Conto

O Anjo Rafael

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das famílias, em outubro, novembro e dezembro de 1869, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

XII

Quando o coronel entrou no quarto do major achou-o muito aflito. Passeava de um lado para outro, agitado, proferindo palavras incoerentes, com o olhar desvairado.

- Que tens, Tomás?

- Ainda bem que vieste - disse o velho -; sinto-me mal; veio aqui há pouco um anjo buscar-me; disse-me que eu estava fazendo falta no céu. Creio que me vou embora desta vez.

- Deixa-te disso - respondeu o coronel -; foi caçoada do anjo; descansa, tranquiliza-te.

O coronel conseguiu fazer com que o major se deitasse. Apalpou-lhe o pulso, e sentiu-lhe febre. Entendeu que era conveniente mandar buscar um médico, e deu ordem ao criado nesse sentido.

Acalmou-se a febre do major, que conseguiu dormir um pouco; o coronel mandou preparar uma cama no mesmo quarto, e depois de ir dar parte ao doutor do que acontecera, voltou para o quarto do major.

No dia seguinte o doente levantou-se melhor; o médico, tendo chegado sobre a madrugada, não chegou a aplicar-lhe nenhum remédio, mas lá ficou para o caso de ser preciso.

Quanto a Celestina, nada soube do que havia acontecido; e acordou alegre e viva como nunca.

Mas sobre a tarde voltou a febre ao major, e desta vez de um modo violento. Dentro de pouco tempo declarou-se a proximidade da morte.

O coronel e o doutor tiveram cuidado de afastar Celestina, que não sabia o que era morrer, e podia sofrer com a vista do pai moribundo.

O major, cercado pelos dous amigos, pedia-lhes com instância que lhe fossem buscar a filha; mas eles não consentiram nisso. Então, o pobre velho instou com o doutor que não deixasse de casar com ela, e ao mesmo tempo repetiu a declaração de que lhe deixava uma fortuna. Enfim sucumbiu.

Ficou assentado entre o coronel e o doutor que a morte do major seria participada à filha depois de feito o enterro, e que este teria lugar com a maior discrição possível. Assim se fez.

A ausência do major ao almoço e ao jantar do dia seguinte foi explicada a Celestina como proveniente de uma conferência em que ele estava com pessoas de sua amizade.

De maneira que, ao passo que do outro lado da casa se achava o cadáver do pai, a filha ria e conversava à mesa como nos seus melhores dias.

Mas feito o enterro era preciso dizê-lo à filha.

- Celestina - disse-lhe o coronel -, tu vais casar brevemente com o Dr. Antero.

- Mas quando?

- Daqui a dias.

- Dizem-me isso há que tempo!

- Pois agora é de uma vez. Teu pai...

- Que tem?

- Teu pai não volta por enquanto.

- Não volta? - disse a moça -. Pois onde foi ele?

- Teu pai foi para o céu.

A moça ficou pálida ouvindo a notícia; não lhe ligava nenhuma ideia fúnebre; mas o coração adivinhava que por trás daquela notícia havia uma catástrofe.

O coronel procurou distraí-la.

Mas a moça, vertendo duas lágrimas, duas só, mas que valiam por cem, disse com profunda amargura:

- Papai foi para o céu e não se despediu de mim!

Depois recolheu-se ao quarto até o dia seguinte.

O coronel e o doutor passaram a noite juntos.

Declarou o doutor que a fortuna do major estava por trás de uma estante, na biblioteca, e que ele sabia o meio de abri-la. Assentaram os dous no meio de apressar o casamento de Celestina sem prejuízo dos atos da justiça.

Cumpria, porém, antes de tudo, arrancar a moça daquela casa; o coronel indicou a casa de uma parenta sua, para onde a levariam no dia seguinte. Assentados estes pormenores, o coronel perguntou ao doutor:

- Ora, diga-me; não crê agora que haja uma Providência?

- Sempre acreditei.

- Não minta; se acreditasse não teria recorrido ao suicídio.

- Tem razão, coronel; dir-lhe-ei até: eu era um pouco de lodo, hoje sinto-me pérola.

- Compreendeu-me bem; eu não queria aludir à fortuna que veio encontrar aqui, mas a essa reforma de si mesmo, a essa renovação moral, que obteve com este ar e na contemplação daquela formosa Celestina.

- Diz bem, coronel. Quanto à fortuna, estou pronto a...

- A quê? A fortuna é de Celestina; não deve desfazer-se dela.

- Mas podem supor que o casamento...

- Deixe supor, meu amigo. Que lhe importa ao senhor que suponham? Não tem a sua consciência, que lhe não argúi cousa nenhuma?

- É verdade; mas a opinião...

- A opinião, meu caro, não é mais do que uma opinião; não é a verdade. Acerta às vezes; outras calunia, e quer a desgraça que mais vezes calunie do que acerte.

O coronel em matéria de opinião pública era um perfeito ateu; negava-lhe a autoridade e a supremacia. Umas das suas máximas era esta: "A opinião pública é um muro em branco: aceita tudo quanto lhe escrevem em cima, quer venha da mão de um garoto, quer da de um homem de bem".

