Conto

O Anjo Rafael

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das famílias, em outubro, novembro e dezembro de 1869, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

VIII

O dia seguinte era um domingo.

O rapaz, depois de ler as notícias dos jornais e alguns artigos políticos, passou aos folhetins. Ora, aconteceu que um deles tratava precisamente do suicídio do Dr. Antero da Silva. A carta póstuma servia de assunto para as considerações galhofeiras do folhetinista.

Um dos períodos dizia assim:

Se não fosse o suicídio do homem, eu não tinha assunto ameno para tratar hoje. Felizmente lembrou-se de morrer a tempo, cousa que nem sempre acontece a um marido, nem a um ministro de Estado.
Mas morrer era nada; morrer e deixar uma carta desfrutável como a que o público leu, isso é que é ter compaixão de um escritor aux abois.
Desculpe o leitor o termo francês; vem do assunto; eu estou convencido que o Dr. Antero (que pelo nome não perca) leu algum romance parisiense em que viu o original daquela carta.
Salvo se nos quis provar que não era simplesmente um espírito medíocre, mas também um formidável tolo.
Tudo é possível.

O doutor amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no autor do artigo.

Com efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma famosa tolice.

Dera talvez uma das caixas de ferro do major para não tê-la escrito.

Era tarde.

Mas o desgosto do folhetim não foi o único; adiante encontrou um convite para uma missa por sua alma. Quem convidava para a missa? Os seus amigos? Não; o criado Pedro, que, ainda comovido com a dádiva dos cinquenta mil-réis, achou que cumpria um dever sufragando a alma do amo.

- Bom Pedro! - disse ele.

E assim como tinha tido naquela casa o primeiro amor, e o primeiro remorso, teve ali a primeira lágrima, uma lágrima de gratidão pelo fiel criado.

Chamado para almoçar, o doutor foi ter com o major e Celestina. Já então a chave do quarto ficava com ele mesmo.

Sem saber por quê, achou Celestina mais celeste que nunca, e também mais séria do que costumava. A seriedade quereria dizer que o rapaz já lhe não era indiferente? O Dr. Antero pensou que sim, e eu, na qualidade de romancista, direi que pensava bem.

Contudo a seriedade de Celestina não excluía a sua afabilidade, nem ainda o seu estouvamento; era uma seriedade intermitente, uma espécie de enlevo e cisma, a primeira aurora do amor, que enrubesce a face e cerca a fronte de uma espécie de auréola.

Como já houvesse liberdade e confiança, o doutor pediu a Celestina, no fim do almoço, que fosse tocar um pouco. A mocinha tocava deliciosamente.

Encostado ao piano, com os olhos postos na moça, e a alma embebida nas harmonias que os dedos dela desferiam do teclado, o Dr. Antero esquecia-se do resto do mundo para viver só daquela criatura que dentro de pouco tempo ia ser sua mulher.

Durante esse tempo o major passeava, com as mãos cruzadas sobre as costas, e gravemente pensativo.

O egoísmo do amor é implacável; diante da mulher que o seduzia e atraía, o moço nem tinha um olhar para aquele pobre velho demente que lhe dava mulher e fortuna.

O velho de quando em quando parava e exclamava:

- Bravo! Bravo! Assim tocarás um dia nas harpas do céu!

- Gosta de me ouvir tocar? - perguntou a moça ao doutor.

- Valia a pena morrer ouvindo esta música.

No fim de um quarto de hora, o major saiu, deixando os dous noivos na sala.

Era a primeira vez que ficavam a sós.

O rapaz não ousava reproduzir a cena da outra tarde; podia haver um novo grito da moça e tudo estava perdido para ele.

Mas os seus olhos, esquecidamente embebidos nos da moça, falavam melhor que todos os ósculos deste mundo. Celestina olhava para ele com essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem.

O doutor compreendeu que era amado; Celestina não compreendeu, sentiu que estava presa àquele homem por alguma cousa mais forte que a palavra do pai. A música cessara.

O doutor sentou-se defronte da moça, e disse-lhe:

- Casa-se comigo por vontade?

