Conto

O Caminho de Damasco

1871

VIII

De mal a pior

Não é bom brincar com fogo. Jorge conheceu dentro de pouco tempo esta verdade comezinha; ardeu na chama de que tão pouco caso fizera.

Mas esse fogo, bom é que se saiba, não era o que purifica; o amor de Jorge não fora aceso no céu. Era fogo da terra ou do inferno; paixão ardente, voluptuosa, insensata - mistura de capricho, sensualidade e loucura.

A situação, porém, tinha mudado. Jorge percebeu que o médico o tratava com extrema frieza.

- Ela contou-lhe tudo - disse ele consigo.

Procurou indagar a verdade, mas como? Podia arrancá-la à própria moça, mas ela não lhe dava ocasião para isso. Não o recebia, quando estava só; falava-lhe em presença do marido.

Jorge indagava um meio de resolver a crise em que se achava o seu espírito. A intolerância das paixões criminosas revelou-se nele com toda a força; Jorge exprobrava a prima, odiava o primo; odiaria o mundo inteiro, se o mundo inteiro lhe opusesse um veto à sua lastimável ambição.

Um domingo, estando no seu quarto a revolver estas ideias no espírito, apareceu-lhe à porta o padre Barroso. Levantou-se para ir falar-lhe. O padre encaminhou-se para uma cadeira. Franziu o rosto severo e os olhos torvos.

Jorge quis gracejar do aspecto do padre; mas este o interrompeu dizendo:

- Jorge, não venho para rir, mas para exortar, e, se preciso for, castigar. Não se admire; eu posso castigá-lo referindo tudo a seu pai, que é um homem honesto. A mansidão é apenas a crosta do meu caráter; no âmago, está a justa indignação contra tudo o que ofende a moral e a virtude.

- Mas eu já sou outro...

- Não - disse o padre -, está pior do que estava. Antes nunca se emendasse.

Jorge compreendeu que o padre aludia à sua atual paixão, e no fundo da consciência confessou que realmente a emenda, naquele caso, era pior que o soneto.

O padre esteve alguns instantes silencioso.

- Sei tudo - disse ele.

- Tudo, o quê?

- Sei que o senhor ousou levantar olhos para uma pessoa que devia merecer-lhe todo o respeito. Receio ter sido eu a causa involuntária disto, mas o seu ato não se purifica ainda assim: fica sempre infame! Ela contou-me tudo, e pediu-me conselho. Disse-lhe que referisse tudo ao seu marido. Não quis; era envergonhá-lo sem necessidade, disse ela. Curvei-me à sua opinião; mas eu tinha a minha, e ouvia a consciência; contei-lhe tudo.

- O senhor! - exclamou Jorge, levantando-se de súbito.

- Eu, sim; pois que tem? - redarguiu o velho com placidez -. Entendi que era o meu dever; escutei a minha consciência.

Jorge mordia os beiços, cheio de cólera.

O padre Barroso continuou:

- Ao mesmo tempo, pedi-lhe que não fizesse escândalo; primeiramente, por si e por ele; depois, por seus pais que são duas honradas criaturas. A sua pessoa não pesou nada neste pedido. Prometeu e cumpriu; limitou-se a desprezá-lo.

- Mas enfim? - disse Jorge com um gesto de impaciência.

- Ela não aprovou o meu passo, a princípio; receou que o conhecimento da verdade perturbasse a sua paz doméstica e a felicidade de seus tios. Mas quando eu lhe afiancei, e ela via, que nada disso acontecia, agradeceu-me a iniciativa. Bem vejo que isso o mortifica; mas tenha paciência. Clarinha é uma moça digna de ser adorada como um anjo; reúne todas as virtudes de uma senhora. Perdeu o senhor aquele tesouro... sim, posso dizê-lo agora, já que o sabe; perdeu-o, porque ela o amava em silêncio e o senhor nada viu, tão cego andava aí por esse mundo de amores comprados, e fúteis prazeres.

Isto era revolver o punhal na ferida. Jorge estava humilhado e irritado. Quis falar, mas o padre não lho consentiu.

- Venho pois pedir-lhe - disse ele -, ou melhor, venho intimá-lo para que não volte à casa de sua prima, e que a esqueça. Há de fazer isto quer queira quer não queira. Afirmo-lhe que estou disposto a tudo para defendê-la.

- Defendê-la? - disse afinal Jorge -. Mas ela não precisa de defesa: eu não lhe faço nenhum mal. Tenho eu culpa se a amo?

O padre interrompeu-o.

- Não falemos de amor, falemos de dever. Está disposto a não voltar lá, a não pensar mais nela?

- Pois bem - disse Jorge -; estou disposto a não ir lá; quanto a pensar nela...

