Conto

O Caminho de Damasco

1871

O caminho de Damasco *

Capítulo primeiro

Três amigos

Eram duas horas da tarde de um dia de junho, dia de magnífico inverno, nem frio, nem chuva, nem sol. Nem sol, é maneira de dizer; o astro rei dominava o céu com todo o esplendor dos seus raios; mas os raios eram temperados e brandos. Não era certamente um sol para aquecer lagartixas, mas não o podia haver melhor para quem atravessasse pedestremente o campo da Aclamação.

A rua do Ouvidor tinha então o movimento do costume. Gente parada em frente ou sentada dentro das lojas, gente que descia, gente que subia, homens, senhoras, de quando em quando uma vitória ou um tilbury, tudo isso dava à principal rua do Rio de Janeiro um aspecto animado e luzido. Viam-se aqui e ali alguns deputados, trocando notícias políticas ou conquistando as senhoras que passavam, cousa muito mais deliciosa que uma discussão a respeito do orçamento da guerra, assunto em que, nesse momento, estava falando o respectivo ministro na Câmara. Também ali estava uma grande parte da áurea juventude - la jeunesse dorée -, comentando o acontecimento do dia ou encarecendo a beleza da moda. Estranharia aquela designação quem reparasse que entre os rapazes havia também algumas suíças grisalhas e outras totalmente brancas. Mas essas suíças podiam responder-lhe que a mocidade não é um aspecto, mas um fato interior, e que o gelo pode cobrir a cumeada da serra sem descer à planície. Planície, neste caso, é sinônimo de coração.

Perto da rua da Quitanda, entre a livraria Garnier e o escritório do Jornal do Commercio, três moços elegantemente vestidos trocavam algumas últimas palavras. Um deles tinha de seguir para baixo, outro, para cima, e o terceiro ia entrar num tilbury, que o estava esperando. O primeiro usava suíças pretas; o segundo, a barba toda; o terceiro apenas tinha um bigode castanho esmeradamente encaracolado.

- Está assentado - disse o das suíças -, às dez horas à porta do Alcazar.

- Quem chegar primeiro, espera - observou o da barba toda.

- Sim - tornou o primeiro -, mas não é bom que, fiado nisso, algum de vocês se demore muito.

O do bigode aprovou esta emenda, mas acrescentou que pedia alguma exceção para si.

- É-me necessário ter cuidado com a velha - disse ele.

O das suíças abanou a cabeça com impaciência.

- Realmente, Aguiar, não sei o que quer dizer essa tua obediência passiva. És um homem feito, e vives como uma freira!

O da barba toda, que conhecia bem o profundo abismo que mediava entre o amigo e uma freira, não pôde deixar de sorrir a este reparo do rapaz das suíças, aliás tão informado como ele das façanhas de Aguiar.

Aguiar explicou como pôde a situação em que se achava para com a velha, e de novo prometeram todos acharem-se à porta do Alcazar, às 10 horas da noite.

Justamente no momento em que iam despedir-se, entrou na rua do Ouvidor, vindo da rua da Quitanda, uma vitória puxada por um cavalo castanho e governada por cocheiro ainda rapaz, bianco vestito. O desdém com que este indivíduo ia olhando para os peões poderia fazer crer que levava no carro a rainha Cleópatra, pelo menos, ou o filho de Peleu; tal ilusão, porém, não podia durar desde que se lançasse um olhar para dentro do carro e se visse molemente recostada uma mocinha loura e magra, cujas feições pareciam vir do céu, mas cujo exterior e aparato estavam delatando o mais delicioso purgatório.

Naturalmente, as lágrimas dos pecadores eram ali cristalizadas, porque a dama trazia nas orelhas, no colo e nos dedos umas fulgentíssimas pedras com que ia mui galante e concertada. Olhava preguiçosamente para as pessoas que passavam à esquerda do carro, mas sem mover a cabeça, e com um ar tão friamente aristocrático, que justificava bem a arrogância do cocheiro e a curiosidade dos passantes.

Quando ela viu os três amigos de que há pouco falamos, sorriu e inclinou levemente a cabeça, enquanto o das suíças pretas parecia fazer um sinal convencionado. A dama respondeu com um gesto; tudo isto sem que o carro parasse.

- Bem; a Candinha está avisada - disse o das suíças -; é inútil mandar lá.

E depois de uma nova promessa, cada um dos amigos tomou a direção em que ia.

