Conto

O Carro Número 13

1868

O carro nº13 *

Capítulo primeiro

A fazenda da Soledade está situada no centro de um rico município fluminense, e pertencia há dez anos ao comendador Faria, que a deixou em herança ao único filho que teve do primeiro matrimônio, e que se chama o Dr. Amaro de Faria. O comendador morreu em 185..., e poucos meses depois morreu a viúva, madrasta de Amaro. Não havendo filhos nem colaterais, veio o Dr. Amaro a ficar senhor e possuidor da fazenda da Soledade, com trezentos escravos, moendas de cana, grandes plantações de café, e vastíssimas florestas de magníficas madeiras. Conta redonda, possuía o Dr. Amaro de Faria uns dous mil contos e vinte oito anos de idade. Tinha uma chave de ouro para abrir todas as portas.

Era formado em direito pela Faculdade de São Paulo, e os cinco anos que ali passou foram os únicos em que esteve ausente da casa paterna. Não conhecia a Corte, onde apenas estivera algumas vezes de passagem. Apenas recebeu a carta de bacharel retirou-se para a fazenda, e já ali se achava havia cinco anos quando lhe faleceu o pai.

Todos supuseram, apenas morreu o comendador, que o Dr. Amaro continuasse a ser exclusivamente fazendeiro sem importar-se com mais cousa alguma do resto do mundo. Efetivamente eram essas as intenções do moço; o diploma de bacharel servia-lhe apenas para mostrar em qualquer tempo, se necessário fosse, um título científico; mas ele não tinha intenção alguma de usar dele. O presidente da província, andando um dia em viagem, hospedou-se na fazenda da Soledade, e depois de uma hora de conversa ofereceu ao Dr. Amaro um cargo qualquer; mas o jovem fazendeiro recusou, dando em resposta que desejava simplesmente cultivar o café e a cana sem importar-se com o resto da república. O presidente dificilmente conciliou o sono, pensando em tamanha abnegação e indiferença da parte do rapaz. Uma das convicções do presidente era que não havia Cincinatos.

Estavam as cousas neste pé, quando apareceu na fazenda da Soledade um antigo colega de Amaro, formado ao mesmo tempo que ele e possuidor de alguma fortuna.

Amaro recebeu alegremente o companheiro, que se chamava Luís Marcondes, e vinha da Corte expressamente para visitá-lo. A recepção foi como costuma ser no nosso hospitaleiro interior. Tomada a primeira xícara de café, Marcondes disparou contra o colega esta carga de palavras:

- Então, que é isto? Estás metido em corpo e alma no café e no açúcar? Disseram-me isto apenas cheguei à Corte, porque, não sei se sabes, vim há poucos meses de Paris.

- Ah!

- É verdade, meu Amaro, estive em Paris, e hoje compreendo que a maior desgraça deste mundo é não ter estado naquela grande cidade. Não imaginas, meu rico, que viver é aquele! Ali não falta nada; é pedir por boca. Corridas, bailes, teatros, cafés, parties de plaisir, é uma cousa ideal, é um sonho, é o chic... É verdade que os cobres não se conservam muito tempo na algibeira. Ainda bem o correspondente não acaba de entregar os mil francos, já eles correm pela porta fora; mas vive-se. Mas, como ia dizendo, quando cheguei à Corte, a primeira notícia que me deram foi que tu estavas fazendeiro. Custou-me a acreditar. Tanto teimaram, que eu quis vir examinar a cousa com os meus próprios olhos. Parece que é exato.

- É - respondeu Amaro -. Bem sabes que eu estou acostumado a isto; aqui fui educado, e, apesar de ter estado algum tempo fora, creio que em nenhuma parte estarei tão bem como aqui.

- O hábito é uma segunda natureza - disse sentenciosamente Marcondes.

- É verdade - retorquiu Amaro -. Dou-me bem, e não acho que a vida seja má.

- Que a vida seja má? Em primeiro lugar, não está provado que isto seja vida; é vegetação. Comparo-te a um pé de café; nasceste, cresceste, vives, dás fruto, e morrerás na perfeita ignorância das cousas da vida... Para um rapaz da tua idade, que é inteligente, e possui dous mil contos, semelhante viver equivale a um suicídio. A sociedade exige...

A conversa foi interrompida pelo jantar, que livrou ao fazendeiro e ao leitor de um discurso de Marcondes. Na academia o jovem bacharel era conhecido pela alcunha de perorador, graças à mania que ele tinha de discursar a propósito de tudo. Amaro ainda se lembrava da arenga que Marcondes pregou a um bilheteiro de teatro por uma questão de preço de bilhete.