- Filho - tornou o padre, com brandura -; também se peca por pensamentos. Apague-a da sua memória, e será melhor que tudo. Quer um conselho?

- Qual?

- Vá para fora algum tempo. Depois, estou certo de que virá abraçar-me; porque saberá então de que abismo o salvei.

IX

Ida e regresso

A missão do padre irritou o jovem namorado; mas algumas horas de reflexão bastaram para que ele visse realmente a inutilidade dos seus esforços. Tinha tudo e todos contra si; era uma luta de antemão condenada.

Ao mesmo tempo a ideia de que a prima o amara, e o despeito de a não haver compreendido vinham lançar no espírito de Jorge um novo gérmen de desgosto.

O mais prudente era abandonar a empresa.

A vaidade, porém, meteu-se no meio, e este grande motor das ações humanas pode muita vez mais que todas as razões de consciência ou impulsos de coração. Jorge perguntou a si mesmo se conviria abater as armas diante do perigo, só porque era grande, e confessar uma dessas aberrações das sociedades polidas, julgava mais vergonhoso que tudo mais. A vaidade respondeu que não. Mas como a vaidade pedia uma cousa, e a realidade indicava outra, Jorge achou um meio-termo, e adotou justamente a ideia do padre.

"Em lhe constando que eu me retiro por causa dela", pensou o moço, "que vou para fora abafar a minha dor, há de crer nela e a minha causa ganhará com isso, porque ela já me amou, e não há de ter esquecido esse tempo."

Jorge saiu da Corte no fim de alguns dias, depois de ter obtido uma licença do emprego. Alegou ao pai que estava sofrendo de fraqueza e precisava de restaurar as forças. Aguiar não lhe deu muito crédito ao pretexto; mas o padre teve meio de fazer com que o comendador e a mulher aceitassem as razões do filho.

- Vá, meu filho - disse o padre na véspera da partida, vejo que me ouviu e que a voz da sua consciência ainda não estava extinta.

Pobre padre! Se ele soubesse que isto era apenas uma arma! Um meio de tornar interessante o namorado repelido!

Jorge partiu.

- Diga-me cá, padre; acredita que meu filho esteja definitivamente curado?

A esta pergunta do comendador, que se preparava para jogar o gamão, na noite do dia em que Jorge partira, respondeu o velho Barroso:

- Creio que sim; estava muito mal; mas o coração é bom; emendou-se; respondo por ele.

Clarinha, que naqueles últimos tempos parecia mais melancólica que de costume, quase ficou alegre com a partida do primo. A sua afeição ao marido redobrou então de intensidade, e a causa disto era mais que tudo a inalterável confiança que o médico mostrara durante os acontecimentos esboçados acima.

A moça consultou o coração; nada havia em relação ao primo. Minto; havia alguma cousa; havia uma sombra de desgosto, uma lembrança amarga, que o coração honesto da esposa não poderia perdoar. A moça comparou a afeição respeitosa do marido, os carinhos de que a cercava, com a fria e criminosa paixão do primo, e a comparação foi toda em favor do médico.

Nestes termos estavam as cousas, quando o Dr. Marques adoeceu gravemente. Desde os primeiros dias a moléstia revelou logo o seu caráter mortal. Longo foi o padecimento, talvez ainda maior no espírito de Clarinha, a quem uma voz secreta dizia que ia perder o consorte. A fim de a prepararem melhor para o golpe, foi necessário dizer-lho. Clarinha teve coragem para ouvir a verdade, mas era evidente a sua dor profunda. Aguiar e a mulher foram para lá; o padre acompanhou o enfermo com a assiduidade que lhe permitiam a sua idade e os seus trabalhos.

Um dia, porém, quando menos se esperava, apareceu Jorge. Soubera da moléstia do primo, e correra a toda a pressa à Corte. Foi a explicação que deu, mas não foi a verdadeira. A verdadeira era que as saudades o ralavam.

Quando chegou à cidade, soube da moléstia do médico; foi a casa, onde não achou a família; mas soube então que a situação do enfermo era grave.

Correu para lá.

O espetáculo influiu no ânimo do estroina, mais do que ele pensara. Junto da cama do enfermo estava a moça, triste, mas resignada, indiferente ao que se passava em torno dela.

O doente olhou para Jorge e conheceu-o.

Estendendo-lhe a mão descarnada e trêmula, que o primo apertou, estendendo-a depois à sua prima, Clarinha não viu o gesto do moço, ou não quis amargurar a alma do doente. Este abriu nos lábios um ligeiro sorriso.

Jorge retirou-se.

A doença de Marques era mortal, como disse; os médicos davam-lhe apenas cinco ou seis dias de existência. O próprio doente conhecia o seu estado e preparava-se para morrer.