Dos três, é Aguiar o que mais nos interessa acompanhar. Vai de tilbury, mas não importa; chegaremos a tempo de entrar com ele em casa.

II

O ponto negro

Jorge Aguiar, no tempo em que se passa esta narrativa, contava os seus vinte e três anos de idade. No ano anterior, voltara de São Paulo com um diploma de bacharel na algibeira e uns amores no coração. Poderia dizer que trazia também alguma ciência jurídica na cabeça, se o meu intento não fosse uma escrupulosa fidelidade histórica. Aguiar aprendeu apenas o necessário para de todo em todo não atar as mãos aos lentes; mas o pouco que aprendeu ficou na serra de Cubatão, sem lhe deixar saudades. Os amores, ainda os trouxe até à barra do Rio de Janeiro, mas com certeza não desembarcou com eles. Também não valiam a pena; eram amores bem pouco sérios para virem acolher-se à sombra da família.

Bem desventurado seria ele se tivesse de ganhar o pão com o que aprendera na academia. Mas a fortuna, que uns dizem ser cega, naquele caso teve uma vista de lince, adivinhando que era necessário afiançar a vida a quem não era capaz de ganhá-la. A família de Jorge tinha de sobra com que lhe manter a existência e satisfazer os caprichos. Desta maneira podia ele dormir tranquilamente e acordar em paz.

Nem tudo, porém, eram rosas na existência de Aguiar. Havia um ponto negro na limpidez do céu azul. Não era o pai. O pai de Jorge tinha-lhe aquele amor cego que não vê senões no objeto querido e era a seu respeito um tanto doutor Pangloss: achava uma tal ou qual necessidade nos desvarios do rapaz. Além disso, acariciava o sonho, aliás plausível, de o ver ministro de Estado. Para isso, disse ele, era necessário dar alguns meses à vida livre; depois do quê, chamá-lo-ia à razão e buscaria encartá-lo na primeira assembleia provincial que lhe ficasse a jeito.

Tais eram os planos e sentimentos do velho Silvestre Aguiar, cuja mocidade parecia não ter sido inteiramente capuchinha.

O ponto negro era a mãe de Jorge. Dona Joaquina era uma senhora austera e respeitável, mas impertinente, rusguenta e despótica, além de ser dotada de uma energia que não dizia muito com os seus cinquenta e dous anos. Não havia memória em casa de Aguiar de que a senhora D. Joaquina estivesse algum dia calada durante uma hora inteira. Calava-se, quando dormia, mas como dormia pouco, e acordava às cinco horas da manhã, dava apenas uma escassa trégua à família.

Não se precisava ter olhos muito perspicazes para conhecer que a senhora D. Joaquina era o verdadeiro dono da casa. Silvestre pertencia àquela raça de homens pacatos para quem este mundo é uma antessala do céu. Não se irritava nunca, não conhecia o que fosse impaciência ou tédio. Amou a muitas mulheres, rezavam as crônicas, mas nenhuma lhe captou tanto afeto como "a sua gorda Pachorra".

- A natureza - dizia ele - tem rios impetuosos e plácidos ribeiros. Se todos fôssemos rios não havia ribeiros na espécie humana. É bom que haja uma e outra cousa. A Providência quis que, ao pé de uma cachoeira despenhada como a Joaquina, houvesse um regato manso como eu. Nisto é que está a harmonia.

Devo dizer que Silvestre, quando casou com D. Joaquina, não lhe conhecia a facúndia, nem a impetuosidade. E é possível que ainda nesse tempo a boa senhora não tivesse desenvolvida a vocação. Foi um namoro começado por ocasião das festas da coroação. Um parente de Silvestre deu um jantar, onde se encontraram as duas famílias, a dele e a de Joaquina. Era fama que esta moça não se casaria nunca, porque andavam já por cinco ou seis os pretendentes que ela despedira com uma rispidez anunciadora dos seus hábitos futuros. Grande foi pois a admiração dos pais, quando três meses depois, indo Silvestre pedir-lhes a mão de D. Joaquina, receberam dela uma resposta afirmativa.

- Hão de ser felizes - dizia a mãe -; ela, que até agora recusou todos os casamentos, é porque Deus lhe guardava este.

Efetivamente, foram felizes. Silvestre dava-se perfeitamente com o gênio da mulher. Dona Joaquina irritava-se às vezes com a impassibilidade do marido, e soltava contra ele os seus discursos; mas, como Silvestre não articulava sequer uma queixa ou censura, a senhora D. Joaquina acabava, como ele mesmo dizia consigo, por "meter a viola no saco".