- Eu? - respondeu ela -. Certamente que sim; gosto do senhor; além disso, meu pai quer, e quando um anjo quer...

- Não zombe assim - disse o doutor -; não é culpa...

- Zombar de quê?

- De seu pai.

- Ora essa!

- É um desgraçado.

- Não conheço anjos desgraçados - respondeu a moça com uma graça tão infantil e um ar de tanta convicção que o doutor franziu a testa com um gesto de espanto.

A moça continuou:

- Bem feliz que ele é; quem me dera ser anjo como ele! É verdade que filha dele devo ser também... e, na verdade, sou também angélica...

O doutor ficou pálido, e levantou-se com tanta precipitação, que Celestina não pôde reprimir um gesto de susto.

- Ah! Que tem?

- Nada - disse o rapaz passando a mão pela testa -; foi uma vertigem.

Nesse momento entrou o major. Antes que tivesse tempo de perguntar nada, a filha correu a ele e disse que o doutor se achava incomodado.

O moço declarou achar-se melhor; mas pai e filha foram de opinião que devia ir descansar um pouco. O doutor obedeceu.

Quando chegou ao quarto atirou-se à cama e esteve alguns minutos sem movimento, mergulhado em reflexões. As palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doudo; tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.

- Coitada! Também é louca! Mas por que singular acordo de circunstâncias ambos eles estão de acordo nesta monomania celestial?

O doutor fazia esta e mil outras perguntas a si mesmo, sem achar resposta plausível. O que havia de certo é que o edifício da sua ventura acabava de esboroar-se.

Só lhe restava um recurso; aproveitar-se da licença concedida pelo velho e sair daquela casa, que parecia encerrar uma história sombria.

Com efeito, ao jantar o Dr. Antero declarou ao major que tinha intenção de ir à cidade ver uns papéis, no dia seguinte de manhã; voltaria de tarde.

No dia seguinte, logo depois do almoço, preparou-se o rapaz para ir embora, não sem ter prometido a Celestina que voltaria o mais cedo que pudesse. A moça pedia-lhe com alma; ele hesitou por um momento; mas que fazer? Era melhor fugir dali quanto antes.

Estava já pronto, quando sentiu bater-lhe à porta muito ao de leve; foi abrir; era a criada de Celestina.

IX

Esta criada, que se chamava Antônia, representava ter quarenta anos de idade. Não era feia nem bonita; tinha umas feições comuns e irregulares. Mas bastava olhá-la para ver nela o tipo da bondade e da dedicação.

Antônia entrou precipitadamente, e ajoelhou-se aos pés do doutor.

- Não vá! Sr. doutor! Não vá!

- Levante-se, Antônia - disse o rapaz.

Antônia levantou-se e repetiu as mesmas palavras.

- Que eu não vá? - perguntou o doutor -. Mas por quê?

- Salve aquela menina!

- Pois quê! Ela está em perigo?

- Não; mas é preciso salvá-la. Pensa que eu não adivinhei o seu pensamento? O senhor quer ir-se embora de uma vez.

- Não; prometo...

- Quer, e eu lhe peço que não vá... pelo menos até amanhã.

- Mas não me explicará...

- Agora, é impossível; pode vir gente; mas esta noite; olhe, à meia-noite, quando ela já estiver dormindo, eu virei aqui e lhe explicarei tudo. Mas promete que não vai?

O rapaz respondeu maquinalmente:

- Prometo.

Antônia saiu precipitadamente.

No meio daquela constante alternativa de boas e más impressões, naquele desenrolar de emoções diversas, de mistérios diferentes, era de admirar que o espírito do rapaz não ficasse abalado, tão abalado como o do major. Parece que chegou a recear de si.

Logo depois que saiu Antônia, sentou-se o doutor, e entrou a conjecturar que perigo seria aquele de que era preciso salvar a pequena. Mas não atinando com ele, resolveu ir ter com ela ou com o major, e já se preparava para isso, quando o futuro sogro lhe entrou pelo quarto.

Vinha alegre e lépido.

- Ora, guarde-o Deus - disse ele ao entrar -; é a primeira vez que o visito no seu quarto.

