Coleção

Contos na Imprensa - Fase 2

1868 - 1871

Depois dos romances e das coletâneas "oficiais" de contos, ou seja, os livros organizados pelo próprio autor, sendo o último Relíquias de casa velha (disponível no portal desde julho deste ano), fomos aos contos não reunidos em livro por Machado, e que vieram a público somente por meio da imprensa do século XIX. Esses contos, usualmente chamados de "contos avulsos", são ao todo 114, que, por razões operacionais, dividimos em blocos, observando a ordem cronológica de publicação na imprensa. O primeiro bloco está no ar desde 16 de agosto deste ano, e contém treze contos, todos publicados entre 1858 e 1867.

Este é o segundo bloco, aqui denominado "Contos avulsos - fase 2". O conjunto compreende nove peças publicadas entre 1868 e 1871, no Jornal das Famílias, que por vezes Machado assina com seu próprio nome, por vezes com pseudônimos, como Victor de Paula, Job e J.J. É curioso o fato de que pertence a esse mesmo período, 1868 a 1871, o primeiro livro de contos de Machado, Contos fluminenses (1870). A essa época, ele já era um escritor relativamente consagrado no cenário nacional, tendo publicado crítica teatral, artigos diversos e poesia - lembre-se que Crisálidas é de 1864. Portanto, seria o caso de perguntar: faltariam editoras dispostas a reunir em livro os outros contos de Machado? Ou o mestre já teria a essa época um senso crítico suficientemente agudo em relação à sua produção, que lhe coibisse o ímpeto de publicar textos dos quais não se orgulhava? Que critérios o teriam levado a pôr "Linha reta e linha curva" em Contos fluminenses, e não, "Aires e Vergueiro", por exemplo?

Os contos que aqui se veem, assim como os aqui publicados em agosto último, são registros do Machado de Assis laborioso, operário, treinando sua técnica pacientemente. Nesse espaço de três anos, foram doze contos escritos (três deles estão em Contos fluminenses), alguns com mais de trinta páginas, sendo comparáveis a novelas (aqui entendidas como narrativas intermediárias entre o romance e o conto). Essa produtividade se intensificará com os anos, até chegar mais tarde ao equilíbrio, quando serão escritos menos contos, porém mais densos.

Aqui os temas e personagens prenunciam obras antológicas de Machado. As personagens femininas na maioria das vezes são superiores aos homens: na moral e na coragem, principalmente se levarmos em conta os padrões conservadores do século XIX ("Não é o mel para a boca do asno", "O carro no 13", "Mariana"). O caiporismo, a má sorte que acompanhará muitas personagens machadianas (como em "Último capítulo", de Histórias sem data), já aparece como tema de um conto: João das Mercês, de "O rei dos caiporas", talvez seja o primeiro "azarado" produzido pelas mãos do Bruxo.

A amizade, outro tema caro a Machado, está presente em pelo menos dois contos aqui reunidos, e em um deles, "Aires e Vergueiro", já como matéria para ironia. Semelhante feito se vira na fase anterior destes contos avulsos, na história de "O que são as moças", e se verá de novo em "Pílades e Orestes", do livro Relíquias de casa velha. Outro conto que tem a amizade como fundo temático é "Almas agradecidas", que, apesar de mais recente (1871), é o que menos lembra o Machado posterior, irônico e corrosivo.

A influência da literatura fantástica se faz perceber em pelo menos dois contos desta fase: "O anjo Rafael" e "O capitão Mendonça": com enredos semelhantes, ambos deixam transparecer o gosto de Machado a essa altura, em que parece fascinado, sobretudo, por E. T. A. Hoffmann, autor do Romantismo alemão, dotado de imaginação excêntrica, que se celebrizou pelos livros de contos fantásticos, com forte presença do sobrenatural.

A leitura dessas histórias só reafirma a importância histórica de tais obras, defendido há mais de meio século por Raimundo Magalhães Júnior, que afirma que "para os estudiosos, como para os leitores, essa parte da obra de Machado de Assis terá sempre um valor documental muito expressivo. Faz parte da história do escritor, mostrando a evolução do seu estilo."

Ao leitor que se impacientar com o tom edificante, ou com a prolixidade deste Machado, que leia estes escritos ao menos para, em companhia do Machado maduro, que lhe agrada, lembrar-se desse anterior, no processo de se fazer o grande escritor que viria a ser.

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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com edições digitalizadas do periódico Jornal das Famílias, no qual todos os contos desta fase foram publicados, disponíveis no acervo digital da Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro e da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional . O cotejo também foi feito com edições impressas, como as de Raimundo Magalhães Jr., John Gledson, da editora Nova Aguilar (2008), além de com os diversos volumes de contos machadianos publicados pela Jackson Editores. Todos os textos foram cotejados com os das publicações originais.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está nas primeiras edições: "cálix" e não "cálice", "caloiro" e não "calouro", "cousa" e não "coisa", "dous" e não "dois", "doudo" e não "doido".

Especificamente no conto "Não é o mel para boca do asno" foi mantida a oscilação no uso da expressão "em todo o caso" / "em todo caso". Em "O anjo Rafael", também se manteve a oscilação do verbo "sentar-se / assentar-se". No conto, aparece tanto um ("O rapaz fechou a porta, e fez com que Antônia se sentasse.") quanto outro ("- Mas também o motivo que me traz aqui é importante - disse o velho assentando-se.")

Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Assembleia Provincial Fluminense", "Faculdade de São Paulo", "Câmara" e "Ginásio".

Preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "cognac" e não "conhaque"; "mayonnaise" e não "maionese", "tilbury" e não "tílburi". Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Quanto aos numerais, manteve-se a forma usada nas publicações originais, ora por extenso, ora em algarismos.

Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: o adjetivo "discreta" empregado no sentido, hoje pouco usual no português brasileiro, de "comedida nos gestos, no falar, no comportar-se socialmente"; "lista", com o sentido de "cardápio", "menu"; "hospício", no sentido de "abrigo".

Usos hoje considerados "esquisitos" foram, obviamente, mantidos: "Talvez que haja [...]"; "toma cuidado não se derrame éter nenhum"; "ainda me lembro das lágrimas que lhe vi derramar"; "perguntou ao criado se seu amo costumava a lê-los"; "mas o velho, apontando-lhe para uma cadeira que lhe ficava defronte, convidou-o a sentar" (grifos das editoras).

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo". Observe-se que o autor, às vezes, omite a vírgula em casos absolutamente idênticos: "mas o amor triunfou e triunfará sempre". A mesma oscilação se dá com o uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático."; porém: " Acudiu o criado e o major deu-lhe ordem de conduzir o doutor para o quarto. ".

Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "a vida que eu levava era tão monótona que a diversão do capitão Mendonça devia encher uma boa página com matéria nova"; mas: "um gesto tão solene, que tapou a boca ao moço".

Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz, mas faz, embora neste conjunto, particularmente, não se tenha encontrado nenhum exemplo.

Permaneceram dois casos de sujeito separado de seu verbo por meio de vírgula, nos quais foi identificada forte marca de oralidade: "O que passou, passou." e "Quem chegar primeiro, espera".

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi aberto novo parágrafo com travessão, ainda quando nas edições anteriores este está no meio do mesmo parágrafo. O procedimento do autor em demais passagens de diferentes contos autoriza tal decisão editorial, pois nos leva a crer que a disposição do diálogo dentro do parágrafo tenha sido antes erro tipográfico que decisão autoral.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica 
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq


agosto de 2013

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