Esta D. Joaquina pois era o ponto negro na vida de Jorge. Às dez horas, quando muito, devia o rapaz recolher-se a casa. Silvestre advogava a causa do filho. Observava que o rapaz não podia ter uma vida de freira; mas a palavra freira, tão indiferente na boca de outra pessoa, na de D. Joaquina dava um discurso de dez páginas in-fólio. O marido calava-se e a ordem da senhora D. Joaquina prevalecia.

Jorge obedeceu durante muito tempo às ordens da mãe; mas os conselhos dos amigos foram pervertendo o seu espírito reto e casto. Jorge entrou um dia às 11 horas da noite; a mãe, que até então se não deitara, veio em pessoa abrir-lhe a porta.

- Oh! Mamã! - exclamou ele, espantado.

Dona Joaquina não disse palavra, fechou a porta e subiu silenciosamente adiante dele. Foi o único lance em que deixou de falar, e realmente nunca fora mais sublime em sua vida.

Daí em diante, não ousou Jorge transgredir as ordens da mãe; mas como os passeios, teatros e festas não se podiam combinar com esta obediência, o jovem bacharel arranjou uma chave sua, e por meio dela, batia a linda plumagem.

Além disso, alcançava facilmente convite para saraus e bailes, objeto em que a boa velha consentia na ausência do filho.

Com esses e outros pretextos, que em circunstâncias especiais lhe ocorriam, conseguira o nosso Jorge Aguiar iludir a vigilância e as ordens da velha. Quem se não enganava era o pai, que o via sair muitas vezes, e enxergava a verdadeira razão dos seus numerosos convites; mas o bom Silvestre aplaudia os escrúpulos do filho e tirava deles um bom agouro para a vida política do rapaz.

III

Clarinha

Quando Jorge Aguiar chegou a casa, D. Joaquina dava as suas últimas ordens para uma grande porção de doce de coco, e tomava conhecimento da tarefa que dera de manhã a duas crias empregadas em costurar. Silvestre jogava o gamão com o padre Barroso, enquanto Clarinha tocava ao piano umas variações alemãs.

Esta Clarinha, que entra em cena sem se fazer anunciar, era uma sobrinha de D. Joaquina, e portanto prima de Jorge. Era ainda criança quando perdera a mãe; e o pai, que dous anos antes se apaixonara por uma italiana que viera ao Rio de Janeiro, com o infundado pretexto de que era cantora, acompanhou a dama dos seus pensamentos, e andava agora pela Itália em sua companhia. Tanto valia estar morto para a pobre órfã. Dona Joaquina recebeu em casa a sobrinha e tratava-a como se fora filha sua.

Tinha esta moça uma não vulgar formosura, a que dava realce um ar de profunda melancolia. A melancolia era natural; nascida para viver em tal ou qual abastança, vira o pai esbanjar os cabedais herdados, e perdera a mãe na idade em que mais precisava dela. Depois foi estouvadamente abandonada pelo pai e obrigada a receber os favores dos tios. Isto, reunido à índole da moça, fazia que raras vezes lhe assomasse aos lábios um riso prazenteiro.

Clarinha vingara-se dos golpes que lhe dava o seu mau destino, instruindo-se e aprendendo a trabalhar com uma docilidade que encantava a senhora D. Joaquina. Esta boa senhora dizia que a sobrinha havia de ser a herdeira da sua competência na arte de governar uma casa. Efetivamente era difícil achar em tão verdes anos - 18 contava ela - tanta seriedade, prudência, atividade e ordem. Os momentos vagos, dava-os a moça ao estudo da música e da língua francesa, porque o seu fim era poder lecionar algum dia, e achar nessa profissão os meios de subsistência de que viesse a carecer.

Dona Joaquina aprovava esta previsão da sobrinha, mas procurava dissipar-lhe tais receios, dizendo que enquanto ela vivesse, e ainda depois que se finasse, a sobrinha não precisaria de nada. Além disso, estava moça, e um casamento viria pô-la ao abrigo de toda a necessidade.

- Um casamento? - dizia Clarinha, com ar triste -. Isso não é para mim.

- Por quê?

- Quem quererá casar comigo?

- Quem não for tolo - dizia a boa velha -. Vejam lá se é fácil achar uma esposa como tu hás de ser!