Este espetáculo, porém, por mais triste que fosse, não pôde abafar no espírito de Jorge a influência da moça. Mas então começou para ele uma sensação nova. A presença da morte como que lhe ia purificando a paixão. Ao ver a pobre esposa quase viúva, toda entregue aos cuidados de acompanhar até o último suspiro o companheiro de sua vida; ao contemplar a dedicação e zelo com que o servia, as lágrimas silenciosas que derramava, as vigílias, as palavras de consolação, os afagos, tudo isso como lhe acordou uma fibra adormecida do coração, e o rapaz renasceu em si a casta flor dos dezoito anos.

Algumas vezes, cabia-lhe fazer quarto ao doente, e nessas ocasiões achou-se muita vez a sós com a prima. Ajudavam-se mutuamente nos cuidados que o enfermo exigia; mas quando este fechava os olhos para dormir, ficavam ambos silenciosos, ela com os olhos pregados no marido, ele com os olhos nela.

Não foi sem custo, ainda assim, que a moça consentiu na presença do primo; mas o tio insistiu e foi necessário ceder.

O padre também não viu com bons olhos a presença do rapaz; mas foi este mesmo quem lhe disse, logo no dia seguinte àquele em que chegara:

- Há de reparar na minha estada aqui.

- Sim - disse o padre.

- Juro-lhe que...

- Não jure nada - tornou o padre -; respeite a morte; é só o que lhe peço.

A última hora chegou enfim. Marques expirou nos braços da esposa. O desespero e as lágrimas da mísera viúva faziam cortar o coração; todos tiveram força para consolá-la; Jorge não a teve; saiu da casa e só voltou no dia seguinte.

X

O caminho de damasco

Três meses depois, estando o padre Barroso em casa, apareceu-lhe Jorge. Vinha alegre e respeitoso como nunca.

- Sr. padre - disse ele -, venho alegre, e posso ir daqui triste. Tudo depende do senhor.

- De mim?

- Do senhor.

- Vejamos.

Jorge sentou-se.

- Disse-lhe uma vez - começou ele - que estava curado das minhas loucuras.

- É verdade.

- Mentia.

- Fez mal.

- Mentia, Sr. padre. Que quer? Eu supunha então que os conselhos da razão eram apenas ruins preconceitos, e que eu só tinha razão contra todos. Agora, Sr. padre, afirmo-lhe que venho curado.

O padre sorriu.

- Bem vê - disse ele - que o senhor mesmo me dá o direito de não acreditar.

- Sei, mas eu espero convencê-lo desta vez - . E continuou:

- Quando eu adotei a resolução de ir para fora, levava ainda um pensamento mau no coração. Aparentemente cedia aos seus conselhos; mas, no fundo da minha alma, era guiado por um interesse. Voltei inopinadamente, porque a lembrança de... da pessoa que o senhor sabe, me dominava o espírito.

- Adivinhei-o - observou o padre.

- Mas quando cheguei - continuou Jorge -, quando vi aquela divina criatura, aflita, melancólica, junto de seu marido quase expirante, a prodigalizar-lhe todos os carinhos que a natureza, que a religião lhe inspiravam, quando aquele solene espetáculo me apareceu aos olhos, posso jurar-lhe, Sr. padre, que nesse momento todo o meu passado se desvaneceu e que um homem novo começa a palpitar em mim.

"Quê!" - disse consigo o velho -; "será este o mesmo Jorge!"

Jorge continuou:

- Não lho disse então; quis ver se me não enganava; se realmente amava aquela moça com o fervor e a pureza que ela merece. Lá vão três meses; sinto ainda hoje o mesmo que então sentia... Amo-a, e peço-lhe que interceda por mim.

- Quer então? - perguntou o padre.

- Casar com ela.

- Deveras?

- Juro-lho!

O padre levantou-se e abriu os braços ao moço.

- Muito bem! - disse ele -. Muito bem. Conte comigo, Jorge! Eu serei o advogado da sua causa. Bem dizia eu, ainda há coração nesse peito. Nem tudo estava perdido...

Jorge correspondeu a esta efusão do velho amigo, contando-lhe todas as suas esperanças e incertezas; disse-lhe também que receava não ser atendido.

- Por quê?

- Eu sei! Ela talvez me não perdoe o que lhe fiz...

- Há de perdoar - disse o padre -; não o amará talvez; mas amá-lo-á mais tarde. Faça o senhor por si... deixe tudo a Deus, que ama os arrependidos.

Jorge saiu da casa do padre Barroso entre receoso e esperançado. Confiava porém no velho padre, e sabia a influência que ele tinha no ânimo da moça. Demais, seu pai e sua mãe, quando conhecessem a situação, influiriam em favor dele.