- É verdade - respondeu o doutor -. Queira sentar-se.

- Mas também o motivo que me traz aqui é importante - disse o velho assentando-se.

- Ah!

- Sabe quem morreu?

- Não.

- O diabo.

Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa, que fez estremecer ao doutor; o velho continuou:

- Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece?

- Parece-me que é uma felicidade para nós todos - disse o Dr. Antero -; mas como soube da notícia?

- Soube por carta que recebi hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze anos; chegou agora do Norte, e apressou-se a escrever-me para dar esta agradável notícia.

O velho levantou-se, passeou pelo quarto sorrindo, murmurando algumas palavras sozinho, e parando de quando em quando para contemplar o hóspede.

- Não acha - disse ele numa das vezes que parou -, não acha que esta notícia é a melhor festa que posso ter por ocasião de casar minha filha?

- Com efeito, assim é - respondeu o rapaz levantando-se -; mas, visto que o inimigo da luz morreu, não falemos mais nele.

- Tem muita razão; não falemos mais nele.

O doutor dirigiu a conversa para assuntos diversos; falou de campanhas, de literatura, de plantações, de tudo quanto afastasse o major dos assuntos angélicos ou diabólicos.

Finalmente saiu o major dizendo que esperava o coronel Bernardo, seu amigo, para jantar, e que teria sumo prazer em apresentar-lho.

Mas a hora do jantar chegou sem que chegasse o coronel, de maneira que o doutor ficou convencido de que o coronel, a carta e o diabo não passavam de criações do major. Devia estar convencido desde princípio; e se estivesse convencido estaria em erro, porque o coronel Bernardo apresentou-se em casa às ave-marias.

Era um homem cheio de corpo, robusto, vermelho, olhos vivos, falando apressadamente, um homem sem cuidados nem remorsos. Representava quarenta anos e tinha cinquenta e dous; vestia uma sobrecasaca militar.

O major abraçou o coronel com uma satisfação ruidosa, e apresentou-o ao Dr. Antero como um dos seus melhores amigos. Apresentou o doutor ao coronel declarando ao mesmo tempo que ia ser seu genro; e finalmente mandou chamar a filha, que não tardou muito a chegar à sala.

Quando o coronel pôs os olhos em Celestina arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; tinha-a visto pequena e achava-a moça feita, e moça bonita. Abraçou-a paternalmente.

Durou a conversa entre os quatro uma meia hora, tempo em que o coronel, com uma volubilidade que contrastava com a frase pausada do major, contou mil e uma circunstâncias da sua vida de província.

No fim desse tempo, o coronel declarou que queria falar em particular ao major; o doutor retirou-se para o seu quarto, deixando Celestina, que poucos minutos depois retirou-se também.

O coronel e o major fecharam-se na sala; ninguém ouvia a conversa, mas o criado viu que só à meia-noite saiu da sala o coronel dirigindo-se para o quarto que lhe haviam preparado.

Quanto ao doutor, apenas entrou no quarto viu sobre a mesa uma carta, com sobrescrito para ele. Abriu e leu o seguinte:

Meu noivo, escrevo-lhe para dizer que não se esqueça de mim, que sonhe comigo, e que goste de mim como eu gosto do senhor.
Sua noiva,

Celestina.

Nada mais.

Era uma cartinha de amores pouco parecida com as que se escrevem em casos tais, uma carta simples, ingênua, audaz, sincera.

O rapaz releu-a, beijou-a e levou-a ao coração.

Depois preparou-se para receber a visita de Antônia, que, como os leitores se devem lembrar, estava marcada para a meia-noite.

Para matar o tempo o rapaz abriu um dos livros que estavam sobre a mesa. Acertou de ser Paulo e Virgínia; o doutor nunca havia lido o célebre romance; o seu ideal e a sua educação o afastavam daquela literatura. Mas agora tinha o espírito preparado para apreciar páginas tais; sentou-se e leu rapidamente metade da obra.

X

À meia-noite ouviu bater à porta; era Antônia.