II

A maçada estava apenas adiada.

Durante o jantar a conversa versou sobre as recordações dos tempos acadêmicos, e as novidades mais frescas da corte. No fim do jantar Marcondes consentiu em ir ver os engenhos e algumas obras da fazenda, em companhia de Amaro e do professor público da localidade, que, estando em férias de Natal, fora passar alguns dias com o jovem fazendeiro. O professor tinha a mania de citar os usos agrícolas dos antigos a propósito de cada melhoramento moderno, o que provocava um discurso de Marcondes e um bocejo de Amaro.

Chegou a noite, e o professor foi deitar-se, menos por ter sono que por fugir às perorações de Marcondes. Este e Amaro ficaram sós na sala de jantar, para onde veio café e charutos, e entraram ambos a conversar de novo sobre os tempos da academia. Cada um deles deu notícia dos companheiros de ano, os quais andavam todos dispersados, uns juízes municipais, outros presidentes de província, outros deputados, outros advogados, muitos inúteis, entre os quais o jovem Marcondes, que dizia ser o homem mais feliz da América.

- E a receita é simples - dizia ele a Amaro -; deixa a fazenda, faze uma viagem, e verás.

- Não posso deixar a fazenda.

- Por quê? Não és bastante rico?

- Sou; mas enfim, a minha felicidade é esta. Demais, eu aprendi com meu pai a não deixar a realidade pelo incógnito; o que eu não conheço pode ser muito bom; mas se o que eu tenho é igualmente bom, nada de arriscá-lo para investigar o desconhecido.

- Bela teoria! - exclamou Marcondes pondo no pires a xícara de café que ia levando à boca -; desse modo, se o mundo pensasse sempre assim, ainda hoje vestíamos as peles dos primeiros homens. Colombo não teria descoberto a América; o capitão Cook...

Amaro interrompeu esta ameaça de discurso, dizendo:

- Mas eu não quero descobrir nada, nem imponho os meus sentimentos como opinião. Estou bem; por que motivo irei eu agora ver se encontro melhor felicidade, arriscando-me a não encontrá-la?

- És um carrança! Não falemos nisto.

Cessou, com efeito, a discussão. Entretanto, Marcondes, ou de propósito, ou por vaidade - talvez ambos os motivos -, entrou a contar a Amaro as suas intermináveis aventuras no país e no estrangeiro. A narrativa dele era uma mistura de história e de fábula, de verdade e de invenção, que entreteve largamente o espírito de Amaro até alta noite.

Marcondes conservou-se na fazenda da Soledade cerca de oito dias, e jamais cessou de conversar acerca do contraste que oferecia aquilo que ele chamava vida com o que lhe parecia simples e absurda vegetação. O caso é que no fim de oito dias tinha conseguido que Amaro fosse viajar à Europa com ele.

- Quero obsequiar-te - dizia Amaro a Marcondes.

- Hás de agradecer-me - respondia este.

Marcondes foi para a Corte, esperou pelo jovem fazendeiro, que daí a um mês aí se achou, tendo entregue a fazenda a um velho amigo de seu pai. No primeiro paquete embarcaram os dous colegas da academia, caminho de Bordéus.

III

Importa-nos pouco, e mesmo nada, o saber da vida que passaram os dous viajantes na Europa. Amaro, que tinha tendências sedentárias, apenas chegou a Paris aí ficou, e como Marcondes não desejava passar além, não o importunou por mais.

Uma capital como aquela tem sempre que ver e admirar: Amaro ocupou-se com o estudo da sociedade em que vivia, dos monumentos, dos melhoramentos, dos costumes, das artes, de tudo. Marcondes, que tinha outras tendências, tratou de levar o amigo para o centro dos que ele chamava prazeres celestes. Amaro não resistiu, e foi; mas tudo cansa, e o fazendeiro não encontrou em nada daquilo a felicidade que o amigo lhe anunciara. No fim de um ano, Amaro determinou voltar para a América, com grande desgosto de Marcondes, que em vão procurou retê-lo.

Voltou Amaro aborrecido com ter gasto um ano sem vantagem alguma, a não ser o ter visto e admirado uma grande capital. Mas a felicidade que ele devia ter? Essa nem por sombra.

- Fiz mal - dizia ele consigo - em ter cedido aos conselhos. Vim em busca do desconhecido. É uma lição que me há de aproveitar.

