta dela era um composto de expansões e reticências, protestos e negativas.

Marcondes animava o abatido e recruta Amaro Faria, que em mais duas cartas resumiu a maior força de eloquência de que podia dispor.

A última produziu o desejado efeito. A misteriosa correspondente terminava a sua resposta com estas textuais palavras:

Consinto em que me veja, mas apenas um minuto. Irei com a minha criada, antes amiga que criada, em um carro, no dia 15, esperá-lo na praia do Flamengo, às sete horas da manhã. Para que se não engane, o carro tem o número 13; é o de um cocheiro que já esteve ao meu serviço.

- Que te dizia eu? - perguntou Marcondes ao amigo quando este lhe mostrou esta resposta -. Se não estivesse eu aqui lá se te ia por água abaixo este romance. Meu caro, dizem que a vida é um caminho cheio de espinhos e flores; se é assim, acho tolice que um homem não apanhe as flores que encontra.

Desta vez Marcondes pôde fazer tranquilamente o discurso; porque Amaro Faria, todo entregue às emoções que a carta lhe produzia, não procurou atalhá-lo.

- Enfim, hoje são 13, disse Marcondes; 15 é o dia marcado. Se for bonita como diz, vê se foges com ela; o paquete do rio da Prata sai a 23, e a tua fazenda é um quadrilátero.

- Vê que letra fina! E que perfume!

- Não tem dúvida; é uma mulher elegante. O que eu desejo é saber o resultado; no dia 15 vou esperar em tua casa.

- Sim.

VIII

Rompeu finalmente o dia 15, ansiosamente esperado por Amaro Faria.

O jovem fazendeiro perfumou-se e enfeitou-se o mais que pôde. Estava adorável. Depois de um último olhar lançado ao espelho, Amaro Faria saiu, e entrou num tilbury.

Tinha calculado o tempo de lá chegar; mas, como todo o namorado, chegou um quarto de hora antes.

Deixou o tillbury a certa distância, e entrou a passear ao longo da praia.

De cada vez que assomava um carro ao longe, Amaro Faria sentia-se enfraquecer; mas o carro passava, e em vez do número feliz trazia um 245 ou 523, que o deixava em profunda tristeza.

Amaro consultava o relógio de minuto a minuto.

Afinal assoma ao longe um carro que andava vagarosamente como devem andar os carros que entram em tais mistérios.

"Será este?" - disse Amaro consigo.

O carro aproximava-se com lentidão e vinha fechado, de maneira que, ao passar junto de Amaro, este não pôde ver quem ia dentro.

Mas apenas passou, Amaro leu o número 13.

As letras pareceram-lhe de fogo.

Foi imediatamente atrás; o carro parou dali a vinte passos. Amaro aproximou-se e bateu na portinhola.

A portinhola abriu-se.

Havia dentro duas mulheres, ambas tinham um véu na cabeça, de maneira que Amaro não podia distinguir as suas feições.

- Sou eu! - disse ele timidamente - . Prometeu-me que eu a veria...

E dizendo isto dirigia-se alternadamente para uma e outra, pois não sabia qual delas era a misteriosa correspondente.

- Vê-la somente, e irei com a sua imagem no meu coração!

Uma das mulheres descobriu o rosto.

- Veja! - disse ela.

Amaro recuou um passo.

Era Antonina.

A viúva continuou:

- Aqui estão as suas cartas; lucrei muito. Como depois de casada não será tempo de arrepender-me, foi bom que o conhecesse agora mesmo. Adeus.

Fechou a portinhola, e o carro partiu.

Amaro ficou alguns minutos no mesmo lugar, olhando sem ver, e com ímpetos de correr atrás do carro; mas era impossível apanhá-lo o mais ligeiro tilbury, porque o carro, levado a galope, ia longe.

Amaro chamou de novo o seu tilbury e voltou para a cidade.

Apenas chegou a casa, saiu-lhe ao encontro o jovem Marcondes, com um sorriso nos lábios.

- Então, é bonita?

- É o diabo! Deixa-me!

Instado por Marcondes, o fazendeiro da Soledade contou tudo ao amigo, que o consolou como pôde, mas saiu de lá rindo às gargalhadas.

IX

Amaro voltou para a fazenda.

Quando entrava pelo portão da Soledade foi dizendo consigo estas filosóficas palavras:

- Volto ao meu café; sempre que fui em busca do desconhecido dei-me mal; agora tranco as portas e viverei no meio das minhas plantações.

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