Conto

O Anjo Rafael

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das famílias, em outubro, novembro e dezembro de 1869, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

V

Quando o doutor se achou só no quarto entrou a meditar na situação conforme se lhe desenhara ela depois da conversa com o major. O velho parecia-lhe singularmente extravagante, mas falava-lhe do pai, mostrava-se afável, e afinal de contas oferecia a filha e uma riqueza. O espírito do moço estava mais um pouco tranquilo.

É verdade que ele opusera objeções à proposta do velho, e parecera agarrar-se a todas as dificuldades, por menores que fossem. Mas eu não posso ocultar que a resistência do rapaz era talvez menos sincera do que ele próprio pensava. A perspectiva da riqueza disfarçou por algum tempo a singularidade da situação.

A questão agora era ver a moça; se fosse bonita; se tivesse uma fortuna, que mal havia em se casar ele com ela? O doutor aguardou a hora do jantar com uma impaciência a que já não eram estranhos os cálculos da ambição.

O criado tinha-lhe posto à disposição um guarda-roupa, e meia hora depois serviu-lhe um banho. Satisfeitas essas necessidades de asseio, o doutor deitou-se na cama e tirou à vontade um dos livros que se achavam sobre a mesa. Era um romance de Walter Scott. O rapaz, educado com o estilo de telegrama dos livros de Ponson du Terrail, adormeceu logo à segunda página.

Quando acordou era tarde; recorreu ao relógio, e achou-o parado; esquecera-se de lhe dar corda.

Receava que o criado o tivesse vindo chamar, e se retirasse por encontrá-lo a dormir. Era estrear mal a sua vida na casa de um homem que talvez fizesse dele aquilo de que já nem tinha esperanças.

Imagine-se, pois, a ansiedade com que ele esperou as horas.

Valia-lhe, porém, que, apesar dos receios, a sua imaginação trabalhava sempre; e era de ver o quadro que ela desenhava no futuro, os castelos que construía no ar: credores pagos, casas magníficas, salões, bailes, carros, cavalos, viagens, mulheres enfim, porque nos sonhos do Dr. Antero havia sempre uma ou duas mulheres.

O criado veio enfim chamá-lo.

A sala do jantar era pequena, mas ornada com muito gosto e simplicidade.

Quando o doutor entrou não havia ninguém; mas pouco depois entrou o major, já vestido com uma sobrecasaca preta abotoada até o pescoço e contrastando com a cor branca dos seus cabelos e bigodes e a tez pálida do rosto.

O major sentou-se à cabeceira da mesa, e o doutor, à esquerda; a cadeira da direita estava reservada para a filha do major.

Mas onde estava a moça? O doutor quis fazer a pergunta ao velho; mas reparou a tempo que a pergunta seria indiscreta.

E sobre indiscreta, seria inútil, porque alguns minutos depois abriu-se uma porta que ficava fronteira ao lugar em que o doutor estava sentado, e apareceu uma criada anunciando a chegada de Celestina.

O velho e o doutor levantaram-se.

A moça apareceu.

Era uma figura delgada e franzina, nem alta nem baixa, mas extremamente airosa. Não andou, deslizou da porta à mesa; seus pés deviam ser asas de pomba.

O doutor ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com uma rapariga nem bonita nem feia, uma espécie de fardo que só podia ser carregado aos ombros de uma fortuna.

Pelo contrário, tinha diante de si uma verdadeira beleza.

Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das suas virgens.

Vestia de branco; uma fita azul, presa à cintura, delineava-lhe o talhe elegante e gracioso.

Celestina dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão; depois cumprimentou sorrindo ao Dr. Antero, e sentou-se na cadeira que lhe estava destinada.

O doutor não tirava os olhos dela. No espírito superficial daquele homem entrava a descobrir-se uma profundidade.

Pouco depois de sentar-se, a moça voltou-se para o pai e perguntou-lhe:

- Este senhor é o que vai ser meu marido?

- É - respondeu o major.

- É bonito - disse ela sorrindo para o rapaz.

Havia tanta candura e simplicidade na pergunta e na observação da moça, que o doutor voltou instintivamente a cabeça para o major, com ímpetos de perguntar-lhe se devia acreditar nos seus ouvidos.