Embarcou, e chegou ao Rio de Janeiro, com grande alegria no coração. O seu desejo era seguir logo para a fazenda da Soledade. Mas lembrou-se de que existiam na Corte algumas famílias da amizade da sua, a quem cumpria ir falar antes de partir para o interior.

"Quinze dias é bastante", pensou ele.

Meteu-se num hotel, e logo no dia seguinte começou a romaria das visitas.

Uma das famílias a quem Amaro visitou era a de um fazendeiro de Minas, que em virtude de vários processos que teve por motivo de relações comerciais viu reduzidos os seus bens, e mudara-se para a Corte, onde vivia com a fortuna que lhe restava. Chamava-se Carvalho.

Aí achou Amaro, como fazendo parte da família, uma moça de vinte e cinco anos, de nome Antonina. Era viúva. Estava em casa de Carvalho, porque este fora íntimo amigo do pai dela, e como este já não existisse, e ela não quisesse viver só, depois de viúva, Carvalho recebeu-a em casa, onde era tratada como filha mais velha. Antonina tinha alguma cousa de seu. Era prendada, espirituosa, elegante. Carvalho admirava sobretudo a sua penetração de espírito, e não cessava de elogiar-lhe essa qualidade, que para ele era suprema.

Amaro Faria foi lá duas vezes em três dias, como simples visita; mas no quarto dia sentiu já em si uma necessidade de lá voltar. Se tivesse partido para a fazenda era possível que não lhe lembrasse mais nada; mas a terceira visita produziu outra, e outras, até que no fim de quinze dias, em vez de partir para a roça, Amaro dispunha-se a residir largo tempo na Corte.

Estava namorado.

Antonina merecia ser amada por um rapaz como Faria. Sem ser deslumbrantemente formosa, tinha umas feições regulares, uns olhos ardentes, e era muito simpática. Gozava de geral consideração.

O rapaz era correspondido? Era. A jovem viúva correspondeu logo ao afeto do fazendeiro, com certo ardor que aliás o mancebo partilhava.

Quando Carvalho desconfiou do namoro, disse a Amaro Faria:

- Já sei que você tem namoro cá em casa.

- Eu?

- Sim, você.

- Pois sim, é verdade.

- Não há nada de mau nisto. Eu apenas quero dizer-lhe que tenho olho vivo, e nada me escapa. A rapariga merece.

- Oh! Se merece! Quer saber de uma cousa? Eu já abençoo aquele maldito Marcondes que me arrancou lá da fazenda, pois que eu venho achar aqui a minha felicidade.

- Então é decidido?

- Se é! Pensando bem, eu não posso deixar de casar-me. Quero ter uma vida calma, é o meu natural. Achando uma mulher que não exija modas nem bailes estou contente. Creio que esta é assim. Além disso é bonita...

- E mais que tudo discreta - acrescentou Carvalho.

- É o caso.

- Bravo! Posso avisá-la de que...

- Toque-lhe nisso...

Carvalho trocou estas palavras com Amaro numa tarde em que este lá jantou. Na mesma noite, quando Amaro se despediu, disse-lhe Carvalho em particular:

- Toquei-lhe naquilo: a disposição é excelente!

Amaro foi para casa disposto a fazer no dia seguinte a sua proposta de casamento a Antonina.

E, com efeito, no dia seguinte apareceu Amaro em casa de Carvalho, como costumava, e aí, em conversa com a viúva, perguntou-lhe francamente se queria casar com ele.

- Ama-me então? - perguntou ela.

- Deve tê-lo percebido, porque eu também percebi que sou amado.

- É - disse ela com a voz um pouco trêmula.

- Aceita-me por marido?

- Aceito - disse ela -. Mas repita que me ama.

- Cem vezes, mil vezes, se quer. Amo-a muito.

- Não será um fogo passageiro?

- Se eu empenho a minha vida inteira!

- Todos a empenham; mas depois...

- Começa então por uma dúvida?

- Um receio natural, um receio de quem ama...

- Não me conhece ainda; mas verá que eu digo a verdade. É minha, sim?

- Perante Deus e os homens - respondeu Antonina.

IV

Estando as cousas assim tratadas, não havendo obstáculo algum, fixou-se o casamento para dali a dous meses.

Amaro já abençoava o haver saído da fazenda, e nesse sentido escreveu uma carta a Marcondes agradecendo-lhe a tentação que exercera nele.