Não queria Jorge um casamento sem que o precedesse a aliança do coração; mas o que lhe parecia essencial era convencer a prima de que ele desejava ser amado.

Amá-lo-ia ela depois? There is the rub, como diz Hamlet.

Jorge foi direito para casa. Em caminho, encontrou alguns amigos. Todos eles se espantaram da mudança do companheiro.

- Adeus, anacoreta! - dizia-lhe um.

- Até! - exclamava outro a alguma distância.

- Por quê?

- Estás pálido. Já sei; amores...

Alguns - os que lhe deviam algumas somas - passavam de largo. Jorge nem os via; um só pensamento o levava: a moça.

Não admira, pois, que a mesma dama, já vista de relance no primeiro capítulo desta história, passasse por ele, e o cumprimentasse sem que Jorge tirasse o chapéu. A dama sentiu-se ferida no seu amor-próprio, e à noite, entre dous conhecidos, no Alcazar, rezou uma triste oração pelo ex-estroina.

- Lembra-te - disse um dos conhecidos -, lembra-te que foi ele quem te deu a vitória em que andas.

- Águas passadas não movem moinhos - respondeu filosoficamente a dama -. Desse o que desse, é um grosseirão.

O padre cumpriu a sua promessa; foi ter com Clarinha. A bela viúva recebeu o seu velho amigo com a efusão de uma alma verdadeiramente afetuosa. Havia já uma semana que ele lá não ia; supondo que estaria doente, ia mandar lá.

- Felizmente apareceu - concluiu ela.

- Doente não estou - disse o padre -; pelo contrário, nunca estive tão bom de saúde. Sabe por quê?

- Por quê?

- Porque estive ontem com seu primo Jorge.

Clarinha não respondeu.

- Está salvo, está curado, está homem de bem. Só lhe pesa uma cousa: é que você lhe não perdoasse, Clarinha. Há de perdoá-lo.

- Perdoo-lhe tudo.

- Não é assim; há de perdoá-lo sinceramente, com efusão, porque ele está verdadeiramente arrependido, e só precisa do seu perdão para ser feliz como era, como devia ser ainda hoje se não fora sua má cabeça. Perdoa-lhe sim!

- Bem sabe - disse Clarinha - que eu não posso desobedecer-lhe. Dou-lhe o perdão que me pede.

- De coração.

- De coração.

- Trata-se - disse o padre - de salvar uma alma. Qualquer recusaria intervir num assunto destes; eu sou sacerdote; o meu dever é contribuir para a cessação do pecado. Jorge está regenerado; mas qualquer cousa pode pervertê-lo outra vez e para sempre.

Clarinha adivinhou o resto.

- Há três meses que morreu meu marido - interrompeu a moça -; dê-me o tempo necessário para chorar o melhor dos homens. Quanto a Jorge, é uma alma que se não salva mais. Perdoei-lhe; eis tudo.

A moça conservou-se inflexível nesta resolução. Jorge não soube do resultado da conversa do velho sacerdote, porque este não julgou acertado comunicar-lhe. Era talvez um resto de melindre. Em todo caso, procurou consolá-lo.

O velho Aguiar insistia para que a sobrinha viesse morar com ele; ela não quis, seria estar perto do primo.

Jorge, entretanto, não perdeu ocasião de a encontrar e ver. A presença, o respeito, as provas de dedicação, a vida exemplar do moço, e além do mais, certa reminiscência que ficara no coração da moça, tudo isso fez com que se precipitasse o desenlace natural da situação.

Um ano depois da morte do Dr. Marques, casavam-se dous primos. A notícia não causou grande espanto na sociedade equívoca em que Jorge educara a sua mocidade.

- Meio perdido já estava ele - disse galhofeiramente a dama a quem ele acompanhara ao Ginásio na noite que lá o viu o comendador.

Quem o casou foi o padre Barroso. Não se pode imaginar a alegria do bom velho. Parecia aquilo obra sua. E era, na verdade.

Um mês depois, estando ele em casa de Jorge, contou este a impressão profunda que recebera nos cinco dias em que assistira à agonia do médico.

- Foi só então - concluiu ele - que eu comecei a amar.

O padre sorriu.

- Nihil sub sole novum - disse ele -. Há dezenove séculos aconteceu o mesmo a um homem ilustre que perseguia os cristãos. No caminho de Damasco, uma visão o converteu. Esse homem era São Paulo. Uniu-se à melhor das noivas, a Igreja, e oxalá vocês se amem tanto, como aqueles dous se amaram. Deus me perdoará a comparação, porque amar é estar perto do céu.

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A-