O velho compreendeu o espanto do rapaz, e sorriu maliciosamente. O doutor olhou outra vez para Celestina, que o contemplava com uma admiração tão natural e tão sincera, que o rapaz chegou... a corar.

Começaram a jantar.

A conversa começou tolhida e esquerda, por causa do doutor, que caminhava de espanto em espanto; mas dentro de pouco tornou-se expansiva e franca.

Celestina era a mesma afabilidade do pai, realçada pelas graças da juventude, e mais ainda por uma singeleza tão agreste, tão nova, que o doutor se julgava transportado a uma civilização desconhecida.

Quando acabaram o jantar passaram à sala da sesta. Chamava-se assim uma espécie de galeria de onde se descortinavam os arredores da casa. Celestina deu o braço ao doutor sem que este lho oferecesse e seguiram os dous adiante do major, que ia resmungando uns salmos de Davi.

Na sala da sesta sentaram-se os três; era a hora do crepúsculo; as montanhas e o céu começavam a despir os véus da tarde para vestir os da noite. A hora era propícia aos enlevos; o Dr. Antero, posto que educado em outra ordem de sensações, sentia-se arrebatado docemente nas asas da fantasia.

A conversa versou sobre mil cousas de nada; a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade dele. Depois, contou por menor todos os hábitos da sua vida, as suas prendas e o seu gosto pelas flores, o seu amor às estrelas, tudo isso com uma graça que tirava um pouco da juventude e um pouco da infância.

Voltou-se ao assunto do casamento, e Celestina perguntou se o rapaz tinha dúvida em casar com ela.

- Nenhuma - disse ele -; pelo contrário, tenho sumo prazer... é uma felicidade para mim.

- Que lhe disse eu? - perguntou o pai de Celestina -. Eu já sabia que bastava vê-la para ficá-la amando.

- Então posso contar que seja meu marido, não?

- Sem dúvida - disse o doutor sorrindo.

- Mas o que é marido? - perguntou Celestina, depois de alguns instantes.

A esta pergunta inesperada, o rapaz não pôde reprimir um movimento de surpresa. Olhou para o velho major; mas este, encostado na larga poltrona em que se achava sentado, começava a adormecer.

A moça repetia com os olhos a pergunta feita com os lábios. O doutor envolveu-a com um olhar de amor, talvez o primeiro que teve em sua vida; depois pegou docemente na mão de Celestina e levou-a aos lábios.

Celestina estremeceu toda e soltou um pequeno grito, que fez acordar sobressaltado o major.

- Que é? - disse este.

- Foi meu marido - respondeu a moça - que tocou com a boca dele na minha mão.

O major levantou-se, olhou severamente para o rapaz, e disse à filha:

- Está bem, vai para o teu quarto.

A moça ficou um pouco surpreendida com a ordem do pai, mas obedeceu imediatamente, despedindo-se do rapaz com a mesma descuidosa simplicidade com que lhe falara pela primeira vez.

Quando os dous ficaram sós, o major pegou no braço do doutor, e disse-lhe:

- Meu caro senhor, respeite as pessoas do céu; quero um genro, não quero um tratante. Ora, cuidado!

E saiu.

O Dr. Antero ficou atônito com as palavras do major; era a terceira vez que lhe falava em pessoas ou enviados do céu. Que queria dizer com aquilo?

Pouco depois veio o criado com ordem de acompanhá-lo até o quarto; o doutor obedeceu sem fazer objeção.

VI

A noite foi má para o Dr. Antero; acabara de assistir a cenas tão estranhas, ouvira palavras tão misteriosas, que o pobre moço perguntou a si mesmo se não era vítima de um sonho.

Infelizmente não era.

Aonde iria dar aquilo tudo? Qual o resultado da cena da tarde? O rapaz temia, mas já não ousava pensar na fuga; a ideia da moça começava a ser um vínculo.

Dormiu tarde e mal; foram-lhe agitados os sonhos.

No dia seguinte levantou-se cedo, e recebeu do criado as folhas do dia. Enquanto não vinha a hora do almoço, quis ler as notícias do mundo, do qual parecia estar separado por um abismo.