A carta terminava assim: "Mefistófeles do bem, eu te agradeço as tuas inspirações. Na Soledade havia tudo, menos a mulher que agora encontrei".

Como se vê, não aparecia a menor sombra no céu da vida do nosso herói. Parecia impossível que alguma cousa viesse turvá-lo.

Pois veio.

Uma tarde, entrando Amaro Faria para jantar, achou uma carta com o selo do correio.

Abriu-a e leu-a.

A carta dizia isto:

Uma pessoa que o viu há dias no Teatro Lírico, num camarote da segunda ordem, é quem escreve esta carta.
Há quem atribua o amor a simpatias elétricas; não tenho nada com essas investigações; mas o que me acontece faz crer que os que adotam aquela teoria tenham razão.
Era a primeira vez que o via, e logo, sem saber como, nem por que razão, senti-me dominada pelo seu olhar.
Passei uma noite horrível.
O senhor estava ao pé de duas senhoras, e conversava ternamente com uma delas. É sua noiva? É sua mulher? Não sei; mas seja o que for, bastou-me vê-lo assim, para odiar o objeto das suas atenções.
Talvez que haja loucura neste passo que dou; é possível, porque eu perdi a razão. Amo-o doudamente, e bem quisera poder dizer-lhe em face. É o que nunca farei. Os meus deveres obrigam-me a esta reserva; estou condenada a amá-lo sem confessar que o amo.
Basta porém que o senhor saiba que há uma mulher, entre todas as desta capital, que apenas o vê estremece de júbilo e de desespero, de amor e de ódio, por não poder ser sua, unicamente sua.
Ardia por fazer-lhe esta confissão; agora que a fiz, adeus para sempre.

Amaro Faria leu e releu esta carta. Não conhecia a letra, nem podia imaginar quem fosse a autora. Soube apenas o que lhe dizia a carta; nada mais.

Passado porém esse primeiro movimento de curiosidade, o fazendeiro da Soledade guardou a carta, e foi passar a noite em casa de Carvalho, onde Antonina o recebeu com a ternura do costume.

Amaro quis referir a aventura da carta; mas receando que um fato tão inocente pudesse causar infundados ciúmes à futura esposa, não disse palavra a esse respeito.

Daí a dous dias nova carta o esperava.

Desta vez Amaro abriu a carta apressadamente, por ter visto que a letra era a mesma.

O romance começava a interessá-lo.

Dizia a carta:

Foi inútil o meu protesto. Quis deixar de escrever-lhe mais; apesar de tudo, sinto que não posso deixar de fazê-lo. É uma necessidade fatal...
Ah! Os homens ignoram quanto esforço é preciso a uma mulher para conter-se nos limites do dever.
Hesitei muito em escrever-lhe a primeira carta, e esta mesmo não sei se lha remeterei; mas o amor triunfou e triunfará sempre, porque eu já não vivo senão pela sua lembrança! De noite e de dia, a todas as horas, em todas as circunstâncias, a sua pessoa está sempre presente ao meu espírito.
Sei o seu nome, sei a sua posição. Sei mais que é um homem de bem. O senhor é que não sabe quem eu sou, e pensará ao ler estas cartas, que eu ando em busca de um romance que me rejuvenesça o coração e as feições. Não; sou moça, e posso afirmar que sou bela. Não é porque mo digam; poderão querer lisonjear-me; mas o que não é lisonja é o murmúrio de admiração que eu ouço apenas entro numa sala ou passo em alguma rua.
Desculpe se lhe falo de mim com esta linguagem.
O que importa saber é que eu o amo perdidamente, e que a ninguém mais pertenço, nem pertencerei.
Uma carta sua, uma linha, uma lembrança, para que eu tenha uma relíquia e um talismã.
Se quiser fazer esta graça em favor de uma mulher desgraçada, escreva a P. L., e mande pôr no correio, que eu lá mandarei buscar.

Adeus! Adeus!

Amaro Faria não estava acostumado a romances destes, nem eles são comuns na vida.

A primeira carta produzira-lhe uma certa curiosidade, que aliás passou; mas a segunda já lhe produzira mais; sentia-se atraído para o misterioso e o desconhecido, isso a que ele fugira sempre, contentando-se com a realidade prática das cousas.

"Devo escrever-lhe?", perguntava ele consigo. "É positivo que esta mulher ama-me; não se escrevem cartas assim. É bonita, porque o confessa sem medo de prová-lo algum dia. Mas devo escrever-lhe?"

Nisto batem palmas.

A+
A-