A boa mulher entrou com preparação; receava que o menor ruído a comprometesse. O rapaz fechou a porta, e fez com que Antônia se sentasse.

- Agradeço-lhe o ter ficado - disse ela sentando-se -, e vou dizer-lhe que perigo ameaça a minha pobre Celestina.

- Perigo de vida? - perguntou o doutor.

- Mais do que isso.

- De honra?

- Menos que isso.

- Então...

- O perigo da razão; eu receio que a pobre moça fique louca.

- Receia? - disse o doutor sorrindo tristemente -. Está certa de que ela já o não está?

- Estou. Mas pode vir a ficar, tão louca como o pai.

- Esse...

- Esse está perdido.

- Quem sabe?

Antônia abanou a cabeça.

- Deve estar, porque há doze anos que perdeu a razão.

- Sabe o motivo?

- Não sei. Eu vim para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez; era, como hoje, uma criaturinha viva, alegre e boa. Mas nunca tinha saído daqui; é provável que não tenha visto em sua vida mais de dez pessoas. Ignora tudo. O pai, que já então estava convencido de que era o anjo Rafael, como ainda hoje diz, repetia-o à filha constantemente, de maneira que ela acredita firmemente ser filha de um anjo. Tentei dissuadi-la disso; mas ela foi contar ao major, e este ameaçou-me de mandar-me embora se eu inculcasse más ideias à filha. Era má ideia dizer à menina que ele não era o que dizia e simplesmente um desgraçado doudo.

- E a mãe dela?

- Não conheci; perguntei por ela a Celestina; e soube que ela também a não conhecera, pela razão de que não tivera mãe. Referiu-me ter sabido, por boca de seu pai, que ela viera ao mundo por obra e graça do céu. Bem vê que a menina não está louca; mas aonde irá ter com estas ideias?

O doutor estava pensativo; compreendia agora as palavras incoerentes da moça ao piano. A narração de Antônia era verossímil. Cumpria salvar a moça levando-a para fora dali. Para isso o casamento era o melhor meio.

- Tens razão, boa Antônia - disse ele -, salvaremos Celestina; descansa em mim.

- Jura?

- Juro.

Antônia beijou a mão ao rapaz, derramando algumas lágrimas de contentamento. É que Celestina era para ela mais do que ama, era uma espécie de filha criada na solidão.

Saiu a criada, e o doutor deitou-se, não só porque a hora era adiantada, como porque o seu espírito pedia algum repouso ao cabo de tantas e novas emoções.

No dia seguinte falou ao major na necessidade de abreviar o casamento, e por consequência na de arranjar os papéis.

Concordou-se que o casamento seria na capela de casa, e o major concedeu licença para que um padre os casasse; isto pela consideração de que, se Celestina, como filha de um anjo, estava acima de um padre, não acontecia o mesmo com o doutor, que era simplesmente um homem.

Quanto aos papéis, levantou-se uma dúvida relativamente à declaração do nome da mãe da moça. O major declarou peremptoriamente que Celestina não tinha mãe.

Mas o coronel, que estava presente, interveio no debate, dizendo ao major estas palavras, que o doutor não compreendeu, mas que lhe fizeram impressão:

- Tomás! Lembra-te de ontem à noite.

O major calou-se imediatamente. Quanto ao coronel, voltando-se para o Dr. Antero, disse-lhe:

- Tudo se há de arranjar; descanse.

A conversa ficou nisto.

Mas houve quanto bastasse para que o doutor descobrisse nas mãos do coronel Bernardo o fio daquela meada. O rapaz não hesitou em aproveitar a primeira ocasião para entender-se com o coronel a fim de o informar acerca dos mil e um pontos obscuros daquele quadro que há dias tinha diante dos olhos.

Celestina não assistira à conversa; estava na outra sala tocando piano. O doutor lá foi ter com ela, e achou-a triste. Perguntou-lhe por quê.

- Eu sei! - respondeu a moça - Está-me parecendo que o senhor não gosta de mim; e se me perguntar por que a gente gosta dos outros, não sei.