Ora, eis aqui o que encontrou no Jornal do Commercio:

Suicídio. Anteontem, à noite, o Dr. Antero da Silva, depois de dizer ao seu criado que saísse e só voltasse de madrugada, encerrou-se no quarto da casa que ocupava à rua da Misericórdia, e escreveu a carta que os leitores encontrarão adiante.
Como se vê dessa carta, o Dr. Antero da Silva declarava a sua intenção de matar-se; mas a singularidade do caso é que, voltando o criado para casa de madrugada, encontrou a carta, mas não encontrou o amo.
O criado deu imediatamente parte à polícia, que empregou todas as diligências a ver se obtinha notícia do jovem doutor.
Com efeito, depois de bem combinadas providências, encontrou-se na praia de Santa Luzia um cadáver que se reconheceu ser o do infeliz moço. Parece que, apesar da declaração de que empregaria a pistola, o desgraçado procurou outro meio menos violento de morte.
Supõe-se que uma paixão amorosa o levou a cometer este ato; outros querem que fosse por fugir aos credores. A carta entretanto reza de outros motivos. Ei-la.

Aqui seguia a carta que vimos no primeiro capítulo.

A leitura da notícia produziu no Dr. Antero uma impressão singular; estaria ele morto deveras? Teria já saído do mundo da realidade para o mundo dos eternos sonhos? Era tão extravagante tudo o que lhe acontecia desde a antevéspera, que o pobre rapaz sentiu por um instante vacilar-lhe a razão.

Mas pouco a pouco voltou à realidade das cousas; interrogou a si e a tudo o que o rodeava; releu atentamente a notícia; a identidade reconhecida pela polícia, que ao princípio o impressionara, fê-lo sorrir depois; e não menos o fez sorrir um dos motivos que se dava ao suicídio, o motivo de paixão amorosa.

Quando o criado voltou, pediu-lhe o doutor notícia circunstanciada do major e de sua filha. A moça estava boa; quanto ao major, disse o criado que lhe ouvira de noite alguns soluços, e que de manhã se levantara abatido.

- Admira-me isto - acrescentou o criado -, porque não sei que tivesse motivo para chorar, e além disso o amo é um velho alegre.

O doutor não respondeu; sem saber por quê, atribuía-se a causa daqueles soluços do velho; foi a ocasião do seu primeiro remorso.

O criado disse-lhe que o almoço o esperava; o doutor dirigiu-se para a sala de jantar, onde achou o major realmente um pouco abatido. Foi direito a ele.

O velho não se mostrou ressentido; falou-lhe com a mesma bondade da véspera. Pouco depois chegou Celestina, bela, descuidosa, inocente como da primeira vez; beijou a testa do pai, apertou a mão ao doutor e sentou-se no seu lugar. O almoço correu sem incidente; a conversa nada teve de notável. O major propôs que na tarde desse dia Celestina executasse ao piano alguma composição bonita, para que o doutor pudesse apreciar os seus talentos.

Entretanto a moça quis mostrar ao rapaz as suas flores, e o pai deu-lhe licença para isso; a um olhar do velho a criada de Celestina acompanhou os dous futuros noivos.

As flores de Celestina estavam todas em meia dúzia de vasos, postos sobre uma janela do seu gabinete de leitura e trabalho. Chamava ela aquilo o seu jardim. Bem pequeno era ele, e pouco tempo exigia para o exame; ainda assim, o doutor tratou de prolongá-lo o mais que pôde.

- Que me diz a estas violetas? - perguntou a moça.

- São lindíssimas! - respondeu o doutor.

Celestina arranja as folhas com sua mãozinha delicada; o doutor adiantou a sua mão para tocar nas folhas também; os dedos de ambos se encontraram; a moça estremeceu, e baixou os olhos; um leve rubor coloriu-lhe as faces.

O rapaz receou que daquele involuntário encontro pudesse nascer algum motivo de remorso para ele, e tratou de retirar-se. A moça despediu-se, dizendo:

- Até logo, sim?

- Até logo.

O doutor saiu do gabinete de Celestina, e já entrava a pensar como daria com o caminho para o seu quarto, quando encontrou à porta o criado, que se preparou para acompanhá-lo.

- Tu pareces a minha sombra - disse-lhe o doutor sorrindo.

- Sou apenas um criado do senhor.

Entrando no quarto ia o rapaz cheio de vivas impressões; a pouco e pouco sentia-se transformado pela moça; até os receios se lhe dissipavam; parecia-lhe que ao pé dela não devia recear cousa nenhuma.