Foi difícil ao doutor e ao coronel convencer a Celestina de que deveria sair daquela casa; mas enfim alcançaram levá-la para a cidade de noite. A parenta do coronel, prevenida a tempo, recebeu-a em casa.

Arranjadas as cousas de justiça, tratou-se de realizar o casamento.

Antes porém de chegar a esse ponto tão almejado pelos dous noivos, foi preciso habituar Celestina à vida nova que começava a viver e que ela não conhecia. Educada entre as paredes de uma casa isolada, longe de todo o rumor, e sob a direção de um homem enfermo da razão, Celestina entrou num mundo que jamais sonhara, nem dele tinha notícia.

Tudo para ela era objeto de curiosidade e espanto. Cada dia trazia-lhe uma emoção nova.

Admirava a todos que, apesar da singular educação que tivera, soubesse tocar tão bem; ela tivera com efeito um mestre chamado pelo major, que desejava, dizia ele, mostrar que um anjo, e principalmente o anjo Rafael, sabia fazer as cousas como os homens. Quanto à leitura e escritura, foi ele mesmo quem lhas ensinou.

XIII

Logo depois que voltou à cidade, o Dr. Antero teve cuidado de escrever a seguinte carta aos seus amigos:

O Dr. Antero da Silva, recentemente suicidado, tem a honra de participar a V. que voltou do outro mundo, e se acha ao seu dispor no hotel de ***.

Encheu-se-lhe a sala de gente que correra a vê-lo; alguns incrédulos supuseram simples caçoada de algum homem amigo de pregar peças aos outros. Foi um concerto de exclamações:

- Não morreste!

- Pois quê! Estás vivo!

- Mas que foi isto!

- Aqui houve milagre!

- Qual milagre - respondia o doutor -; foi simplesmente um meio engenhoso de ver a impressão que causaria a minha morte; já soube quanto quisera saber.

- Oh! - disse um dos presentes -. Foi profunda; pergunta ao César.

- Quando soubemos do desastre - acudiu César -, não quisemos crer; corremos à tua casa; era infelizmente verdade.

- Que marreco! - exclamava um terceiro -. Fazer-nos chorar por ele, quando talvez se achasse perto de nós... Nunca te hei de perdoar aquelas lágrimas.

- Mas - disse o doutor-, a polícia parece que chegou a reconhecer o meu cadáver.

- Disse que sim, e eu acreditei.

- Eu também.

Nesse momento entrou na sala um novo personagem; era o criado Pedro.

O doutor rompeu por entre os amigos e foi abraçar o criado, que entrou a derramar lágrimas de contentamento.

Aquela efusão em relação a um criado, comparada à frieza relativa com que o doutor os recebera, incomodou aos amigos que ali se achavam. Era eloquente. Saíram os amigos pouco depois declarando que o contentamento de vê-lo lhes inspirava a ideia de lhe dar um jantar. O doutor recusou o jantar.

No dia seguinte, os jornais declararam que o Dr. Antero da Silva, que se julgava morto, se achava vivo e aparecera; e logo nesse dia recebeu o doutor a visita dos credores, que, pela primeira vez, viam ressuscitar uma dívida já sepultada.

Quanto ao folhetinista de um dos jornais que tratara da morte do doutor e da carta que ele deixara, encabeçou o seu artigo do próximo sábado assim:

Dizem que reapareceu o autor de uma carta com que me ocupei ultimamente. Será verdade? Se voltou não é autor da carta; se é autor da carta não voltou.

A isto respondeu o ressuscitado:

Voltei do outro mundo, e apesar disso sou o autor da carta. Do mundo de que venho trago uma boa filosofia: ter em nenhuma conta a opinião dos meus contemporâneos, e em menos ainda a dos meus amigos. Trouxe mais alguma cousa, mas isso importa pouco ao público.

XIV

Efetuou-se o casamento três meses depois.

Celestina estava outra; perdera aquele estouvamento ignorante que era o principal traço do seu caráter, e com ele as ideias extravagantes que o major lhe incutira.

O coronel assistiu ao casamento.

Um mês depois o coronel foi despedir-se dos noivos, voltava para o Norte.

- Adeus, meu amigo - disse-lhe o doutor -; nunca esquecerei o que fez por mim.

- Eu não fiz nada; ajudei a boa sorte.

Celestina despediu-se do coronel com lágrimas.

- Por que choras, Celestina? - disse o velho -. Eu volto breve.

- Sabe por que ela chora? - perguntou o doutor -. Eu já lhe disse que sua mãe estava no Norte; ela sente não poder vê-la.

- Ve-la-á, porque eu vou buscá-la.

Quando o coronel saiu, Celestina pôs os braços à roda do pescoço do marido, e disse com um sorriso entre lágrimas:

- Ao pé de ti e de minha mãe, que mais quero eu na terra?

No ideal da felicidade da moça já não entrava o coronel. Ó amor! Ó coração! Ó egoísmo humano!

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