O moço sorriu, pegou-lhe na mão, apertou-a entre as suas, e levou-a aos lábios. Desta vez, Celestina não gritou, nem resistiu; ficou a olhar embebida para ele, pendente dos seus olhos, pode-se dizer que pendente da sua alma.

XI

Na noite seguinte, o Dr. Antero passeava no jardim, justamente por baixo da janela de Celestina. A moça não sabia que ele se achava ali, nem o rapaz quis por modo nenhum chamar a atenção dela. Contentava-se em olhar de longe, vendo de quando em quando desenhar-se na parede a sombra daquele delicado corpo.

Havia lua e o céu estava sereno. O doutor, que até ali não conhecia nem apreciava os mistérios da noite, aprazia-se agora em conversar com o silêncio, a sombra e a solidão.

Quando se achava mais embebido com os olhos na janela, sentiu que alguém lhe batia no ombro.

Estremeceu, e voltou-se rapidamente.

Era o coronel.

- Olá, meu caro doutor - disse o coronel -, faz um idílio antes do casamento?

- Estou tomando fresco - respondeu o doutor -; a noite está magnífica e lá dentro está calor.

- Isto é verdade; eu também vim tomar fresco. Passeemos, se lhe não interrompo as reflexões.

- Pelo contrário, e eu até estimo...

- Ter-me encontrado?

- Justo.

- Pois então melhor.

O rumor das palavras trocadas pelos dous foi ouvido no quarto de Celestina. A moça chegou à janela e procurou ver se descobria de quem eram as vozes.

- Lá está ela - disse o coronel -. Olhe!

Os dous homens aproximaram-se, e o coronel disse para Celestina:

- Somos nós, Celestina; eu e o teu noivo.

- Ah! Que andam fazendo?

- Bem vês; tomando fresco.

Houve um silêncio.

- Não me diz nada, doutor? - perguntou a moça.

- Contemplo-a.

- Faz bem - respondeu ela -; mas como o ar pode fazer-me mal, boa noite.

- Boa noite!

Celestina entrou, e pouco depois fechou-se a janela.

Quanto aos dous homens, dirigiram-se para um banco de pau que ficava na outra extremidade do jardim.

- Diz então que estimava encontrar-me?

- É verdade, coronel; peço-lhe uma informação.

- E eu vou dar-lha.

- Sabe o que é?

- Adivinho.

- Tanto melhor; evita-me um discurso.

- Quer saber quem é a mãe de Celestina?

- Em primeiro lugar.

- Pois que mais?

- Quero saber depois qual a razão desta loucura do major.

- Não sabe nada?

- Nada. Eu estou aqui em consequência de uma aventura singularíssima que lhe vou narrar.

O doutor repetiu ao coronel a história da carta e do recado que o chamara ali, sem ocultar que o convite do major chegara justamente na ocasião em que ele se achava disposto a romper com a vida.

O coronel ouviu atentamente a narração do moço; ouviu também a confissão de que a entrada naquela casa fizera do doutor um bom homem, quando não passava de um homem inútil e mau.

- Confissão por confissão - disse o doutor -, venha a sua.

O coronel tomou a palavra.

- Fui amigo de seu pai e do major; seu pai morreu há muito; ficamos eu e o major como dous sobreviventes dos três irmãos Horácios, nome que nos davam os homens do nosso tempo. O major era casado, eu, solteiro. Um dia, por motivos que não vêm ao caso, o major suspeitou que sua mulher lhe era infiel, e expulsou-a de casa. Eu também acreditei na infidelidade de Fernanda, e aprovei, em parte, o ato do major. Digo-lhe em parte, porque a pobre mulher no dia seguinte não tinha de comer; e foi de minha mão que recebeu alguma cousa. Protestou ela por sua inocência com as lágrimas nos olhos; eu não acreditei nas lágrimas nem nos protestos. O major ficou louco, e veio então para esta casa com a filha, e nunca mais saiu. Acontecimentos imprevistos me obrigaram a ir pouco depois para o Norte, onde estive até há pouco. E não teria voltado se...

O coronel estacou.

- Que é? - perguntou-lhe o doutor.

- Não vê um vulto ali?