Os jornais estavam ainda em cima da mesa; perguntou ao criado se seu amo costumava a lê-los. O criado respondeu que não, que ninguém os lia em casa, e tinham sido assinados só por causa dele.

- Só por minha causa?

- Só.

VII

O jantar e a música reuniram os três convivas durante perto de quatro horas. O doutor estava no sétimo céu; já começava a enxergar a casa como sua; a vida que levava era para ele a melhor vida deste mundo.

"Um minuto mais tarde", pensava ele, "e eu tinha perdido esta felicidade."

Com efeito, pela primeira vez o rapaz amava seriamente; Celestina aparecera-lhe como a personificação da ventura terrestre e das santas efusões do coração. Contemplava-a com respeito e ternura. Podia viver ali eternamente.

Entretanto a conversa sobre o casamento não se repetiu; o major esperava que o rapaz se declarasse, e o rapaz aguardava oportunidade para fazer a sua declaração ao major.

Quanto a Celestina, apesar de seu angélico estouvamento, evitava falar do assunto. Seria recomendação do pai? O doutor chegou a supô-lo; mas a ideia varreu-se-lhe do espírito ante a consideração de que era tudo tão franco naquela casa que uma recomendação desta ordem só podia ter por causa um grande acontecimento. O ósculo na mão da moça não lhe pareceu acontecimento de tanta magnitude.

Cinco dias depois da sua estada ali, o major disse-lhe ao almoço que desejava falar-lhe, e com efeito, apenas se acharam os dous a sós, o major tomou a palavra, e expressou-se nestes termos:

- Meu caro doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem sou mesmo um homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém ma queria respeitar.

Conquanto já tivesse ouvido do major algumas palavras dúbias nesse sentido, o Dr. Antero ficou assombrado com o pequeno discurso, e não achou resposta que lhe desse. Arregalou muito os olhos e abriu a boca; todo ele era um ponto de admiração e interrogação ao mesmo tempo.

- Eu sou - continuou o velho -, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer.

O major dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um homem menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o Dr. Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo.

- Fez bem - disse o moço -, fez bem em fugir ao mundo. Que há aí no mundo que valha um sacrifício verdadeiramente grande? A humanidade já se não regenera; se Jesus aparecesse hoje é duvidoso que lhe deixassem fazer o discurso da montanha; matavam-no logo no primeiro dia.

Brilharam os olhos do major ouvindo as palavras do doutor; quando ele acabou, o velho saltou-lhe ao pescoço.

- Disse pérolas - exclamou o velho -. Isso é que é ver as cousas. Bem vejo, sai a seu pai; jamais ouvi daquele amigo palavra que não fosse de veneração para mim. Tem o mesmo sangue nas veias.

O Dr. Antero correspondeu como pôde à efusão do anjo Rafael, por cujos olhos saiam chispas de fogo.

- Ora, pois - continuou o velho sentando-se outra vez -, é isso mesmo o que eu desejava encontrar; um rapaz de bom caráter, que pudesse fazer de minha filha aquilo que ela merece, e não duvidasse da minha natureza nem da minha missão. Diga-me, gosta de minha filha?

- Muito! - respondeu o rapaz-. É um anjo...

- Pudera! - atalhou o major -. Que queria então que ela fosse? Há de casar com ela, não?

- Sem dúvida.

- Bom - disse o major olhando para o doutor com um olhar cheio de tão paternal ternura, que o moço sentiu-se comovido.

Nesse momento, a criada de Celestina atravessou a sala, e passando por trás da cadeira do major abanou a cabeça com ar de compaixão; o doutor apanhou o gesto que a criada fizera só para si.

- O casamento há de ser breve - continuou o major quando os dous se acharam sós -, e, como lhe disse, dou-lhe uma riqueza. Quero que acredite; vou mostrar-lha.

O Dr. Antero recusou ir ver a riqueza, mas pede a verdade que se diga que a recusa era simples formalidade. A atmosfera angélica da casa já o tinha melhorado em parte, mas havia nele ainda uma parte do homem, e do homem que passara metade da vida em dissipações de espírito e sentimento.