Clarinha abanava a cabeça e ficava pensativa.

O procedimento da moça confirmava as suas disposições celibatárias. Parecia indiferente a todos os homens, não se enfeitava para ir aos bailes, quando ia a eles não dançava, raras vezes chegava à janela, e era de todo surda aos louvores que a sua beleza lhe granjeava. Usava ordinariamente roupas escuras por lhe parecerem cores tristes; os modos eram modestos e acanhados; falava pouco, e, como disse, raras vezes ria.

Estava ela a tocar piano na sala, a pedido do padre Barroso, que era doudo por música, e dizia, com aquele ar que a natureza só concede aos gamonistas intrépidos, que era bom suavizar musicalmente as derrotas do comendador Aguiar. O certo é que o dono da casa ganhava poucas partidas ao padre.

- Dous e ás - dizia o comendador, lançando os dados e batendo numa das tábulas do padre.

- Tire o cavalo da chuva! - respondeu o padre, chocalhando os dados no copo -. Agora é que vai ver o que são elas. Preciso de umas quadras.

- Homem, jogue e deixe-se de conversa.

O padre lançou os dados.

- Quadras! - disse ele.

Silvestre Aguiar coçou o nariz, enquanto o implacável padre, depois de lhe bater em duas tábulas, empalmava o lenço encarnado na mão, e assoava-se com estrépito.

- Isto sem rapé não vai - observou ele.

- O moleque ainda não viria? - disse Aguiar -. Não sei que descuido foi este meu de não ter comprado ontem.

Clarinha cessou de tocar; ia a levantar-se para saber se efetivamente o moleque não tinha voltado, mas o tio disse-lhe que não era preciso.

Nesse momento, entrou Jorge na sala; beijou a mão ao pai, apertou a do padre Barroso, e foi cumprimentar a prima.

- Então? - disse o padre a Silvestre em voz baixa -. Por que não casam estes dous?

- Se eles quiserem, não lhe ponho dúvida - respondeu Silvestre -; mas são cousas que se não obrigam. Creio que não se namoram. Demais, o rapaz anda a desasnar-se.

- Há de me perdoar - disse o padre -, cuido que anda a perder-se. Olhe, que estes hábitos de mocidade rara vez se perdem. Coíba os desvarios de Jorge; não lhe hão de dar bom proveito.

- Eu fui o que ele vai sendo - respondeu Silvestre -, e todavia ninguém me vence em bom comportamento. Deixe estar, padre, que ele há de seguir os exemplos do pai.

Jorge trocou algumas palavras com a prima, e retirou-se para o seu aposento, enquanto a moça continuava a tocar e os dous velhos decidiam a partida.

Entrou então na sala um novo personagem: o Dr. Marques, homem de seus quarenta e quatro anos, corado, vigoroso, um tanto grisalho de barba e dos cabelos. Era o médico da família; conhecia o comendador quase desde a infância, e entretinha laços de nunca desmentida amizade. Ele e o padre eram os dous mais íntimos da casa.

- Chega a propósito - disse o padre -. Traz a caixa?

- Pois não - disse o recém-chegado depois de ir apertar a mão a Clarinha.

- Graças a Deus; venha de lá uma pitada.

- Duas, duas! - emendou Silvestre -. Há de sofrer dous ataques, um por bombordo e outro por estibordo.

Ambos os gamonistas esfregaram os dedos no lenço, e sacaram da boceta do Dr. Marques duas grossas pitadas. O padre inseria a sua em ambas as ventas, e com o lenço sacudia o pó que lhe caíra na camisa, enquanto o comendador, carregando com o dedo polegar na venta direita, introduzia toda a pitada na venta esquerda.

Marques deixou os dous velhos entregues ao gamão e dirigiu-se ao piano, na ocasião em que a moça se ia levantar para deixar a sala.

- Não quer tocar mais? - perguntou Marques.

- Tenho que fazer... - murmurou Clara em voz baixa e sem levantar os olhos.

Marques lançou um rápido olhar para os dous gamonistas, e, vendo que estavam entretidos com os dados, murmurou ao ouvido da moça:

- E a resposta?

- Deixe-me sair... - respondeu Clarinha.

E caminhando rapidamente para a porta, desapareceu da sala. Marques ficou ao pé do piano com o ar embaçado que o leitor naturalmente imagina, enquanto o padre Barroso, deitando os dados, exclamava alegremente:

- Coutadinho, comendador, coutadinho!

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