- Aonde?

- Ali.

Com efeito encaminhava-se um vulto para os dous interlocutores; a alguns passos reconheceram ser o criado José.

- Sr. Coronel - disse o criado -, ando à sua procura.

- Por quê?

- O amo quer falar-lhe.

- Bem; lá vou.

O criado retirou-se, e o coronel continuou:

- Não teria voltado se não adquirisse a certeza de que as suspeitas do major eram todas infundadas.

- Como?

- Fui encontrar, depois de tantos anos, na província em que me achava, a esposa do major servindo de criada em uma casa. Tinha tido uma vida exemplar; as informações que obtive confirmavam as asseverações dela. As suspeitas fundavam-se numa carta achada em poder dela. Ora, essa carta comprometia uma mulher, mas não era Fernanda; era outra, cujo testemunho ouvi no ato de morrer. Compreendi que era talvez o meio de chamar o major à razão vir contar-lhe isso tudo. Vim, com efeito, e expus-lhe o que sabia.

- E ele?

- Não acredita; e quando parece ir-se convencendo das minhas asseverações, volta-lhe a ideia de que ele não é casado, porque os anjos não casam; enfim, o mais que o senhor sabe.

- Então está perdido?

- Creio que sim.

- Nesse caso cumpre salvar-lhe a filha.

- Por quê?

- Porque o major educou Celestina na mais absoluta reclusão possível, e desde pequena incutiu-lhe a ideia de que anda possuído, de maneira que eu tenho medo de que a pobre moça sofra igualmente.

- Descanse; o casamento será feito quanto antes; e o senhor a levará daqui; em último caso, se não pudermos convencê-lo, sairão sem que ele o saiba.

Levantaram-se os dous, e ao chegarem perto de casa, saiu-lhes ao encontro o criado, trazendo um novo recado do major.

- Parece-me que está doente - acrescentou o criado.

- Doente?

O coronel apressou-se a ir ter com o amigo, enquanto o doutor foi para o quarto esperar notícias dele.

XII

Quando o coronel entrou no quarto do major achou-o muito aflito. Passeava de um lado para outro, agitado, proferindo palavras incoerentes, com o olhar desvairado.

- Que tens, Tomás?

- Ainda bem que vieste - disse o velho -; sinto-me mal; veio aqui há pouco um anjo buscar-me; disse-me que eu estava fazendo falta no céu. Creio que me vou embora desta vez.

- Deixa-te disso - respondeu o coronel -; foi caçoada do anjo; descansa, tranquiliza-te.

O coronel conseguiu fazer com que o major se deitasse. Apalpou-lhe o pulso, e sentiu-lhe febre. Entendeu que era conveniente mandar buscar um médico, e deu ordem ao criado nesse sentido.

Acalmou-se a febre do major, que conseguiu dormir um pouco; o coronel mandou preparar uma cama no mesmo quarto, e depois de ir dar parte ao doutor do que acontecera, voltou para o quarto do major.

No dia seguinte o doente levantou-se melhor; o médico, tendo chegado sobre a madrugada, não chegou a aplicar-lhe nenhum remédio, mas lá ficou para o caso de ser preciso.

Quanto a Celestina, nada soube do que havia acontecido; e acordou alegre e viva como nunca.

Mas sobre a tarde voltou a febre ao major, e desta vez de um modo violento. Dentro de pouco tempo declarou-se a proximidade da morte.

O coronel e o doutor tiveram cuidado de afastar Celestina, que não sabia o que era morrer, e podia sofrer com a vista do pai moribundo.

O major, cercado pelos dous amigos, pedia-lhes com instância que lhe fossem buscar a filha; mas eles não consentiram nisso. Então, o pobre velho instou com o doutor que não deixasse de casar com ela, e ao mesmo tempo repetiu a declaração de que lhe deixava uma fortuna. Enfim sucumbiu.

Ficou assentado entre o coronel e o doutor que a morte do major seria participada à filha depois de feito o enterro, e que este teria lugar com a maior discrição possível. Assim se fez.