Como o velho insistisse, o doutor declarou-se pronto a acompanhá-lo. Passaram dali a um gabinete onde o major tinha a biblioteca; o major fechou a porta com a chave; depois disse ao doutor que tocasse uma mola que desaparecia no lombo de um livro fingido, no meio de uma estante.

O doutor obedeceu.

Toda aquela fileira de livros era simulada; ao toque do dedo do doutor abriu-se uma portinha que dava para um vão escuro onde se achavam cinco ou seis caixinhas de ferro.

- Nessas caixas - disse o major - tenho eu cem contos de réis: são seus.

Os olhos do Dr. Antero faiscaram; via diante de si uma fortuna, e só dependia dele possuí-la.

O velho mandou que fechasse outra vez o esconderijo, processo que lhe ensinou também.

- Fique sabendo - acrescentou o major - que é o primeiro a quem mostro isto. Mas é natural; já o considero como filho.

Com efeito, foram para a sala da sesta, aonde Celestina foi ter pouco depois; a vista da moça produziu no rapaz a boa impressão de fazer-lhe esquecer as caixas de ferro e mais os cem contos.

Ali mesmo se marcou o dia do casamento, que devia ser um mês depois.

O doutor estava disposto a tudo de tão boa vontade, que a reclusão forçada terminou logo; o major permitiu-lhe sair; mas o doutor declarou que não sairia dali senão depois de casado.

- Depois será mais difícil - disse o velho major.

- Pois bem, não sairei.

A intenção do rapaz era sair depois de casado, e para isso inventaria algum meio; por enquanto, não queria comprometer a sua felicidade.

Celestina estava contentíssima com o casamento; era uma diversão na monotonia de sua vida.

Separaram-se depois do jantar, e já então o doutor não encontrou o criado para o conduzir ao quarto; tinha a liberdade de ir aonde quisesse. O doutor foi direito ao quarto.

A sua situação tomava um novo aspecto; não se tratava de um crime nem de uma emboscada; tratava-se de um monomaníaco. Ora, por felicidade do moço, esse monomaníaco exigia dele exatamente aquilo que ele estava disposto a fazer; tudo bem considerado, entrava-lhe pela porta uma felicidade inesperada, que nem era lícito sonhar quando se está à beira do túmulo.

No meio de belos sonhos o rapaz adormeceu.

VIII

O dia seguinte era um domingo.

O rapaz, depois de ler as notícias dos jornais e alguns artigos políticos, passou aos folhetins. Ora, aconteceu que um deles tratava precisamente do suicídio do Dr. Antero da Silva. A carta póstuma servia de assunto para as considerações galhofeiras do folhetinista.

Um dos períodos dizia assim:

Se não fosse o suicídio do homem, eu não tinha assunto ameno para tratar hoje. Felizmente lembrou-se de morrer a tempo, cousa que nem sempre acontece a um marido, nem a um ministro de Estado.
Mas morrer era nada; morrer e deixar uma carta desfrutável como a que o público leu, isso é que é ter compaixão de um escritor aux abois.
Desculpe o leitor o termo francês; vem do assunto; eu estou convencido que o Dr. Antero (que pelo nome não perca) leu algum romance parisiense em que viu o original daquela carta.
Salvo se nos quis provar que não era simplesmente um espírito medíocre, mas também um formidável tolo.
Tudo é possível.

O doutor amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no autor do artigo.

Com efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma famosa tolice.

Dera talvez uma das caixas de ferro do major para não tê-la escrito.

Era tarde.

Mas o desgosto do folhetim não foi o único; adiante encontrou um convite para uma missa por sua alma. Quem convidava para a missa? Os seus amigos? Não; o criado Pedro, que, ainda comovido com a dádiva dos cinquenta mil-réis, achou que cumpria um dever sufragando a alma do amo.

- Bom Pedro! - disse ele.

E assim como tinha tido naquela casa o primeiro amor, e o primeiro remorso, teve ali a primeira lágrima, uma lágrima de gratidão pelo fiel criado.

Chamado para almoçar, o doutor foi ter com o major e Celestina. Já então a chave do quarto ficava com ele mesmo.

Sem saber por quê, achou Celestina mais celeste que nunca, e também mais séria do que costumava. A seriedade quereria dizer que o rapaz já lhe não era indiferente? O Dr. Antero pensou que sim, e eu, na qualidade de romancista, direi que pensava bem.

Contudo a seriedade de Celestina não excluía a sua afabilidade, nem ainda o seu estouvamento; era uma seriedade intermitente, uma espécie de enlevo e cisma, a primeira aurora do amor, que enrubesce a face e cerca a fronte de uma espécie de auréola.

Como já houvesse liberdade e confiança, o doutor pediu a Celestina, no fim do almoço, que fosse tocar um pouco. A mocinha tocava deliciosamente.

Encostado ao piano, com os olhos postos na moça, e a alma embebida nas harmonias que os dedos dela desferiam do teclado, o Dr. Antero esquecia-se do resto do mundo para viver só daquela criatura que dentro de pouco tempo ia ser sua mulher.

Durante esse tempo o major passeava, com as mãos cruzadas sobre as costas, e gravemente pensativo.

O egoísmo do amor é implacável; diante da mulher que o seduzia e atraía, o moço nem tinha um olhar para aquele pobre velho demente que lhe dava mulher e fortuna.

O velho de quando em quando parava e exclamava:

- Bravo! Bravo! Assim tocarás um dia nas harpas do céu!

- Gosta de me ouvir tocar? - perguntou a moça ao doutor.

- Valia a pena morrer ouvindo esta música.

No fim de um quarto de hora, o major saiu, deixando os dous noivos na sala.

Era a primeira vez que ficavam a sós.

O rapaz não ousava reproduzir a cena da outra tarde; podia haver um novo grito da moça e tudo estava perdido para ele.

Mas os seus olhos, esquecidamente embebidos nos da moça, falavam melhor que todos os ósculos deste mundo. Celestina olhava para ele com essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem.

O doutor compreendeu que era amado; Celestina não compreendeu, sentiu que estava presa àquele homem por alguma cousa mais forte que a palavra do pai. A música cessara.

O doutor sentou-se defronte da moça, e disse-lhe:

- Casa-se comigo por vontade?

- Eu? - respondeu ela -. Certamente que sim; gosto do senhor; além disso, meu pai quer, e quando um anjo quer...

- Não zombe assim - disse o doutor -; não é culpa...

- Zombar de quê?

- De seu pai.

- Ora essa!

- É um desgraçado.

- Não conheço anjos desgraçados - respondeu a moça com uma graça tão infantil e um ar de tanta convicção que o doutor franziu a testa com um gesto de espanto.

A moça continuou:

- Bem feliz que ele é; quem me dera ser anjo como ele! É verdade que filha dele devo ser também... e, na verdade, sou também angélica...

O doutor ficou pálido, e levantou-se com tanta precipitação, que Celestina não pôde reprimir um gesto de susto.

- Ah! Que tem?

- Nada - disse o rapaz passando a mão pela testa -; foi uma vertigem.

Nesse momento entrou o major. Antes que tivesse tempo de perguntar nada, a filha correu a ele e disse que o doutor se achava incomodado.

O moço declarou achar-se melhor; mas pai e filha foram de opinião que devia ir descansar um pouco. O doutor obedeceu.

Quando chegou ao quarto atirou-se à cama e esteve alguns minutos sem movimento, mergulhado em reflexões. As palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doudo; tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.

- Coitada! Também é louca! Mas por que singular acordo de circunstâncias ambos eles estão de acordo nesta monomania celestial?

O doutor fazia esta e mil outras perguntas a si mesmo, sem achar resposta plausível. O que havia de certo é que o edifício da sua ventura acabava de esboroar-se.

Só lhe restava um recurso; aproveitar-se da licença concedida pelo velho e sair daquela casa, que parecia encerrar uma história sombria.

Com efeito, ao jantar o Dr. Antero declarou ao major que tinha intenção de ir à cidade ver uns papéis, no dia seguinte de manhã; voltaria de tarde.

No dia seguinte, logo depois do almoço, preparou-se o rapaz para ir embora, não sem ter prometido a Celestina que voltaria o mais cedo que pudesse. A moça pedia-lhe com alma; ele hesitou por um momento; mas que fazer? Era melhor fugir dali quanto antes.

Estava já pronto, quando sentiu bater-lhe à porta muito ao de leve; foi abrir; era a criada de Celestina.

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A-