A ausência do major ao almoço e ao jantar do dia seguinte foi explicada a Celestina como proveniente de uma conferência em que ele estava com pessoas de sua amizade.

De maneira que, ao passo que do outro lado da casa se achava o cadáver do pai, a filha ria e conversava à mesa como nos seus melhores dias.

Mas feito o enterro era preciso dizê-lo à filha.

- Celestina - disse-lhe o coronel -, tu vais casar brevemente com o Dr. Antero.

- Mas quando?

- Daqui a dias.

- Dizem-me isso há que tempo!

- Pois agora é de uma vez. Teu pai...

- Que tem?

- Teu pai não volta por enquanto.

- Não volta? - disse a moça -. Pois onde foi ele?

- Teu pai foi para o céu.

A moça ficou pálida ouvindo a notícia; não lhe ligava nenhuma ideia fúnebre; mas o coração adivinhava que por trás daquela notícia havia uma catástrofe.

O coronel procurou distraí-la.

Mas a moça, vertendo duas lágrimas, duas só, mas que valiam por cem, disse com profunda amargura:

- Papai foi para o céu e não se despediu de mim!

Depois recolheu-se ao quarto até o dia seguinte.

O coronel e o doutor passaram a noite juntos.

Declarou o doutor que a fortuna do major estava por trás de uma estante, na biblioteca, e que ele sabia o meio de abri-la. Assentaram os dous no meio de apressar o casamento de Celestina sem prejuízo dos atos da justiça.

Cumpria, porém, antes de tudo, arrancar a moça daquela casa; o coronel indicou a casa de uma parenta sua, para onde a levariam no dia seguinte. Assentados estes pormenores, o coronel perguntou ao doutor:

- Ora, diga-me; não crê agora que haja uma Providência?

- Sempre acreditei.

- Não minta; se acreditasse não teria recorrido ao suicídio.

- Tem razão, coronel; dir-lhe-ei até: eu era um pouco de lodo, hoje sinto-me pérola.

- Compreendeu-me bem; eu não queria aludir à fortuna que veio encontrar aqui, mas a essa reforma de si mesmo, a essa renovação moral, que obteve com este ar e na contemplação daquela formosa Celestina.

- Diz bem, coronel. Quanto à fortuna, estou pronto a...

- A quê? A fortuna é de Celestina; não deve desfazer-se dela.

- Mas podem supor que o casamento...

- Deixe supor, meu amigo. Que lhe importa ao senhor que suponham? Não tem a sua consciência, que lhe não argúi cousa nenhuma?

- É verdade; mas a opinião...

- A opinião, meu caro, não é mais do que uma opinião; não é a verdade. Acerta às vezes; outras calunia, e quer a desgraça que mais vezes calunie do que acerte.

O coronel em matéria de opinião pública era um perfeito ateu; negava-lhe a autoridade e a supremacia. Umas das suas máximas era esta: "A opinião pública é um muro em branco: aceita tudo quanto lhe escrevem em cima, quer venha da mão de um garoto, quer da de um homem de bem".

Foi difícil ao doutor e ao coronel convencer a Celestina de que deveria sair daquela casa; mas enfim alcançaram levá-la para a cidade de noite. A parenta do coronel, prevenida a tempo, recebeu-a em casa.

Arranjadas as cousas de justiça, tratou-se de realizar o casamento.

Antes porém de chegar a esse ponto tão almejado pelos dous noivos, foi preciso habituar Celestina à vida nova que começava a viver e que ela não conhecia. Educada entre as paredes de uma casa isolada, longe de todo o rumor, e sob a direção de um homem enfermo da razão, Celestina entrou num mundo que jamais sonhara, nem dele tinha notícia.

Tudo para ela era objeto de curiosidade e espanto. Cada dia trazia-lhe uma emoção nova.

Admirava a todos que, apesar da singular educação que tivera, soubesse tocar tão bem; ela tivera com efeito um mestre chamado pelo major, que desejava, dizia ele, mostrar que um anjo, e principalmente o anjo Rafael, sabia fazer as cousas como os homens. Quanto à leitura e escritura, foi ele mesmo quem lhas ensinou.

A+
A-